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Mestre e Doutora em Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito pela PUCSP. Livre-docente e Titular de Direito Civil da P U C S P por concurso de títulos e provas. Professora de Filosofia do Direito, de Teoria Geral do Direito e de Direito Civil Comparado nos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da PUCSP. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito Civil Comparado nos cursos de pós-graduação em Direito da PUCSP. 1. T e o r i a G e r a l cio D i r e i t o C iv il 29a edição 2012 S WÊk Editora Saraiva Sobre a autora Detentora de inúmeros prêmios desde os tempos de seu bacharelado na PUCSP, a autora tem brilhante carreira acadêmica, com cursos de especialização em Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito, Direito Administrativo, Tributário e Municipal. Fez o Mestrado na Faculdade de Direito da USP e o Doutorado na PUCSP, tendo nesta última obtido os graus de Mestre, Doutora, Livie-Docente e Titular, por concurso de provas e títulos. Maria Helena Diniz é Professora Titular de Direito Civil na PUCSP, onde leciona essa matéria nos cursos de graduação e pós-graduação, e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito Civil Comparado nos cursos de pós- -graduação em Direito. Também leciona Direito Civil Comparado, Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito nos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado). É parecerista e autora de mais de trinta títulos publicados pela Editora Saraiva, além de ter traduzido consagradas obras do direito italiano e escrito mais de cinqüenta artigos em importantes revistas jurídicas nacionais e internacionais. Todas as suas obras têm alcançado excelente aceitação do grande público profissional e universitário, como a presente coleção Curso de direito civil brasileiro (8 volumes), que é maciçamente adotada nas faculdades de Direito de todo o País. Igual caminho têm seguido seus outros títulos: » A ciência jurídica • As lacunas no direito 8 Atualidades jurídicas (em coordenação — 5 volumes) • Código Civil anotado • Código Civil comentado (em coautoria) • Comentários ao Código Civil v. 22 • Compêndio de introdução à ciência do direito • Conceito de norma jurídica como problema de essência • Conflito de normas • Dicionário jurídico (4 volumes) • Dicionário jurídico universitário • Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro interpretada • Lei de Locações de Imóveis Urbanos comentada • Lições de direito empresarial • Manual de direito civil o Norma constitucional e seus efeitos • O estado atual do biodireito • Sistemas de registro de imóveis • Tratado teórico e prãüco dos contratos (5 volumes) É incontestável a importância do trabalho desta autora, sem dúvida uma das maiores civilistas de todos os tempos. A E d itora n g g BUte. ^ jp B Saraiva ISBN 9 7 8 -8 5 -02 -01 797 -9 obra completa ISBN 97 8 -8 5 -0 2 -1 4 3 3 4 -0 volume 1 Rua Hennque Sdiaumann, 270, Cerçtieira César — São Paulo — SP CEP 05413-909 PABX: (11) 3613 3000 SACIUR: 0800 055 7688 iw De2»a 6* das 8 :3 0 òs 19:30 / somivoiui@eiliforasoroivo.com.br ; Acesso: wmsoroiva[w.cem.br • . ' . . • FILIAIS AMAZOHAS/ROHDÔHIA/RORAIMA/ACRE : ' 1 í Rua Costa Azevedo, 5 6 - Cenlrà . Fone: (92) 3 6 3 3 ^ 2 2 7 - Foç (92) 3633-4782-A ta c u s . v " BAHIA/SERGIPE . Ruo Agnpíno Odreo, 2 3 — Fone: Í71) 3381-5854/3381-5895 . fox: {71) 3381-0959—Salvador BAURU (SÃO PAULO) Run Monsenhor Claro, 2-55/2-57 - Fone: ( U ) 3234-5643- h z 0 4 ) 3234-7-401 - t o r a - . . ceabA /piauI /m arahhão Av. Filomeno Gomes, 6 7 0 - Jocoreconga Fone: (85) 3238-2323 /323B-1384 : ^ . Fox: (85) 3238-1331 - . ; . DISTRITO FEDERAL SIA/SUL Tredio 2 Lote 850— Setor da Indústna a Fone (6 )) 3344-2920 / 3344-2951 - Fox: (61) 3344-1709 — / g o iâ sao c ah h h s . . . i; Av. Independendo, 5330 —Setor Aeroporto ■ : ' ' ■ : : , Fons: (62) 3225-2882 / 3212-2806 ^ v :v .’ . V . ' - ' ' V v Fox: (62) 3224-3016 - Goiânia MATO GROSSO 0 0 SUl/WATO GROSSO Rua 14 ds Julho, 3148 - Cejilra Fone: (67) 3382-3682-F o x : (67) 3382-0112-Campo Grande MINAS GERAIS Rua Âféni Paraíba, 449— Fone: (31) 3 4 2 9 -8 3 0 0 -Fax: <31) 3429-8310 - Belo Horizonte PARÁ/AMAPÁ Travessa Apinagés, 186-Batista Campos’ Fone: (91) 3222-9034/3224-9038 Fax: (91) 3241-0499-Belém parahA /sahta catarina Ruo Conselheiro Lauiuida, 2895—Prado Velha ’. v ' í Fone/Fax: (41) 3332-4894-Cuiiübs PERNAMSUCO/PARAlBA/R. g. do no kie/ alagoas > Ruo Corredor do Bispo, 185-B o a Vista : , Fane: (81) 3421-4246 - Fax: (81) 3421-4510 - RIBEIRÃO PRETO (SÃO PAULO) ; Av. Fmnãsra Junquelrà, 1255 Centro - ■' Fone: (16) 3610-5843 - Fax: (165 3610-8284-E b e M o Prelo:'V ■:- RIO DE JANEIJlO/ESPiRITOSAHTO V f ' Ruo Visconde de Santo Isabel, 113 a l i 9 - Vila Isobel. ; . Fone: (21) 2577-9494-F a x : (21) 2577-8867./2577-9565-RiadeJoneiro MO GRANDE 00 Sül ’ Av. k. J. Rcnner, 231 - Fonopcs : ' Fone/Fax: (51) 3371-4001 / 3371-1467 / 3371 -1 : : Porto Alegre '. SÃO PAULO Av.Antártico,9 2 -BorraFunda . , " V . , / . : . :, Fone: PABX (11) 3616-3666 - Paulo : : > : | iQ6.987.029.0Ql | | 236767 [ D iniz, Maria Helena . ... 1.; Curso de direitocivil brasileiro/volume 1; teoria. : fgera l do direito civil / Maria Heléria P m izr ^ ‘ 29. èd. : .Sãò Pau lo: Saraiva, 2012. ' - • : K Direito civil 2. Direito, civil - Brasil.I. Títulò. - - ' ' ^ v v ; : .^V CDlj-347 (81) : índice para catálogo sistemático: ]. Brasil : Direito civil 347 (81) Diretor editorial Luiz Roberto Curia Gerente de produção editorial Ugia Alves Editara lhab de Camargo Rodrigues Assistente editorial Aline Dorcy Flôr de Souza Produtora editorial Clarissa Bomsái Maria Preparação de originais toa Ustina Barda Maria Izabel Barreiros BitencaurtBressan Raquel Benáimol de Oliveira Rosenthal Arte e diagramoção Cristina Aparecida Agudo de Freitas lídia Pereira de Morais Revisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati Maria Cândida Machado Serviços editoriais Carla Cristina Marques Kelli Priscila Pinto Capa Andrea Vilela de Almeida Imagem de capa ©Skyscan CORBIS/Stock Photos Produção gráfica MorliRompim Impressão RR Donnelley Acabamento RR Donnelley Data de fechamento da edição: 23-11-2011 Dúvidas? Acesse www.saraivajur.com.br Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer m eio ou forma sem a previa autorização da £dÍtora Saraiva. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. À doce e tema memória de meus avós paternos: Elisabetta Radamanti de Oliveira Almeida Diniz e João Baptista de Oliveira Almeida Diniz. "Un juriste ne doitpas seulement être le techniden habile qui rédige ou explique avec toutes les Tessources de 1'espritdes textes de loi; il doit s'efforcer de fairepasser dans le droit son iãéal moral, et, parce qu'il a une parcelle de la puissance intellectuélle, il doit utiliser puissance en luttantpour ses croyances" (G. Ripert). índice Prefácio .................................................................................................................. 13 Capítulo I Objeto e finalidade da teoria geral do direito civil 1. Direito positivo................................................................................................. 17 A. Noção de direito....................................................................................... 17 B. Direito objetivo e direito subjetivo ...................................................... 24 C. Direito público e direito privado........................................................... 28 D. Fontes jurídicas .......................................................................................... 34 E. Norma jurídica .......... ............................................................................... 38 e .l. Conceito .......................................................................................... 38 e.2. Classificação ................................................................................... 49 2. Direito civ il....................................................................................................... 60 A. Princípios e conteúdo do direito civil .................................................. 60 B. Etiologia histórica do Código Civil brasileiro.................................... 63 C. Objeto e função da Parte Geral.............................................................. 69 D. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ....................... 73 d .l. O conteúdo e a função da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.............................................................................. 73 d.2. A aplicação das normas jurídicas................................................. 75 d.3. A interpretação das norma s ......................................................... 78 d.4. A integração das normas jurídicas e a questão da correção da antinomia jurídica........................................................................... 83 d.5. A vigência da norma de direito no tempo e no espaço.......... 111 E. A relação jurídica...................................................................................... 123 Capítulo II . Das pessoas 1. Personalidade .................................................................................................. 129 A. Conceito de pessoa................................................................................... 129 10 B. Personalidade jurídica............................................................................. 130 C. Direitos da personalidade ....................................................................... 131 2. Pessoa natural......................................................................................... ....... 162 A. Conceito da pessoa natural.................................................................... 162 B. Capacidade jurídica................................................................................. 163 C. Incapacidade.............................................................................................. 168 c .l. Noção................................................................................................ 168 c.2. Incapacidade absoluta................................................................... 171 c.3. Incapacidade relativa .................................................................... 187 c.4. Proteção aos incapazes.................................................................. 198 c.5. Cessação da incapacidade............................................................. 217 D. Começo da personalidade natural........................................................ 221 E. Individuaüzação da pessoa natural ...................................................... 226 e .l. Nome ................................................................................................ 227 e.2. Estado da pessoa natural............................................................... 243 e.3. Domicílio......................................................................................... 246 F. Extinção da personalidade natural....................................................... 252 3. Pessoa jurídica ................................................................................................. 263 A. Conceito de pessoa jurídica................................................................... 263 B . Natureza jurídica...................................................................................... 264 C. Classificação da pessoa jurídica............................................................. 266 D. Começo da existência legal da pessoa jurídica ................................... 301 E. Capacidade da pessoa jurídica............................................................... 311 F. Responsabilidade civil............................................................................. 314 G. Seu domicílio............................................................................................ 324 H. Transformação, incorporação, fusão, cisão e fim da pessoa jurídica. 326 I. Grupos despersonalizados ..................................................................... 334 J . Desconsideração da pessoa jurídica....................... ............................. 340 Capítulo III Dos bens 1. Noção de b en s............ .................................................................................... 361 A. Conceito.................................................................................................... 361 B . Caracteres .................................................................................................. 362 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o 11 2. Classificação dos b en s..................................................................................... 364 A. Finalidade.................................................................................................. 364 B. Bens considerados em si mesmos......................................................... 365 b .l. Bens corpóreos e incorpóreos...................................................... 365 b.2. Bens imóveis e móveis .................................................................. 365 fo.3. Bens fungíveis e infungíveis ........................................................ 375 b.4. Bens consumíveis e inconsumíveis ............................................ 377 b.S. Bens divisíveis e indivisíveis ........................................................ 378 b .6. Bens singulares e coletivos............................................................ 381 C. Bens reciprocamente considerados ..................................................... 384 c .l. Coisa principal e acessória............................................................ 384 c.2. Espécies de bens acessórios........................................................... 385 D. Bens considerados em relação ao titular do domínio ...................... 395 E. Bens quanto à possibilidade de comercialização............................... 401 Capítulo IV Dos fatos jurídicos 1. Teoria geral dos fatos jurídicos........................................................................ 413 A. Conceito de fato jurídico em sentido am plo....................................... 413 B . Classificação dos fatos jurídicos ............................................................ 414 C. Aquisição de direitos............................................................................... 416 D. Modificação dos direitos......................................................................... 419 E. Defesa dos direitos ................................................................................... 421 E. Extinção dos direitos................................................................................ 422 2. Fato jurídico "stricto sensu" ........................................................................... 428 A. Conceituação e classificação.................................................................. 428 B. Prescrição como fato jurídico ................................................................ 430 b .l. Conceito e requisitos da prescrição............................................ 430 b.2. Prescrição aquisitiva e extintiva .................................................. 440 b .3. Normas gerais sobre a prescrição................................................. 441 b.4. Prazos prescricionais ..................................................................... 446 b.S. Ações imprescritíveis..................................................................... 451 C. Decadência ................................................................................................ 453 c .l. Conceito, objeto e arguição da decadência............................... 453 c.2. Efeitos ............................................................................................... 456 c.3. Prazos de decadência..................................................................... 458 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 12 D. Distinção entre prescrição e decadência ............................................. 461 3. Ato jurídico em sentido estrito ......................................................................... 469 A. Conceito e classificação .......................................................................... 469 B. Ato jurídico em sentido estrito e negócio jurídico............................ 470 4. Negócio jurídico................................................................................................. 476 A. Conceito .................................................................................................... 476 B. Classificação .............................................................................................. 477 C. Interpretação do negócio jurídico........................................................ 479 D. Elementos constitutivos.......................................................................... 484 E. Elementos essenciais gerais ou comuns à generalidade dos negócios jurídicos.............................................................................................. 485 e .l. Capacidade do. agente................................................................... 485 e.2. Objeto lícito, possível, determinado e determinável.............. 489 e.3. Consentimento .............................................................................. 490 e.3.1. Manifestação da vontade ................................................. 490 e.3.2. Defeitos do negócio jurídico........................................... 491 F. Elementos essenciais particulares........................ ................................ 547 f .l . Forma do negócio jurídico ............................................................ 547 f.2. Prova do ato negocial .................................................................... 551 G. Elementos acidentais .............................................................................. 568 g .l. Generalidades................................................................................. 568 g.2. Condição ......................................................................................... 569 g.3. Termo................................................................................................ 575 g-4. Modo ou encargo ........................................................................... 579 H. Nulidade do negócio jurídico................................................................ 583 h .l. Conceito e classificação ................................................................ 583 h.2. Efeitos da nulidade......................................................................... 586 h.3. Distinções entre nulidade e anulabilidade................................ 589 5. Ato ilícito........................................................................................................... 598 A. Conceito e elementos do ato ilícito ..................................................... 598 B. Consequência do ato ilícito................................................................... 603 C. Atos lesivos que não são ilícitos ........................................................... 604 Bibliografia ............................................................................................................ 613 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o Prefácio Com o intuito de sermos útil aos que se iniciam no estudo do direito civil, procuramos neste livro apresentar um panorama das doutrinas concernentes à Parte Geral do direito civil, dando uma noção genérica e esquemática do sistema jurídico civil. Propusemo-nos a apresentar os conceitos estruturais, registrando os princípios básicos, para que os alunos pudessem ter uma ordem de conceitos de relativa riqueza explicativa, para adotarem uma atitude analítica e crítica ante as questões jurídicas. Sob uma feição de clareza e síntese, apreciamos os problemas jurídicos, de conformidade com seus mais recentes desenvolvimentos, empreendendo estudos das orientações teóricas vigentes atinentes à Parte Geral do novo Código Civil, salientando a sua função na seara juscivilística e em outros âmbitos do direito. Atendendo à ideia de que o que convém aos alunos são conceitos pormenorizados, objetivos e nítidos, bastando um golpe de vista para serem compreendidos, colocamos ao final de cada ponto um quadro sinótico para proporcionar uma visão geral da matéria ministrada. Eis o porquê do título do nosso livro: Teoria geral do direito civil, uma vez que nele se contém a exposição de problemas fundamentais do direito civil. Trata-se de uma disciplina eminentemente formativa, destinada a criar nos estudiosos uma mentalidade jurídica, proporcionando-lh.es uma bagagem cultural para a compreensão de conceitos juscivilísticos fundamentais. Maria Helena Diniz CAPÍTULO F i n a l i d a d e Direito positivo A . N o ç ã o d e d i r e i t o Todo conhecimento jurídico necessita do conceito de direito1. O conceito é um esquema prévio, um ponto de vista anterior, munido do qual o pensamento se dirige à realidade, desprezando seus vários setores e somente fixando aquele que corresponde às linhas ideais delineadas pelo conceito2. Sendo esse conceito um suposto da ciência do direito, ela jamais poderá determiná-lo. A definição essencial do direito é tarefa que ultrapassa a sua competência. Trata-se de problema supracientífico, ou melhor, jusfilosófico, já que a questão do "ser" do direito constitui campo próprio das. indagações da ontologia jurídica3. Contudo a ontologia jurídica ao executar sua missão encontrará em seu caminho graves e intrincadas dificuldades que desafiam a argúcia dos 1. Emest Beling, La Science du droit, sa fonction et ses limites, in Recueil d'études sur les sources du droit, en honneur de Geny, t. 2, p. 150. 2. Lourival Vilanova, Sobre o conceito do direito, Recife, Imprensa Oficial, 1947, p. 28 e 29. Não se trata de formular uma definição nominal do direito, que consiste em dizer o que uma palavra significa. Não convém empregar uma definição real descritiva, que é utilizada, em regra, nas ciências naturais, pois é aquela que na falta de caracteres essenciais enumera os caracteres exteriores mais marcantes de uma coisa para permitir distingui-la de todas as outras, nem uma definição acidental que revela tão somente um elemento acidental, próprio do definido, mas contingente. A definição que se deve buscar é a real essencial, que consiste em dizer o que uma coisa é, desvendando as essências das próprias coisas que essa palavra designa. Vide Régis Jolivet, Curso de filosofia, 7. ed., Rio de Janeiro, Agir, 1965, p. 36. 3. Del Vecchio: "La definizione dei diritto in genere è una indagine che trascende la competenza de ogni singola scienza giuridica ed è invece il primo compito delia Filosofia dei Diritto" (Lezioni de filosofia dei diritto, 9. ed., Milano, Giuffrè, 1953, p. 2). 18 C u r s o d e D ir e i t o C iv il B r a s i l e ir o pensadores. O grande problema consiste em encontrar uma definição única, concisa e universal, que abranja as inúmeras manifestações em que se pode apresentar o direito e que o purifique de notas contingentes, que velam sua verdadeira natureza, assinalando as essências4 que fazem dele uma realidade diversa das demais. Como nos ensina com clarividência Lourival Vilanova5, o conceito para ser universal há de abstrair de todo conteúdo, pois o único caminho possível será não reter, no esquema conceitual, o conteúdo que é variável, heterogêneo, acidental, determinado hic et nunc, mas sim as essências, que são permanentes e homogêneas. Ante a multiplicidade do dado, o conceito deve conter apenas a nota comum, a essência que se encontra em toda multiplicidade. No entanto, não há entre os autores um certo consenso sobre o conceito do direito; impossível foi que se pusessem de acordo sobre uma fórmula única. Realmente, o direito tem escapado aos marcos de qualquer definição universal; dada a variedade de elementos e particularidades que apresenta, não é fácil discernir o mínimo necessário de notas sobre as quais se deve fundar seu conceito6. Isto é assim porque o termo "direito" não é unívoco, e nem tampouco equívoco7, mas análogo, pois designa realidades conexas ou relaciona4. Definir essencialmente um objeto é explicitar as notas essenciais desse objeto de conhecimento; é determinar o que ele é (Fausto E. Vallado Berrõn, Teoria general dei derecho, Univ. Nac. Autônoma de México, 1972, p. 7). A essência é a soma dos predicados que, por sua vez, dividem-se em dois grupos: predicados que convêm à substância, de tal sorte que se lhe faltasse um deles não seria o que é, e predicados que convêm à substância mas que ainda que algum deles faltasse, continuaria a ser a substância o que é. Aqueles primeiros são a essência propriamente dita, porque se algum deles faltar à substância, ela não seria aquilo que é; e os segundos são o acidente porque o fato de tê-los ou não não impede de modo algum que seja aquilo que é (Manuel Garcia Morente, Fundamentos de filosofia, 4. ed., São Paulo, Mestre Jou, 1970, p. 76 e 96). 5. L. Vilanova, op. cit., p. 64-7. 6. Assim, para o direito, há uma experiência histórica, antropológica, sociológica, psicológica e axiológica. Tais experiências, ainda que diferentes entre si, são complementares e deslocam-se num mesmo plano. Demais, todas têm em comum um ponto de partida: a experiência do direito positivo, o direito tal como se dá em sua integridade constitutiva. A incidência maior num ângulo desta ou daquela experiência leva a cortes meramente metodológicos, a objetos formais diferentes: ao direito como fato histórico, como fato sociológico etc. É o que nos ensina L. Vilanova (Lógica, ciência do direito e direito, in Filosofia, v. 2, p. 535, Anais do VIII Congresso Interamericano de Filosofia). 7. Termo unívoco é o que se aplica a uma só realidade e o equívoco o que designa duas ou mais realidades desconexas. Vide Gofftedo Telles Jr., Tratado da consequência, p. 329-31. 19 das entre si. Deveras, esse vocábulo ora se aplica à "norma", ora à "autorização ou permissão" dada pela norma de ter ou fazer o que ela não proíbe, ora à "qualidade do justo" etc., exigindo tantos conceitos quantas forem as realidades a que se refere. Em virtude disso impossível seria dar ao direito uma única definição. De maneira que a tarefa de definir, ontologicamente, o direito resulta sempre frustrada ante a complexidade do fenômeno jurídico8, devido à impossibilidade de se conseguir um conceito universalmente aceito, que abranja de modo satisfatório toda a gama de elementos heterogêneos que compõem o direito. Portanto, não é da alçada do direito civil elaborar o conceito geral ou essencial do direito9. Mas em razão do princípio metódico da divisão do trabalho, há necessidade de se decompor analiticamente o direito que é objeto de várias ciências: sociologia jurídica, história do direito etc., constituindo assim o aspecto em que será abordado10. A escolha da perspectiva em que se vai conhecer está condicionada pelo sistema de referência daquele que conhece o direito, pressupondo uma reflexão sobre as finalidades da ordem jurídica. Ora, percebe-se que o direito só pode existir em função do homem. O homem é um ser gregário por natureza, é um ser eminentemente social, não só pelo instinto sociável, mas também por força de sua inteligência que lhe demonstra que é melhor viver em sociedade para atingir seus objetivos. O homem é "essencialmente coexistência"11, pois não existe apenas, mas coexiste, isto é, vive necessariamente em companhia de outros homens. Com isso, espontânea e até inconscientemente é levado a forT e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil 8. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Direito, retórica e comunicação, São Paulo, Saraiva, 1973, p. 62. Max Emest Mayer (Filosofia do direito, p. 120) escreve: "ainda não tem havido um jurista ou jusfilósofo que tenha conseguido formular um conceito de direito, unanimemente aceito". Roberto Vemengo (La interpretación literal de la leyysus problemas, Buenos Aires, 1971, p. 22 e s.) diz, com clareza, que a possibilidade de uma "mostração" de fenômenos que sejam casos de uma propriedade que se pretende investigar — o direito — (definição ostensiva do objeto) ou são impossíveis ou conduzem a resultados paradoxais. Cf. Maria Helena Diniz, A ciência jurídica, Resenha Universitária, 1978, p. 3-6. 9. Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil, 4. ed., 1972, p. 7. 10. L. Vilanova, Sobre o conceito de direito, cit., p. 40, 50 e 57. 11. Leonardo Van Acker, Sobre um ensaio de jusnaturalismo fenomenológico-existencial, RBF, 20(78):193. 20 mar grupos sociais: família, escola, associação esportiva, recreativa, cultural, religiosa, profissional, sociedade agrícola, mercantil, industrial, grêmio, partido político etc. Em virtude disso estabelecem os indivíduos entre si "relações de coordenação, subordinação, integração e delimitação12; relações essas que não se dão sem o concomitante aparecimento de normas de organização de conduta social"13. O ser humano encontra-se em estado convivencial e pela própria convivência é levado a interagir; assim sendo, acha-se sob a influência de outros homens e está sempre influenciando outros. E como toda interação produz perturbação nos indivíduos em comunicação recíproca, que pode ser maior ou menor, para que a sociedade possa se conservar é mister delimitar a atividade das pessoas que a compõem mediante normas jurídicas. "Se observarmos, atentamente, a sociedade, verificaremos que os grupos sociais são fontes inexauríveis de normas", por conseguinte, o Estado C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 12. Ensina-nos André Franco Montoro (Introdução à ciência do direito, v. 2, p. 363 e 364) que: "As relações sociais podem apresentar-se sob diferentes modalidades: Ia) relações de integração ou sociabilidade por fusão parcial — nas quais podemos encontrar três graus ou tipos de relacionamento: a 'massa', que é a modalidade mais fraca de integração, em que se opera apenas uma fusão superficial das consciências individuais, como no caso da 'massa' dos consumidores, dos desempregados, dos pedestres, unidos apenas pela consciência de afinidade de sua situação; a 'comunidade', correspondente ao grau médio de integração ou fusão de consciência, é a forma mais equilibrada, difundida e estável da sociabilidade por integração, tal como ocorre nas organizações sindicais, associações, clubes, famílias, partidos etc.; a 'comunhão', que representa o grau mais intenso de integração das consciências individuais, em um 'nós' coletivo, é o tipo que se realiza em raros momentos de entusiasmo ou vibração coletivos, como nos períodos de crise o reivindicações mais sentidas de uma coletividade; 2a) de delimitação ou sociabilidade por oposição parcial. As de integração caracterizam-se pelo aparecimento de um 'nós' enquanto que as de delimitação implicam a existência de um 'eu', 'tu', 'ele' etc. São sempre relações com outros — quer individuais, quer intergrupais — e apresentam-se sob três modalidades: de 'aproximação', como as decorrentes da amizade, da atração sexual, da curiosidade, das doações etc.; de 'separação', como as lutas de classes, os conflitos entre consumidores e produtores, entre nações e cidades; de 'estrutura mista', que envolvem elementos de aproximação e de separação, como as trocas, contratos etc.". Para Goffredo Telles Jr. (Introdução à ciência do direito (apostila), p. 237) "as de coordenação são as que existem entre partes que se tratam de igual para igual, ex.: compra e venda; e as de subordinação são as em que uma das partes é a sociedade política, exercendo sua função de mando. Ex.: convocação das eleições — a relação entre União, Estados e Municípios e contribuintes de imposto". 13. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, Bushatsky, 1973, p. 41. 21 T e o iu a G e r a l d o D i r e i t o C ivil não é o criador único de normas jurídicas14, porém é ele que condiciona a criação dessas normas, que não podem existir fora da sociedade política. Há um pluralismo de ordenações jurídicas; cada grupo social tem suas normas. Não é somente o Estado a fonte exclusiva de normas de direito, mas ele é uma organização territorial capaz de exercer o seu poder sobre as associações e pessoas, regulando-as, dando assim uma expressão integrada às atividades sociais. Donde se conclui que o Estado é uma instituição maior, que dispõe de amplos poderes e que dá efetividade à disciplina normativa das instituições menores. De modo que uma norma só será jurídica se estiver conforme a ordenação da sociedade política; logo, o Estado é o fator de unidade normativa da nação. De um lado a realidade nos mostra um pluralismo de associações e de ordenações jurídicas, e de outro, a unidade da ordem normativa15. Logo, as normas fundam-se na natureza social humana e na necessidade de organização no seio da sociedade. A norma jurídica pertence à vida social, pois tudo o que há na sociedade é suscetível de revestir a forma da normatividade jurídica. Somente as normas de direito podem assegurar as condições de equilíbrio imanentes à própria coexistência dos seres humanos, possibilitando a todos e a cada um o pleno desenvolvimento das suas virtualidades e a consecução e gozo de suas necessidades sociais, ao regular a possibilidade objetiva das ações humanas. Sem professarmos uma doutrina sociologista, afirmamos o caráter "social" da norma jurídica, no sentido de que uma sociedade não pode fundarse senão em normas jurídicas, que regulamentam relações interindividuais. Nítida é a relação entre norma e poder. O poder é elemento essencial no processo de criação da norma jurídica. Isto porque toda norma de direito envolve uma opção, uma decisão por um caminho dentre muitos caminhos possíveis. É evidente que a norma jurídica surge de um ato decisórío 14. Goffredo Telles Jr., Introdução, cit. (apostila), fase. 2, p. 112; O povo e o poder, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 1-68; Gerhard Husserl, em seu trabalho Validade e eficiência do direito (1925), escreve: "Reduzir todas as fontes do direito ao Estado é um erro. Nenhum Estado poderá jamais absorver todas as fontes do direito. Um monopólio do Estado para engendrar e constatar o direito numa comunidade jurídica é, absolutamente, irrealizável. A criação autônoma do direito se afirma sempre". 15. Maria Helena Diniz, Conceito de norma jurídica como problema de essência, Revista dos Tribunais, 1977, p. 18-25. 22 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o do Poder (constituinte, legislativo, judiciário, executivo, comunitário ou coletivo, e individual) político. Verifica-se que a norma jurídica, às vezes, está sujeita não à decisão arbitrária do Poder, mas à prudência objetiva exigida pelo conjunto das circunstâncias fático-axiológicas em que se acham situados os respectivos destinatários. Se assim não fosse a norma jurídica seria, na bela e exata expressão de Rudolf von Ihering, um "fantasma de direito", uma reunião de palavras vazias; sem conteúdo substancial esse "direito fantasma", como todas as assombrações, viveria uma vida de mentira, não se realizaria, e a norma jurídica foi feita para se realizar16. A norma não corresponderia a sua finalidade; seria, no seio da sociedade, elemento de desordem, anarquia, instrumento de arbítrio e de opressão. A norma jurídica17 viveria numa "torre de marfim, isolada, à margem das realidades, autossuficiente, procurando em si mesma o seu próprio princípio e o seu próprio fim". Abstraindo-se do homem e da sociedade, alhear-se-ia de sua própria finalidade e de suas funções, passaria a ser uma pura ideia, criação cerebrina e arbitrária18. À vista do exposto poder-se-á dizer que o direito positivo é o conjunto de normas/estabelecidas pelo poder político, que se impõem e regulam a vida social de um dado povo em determinada época19. Portanto, é mediante normas que o direito pretende obter o equilíbrio social, impedindo a desordem e os delitos, procurando proteger a saúde e a moral pública, resguardando os direitos e a liberdade das pessoas20. Com isso não estamos afirmando que o direito seja só norma21; apenas por uma questão de método é que assim o consideramos, uma vez que a 16. R. von Ihering, Uespntdu droit romain, t. 3, § 43, p. 16. 17. Bigne de Villeneuve, La crise du "sens comun" dans les sciences sociales, p. 96. 18. Maria Helena Diniz, Conceito de norma jurídica, dt., p. 28-35. 19. Capitant, Introduction à Vétude du droit civil, p. 8; Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, Forense, 1976, v. 1, p. 18 e 19; Ruggiero e Maroi, Istituzioni di diritto privato, Milano, 1955, v. 1, § 2a. 20. Nelson Godoy Bassil Dower, Curso moderno de direito civil, Ed. Nelpa, 1976, v. 1, p. 6. 21. Santi Romano {Uordinamento giuriáico, Firenze, 1951, p. 25) éscreve que: "Derecho no es solo la norma dada, sino también la entidad de la cual ha emanado la norma. El proceso de objetivación, que da lugar al fenômeno jurídico, no se inicia en la emanación de una regia, sino en un momento anterior: las normas no son sino una manifestadón, una de las 1 distintas manifestaciones; un medio por medio dei cual se hace valer elpoder dei 'yo' social". 23 tarefa do civilista é interpretar as normas de direito civil, embora deva estudá-las em atenção à realidade social subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, técnico etc.) e ao valor, que confere sentido a esse fato, regulando a ação humana para a consecução de uma finalidade22. Realmente, parece útil lembrar, como o faz Van Acker, que uma vez gerada, não fica a norma estagnada, mas continua a sua vida própria, tendendo à autoconservação pela integração obrigatória que mantém os fatos da sua alçada e os valores com que os pretende reger23. Logo, os elementos do direito: fato, valor e norma coexistem numa unidade concreta. Para melhor elucidar tal questão, passamos a transcrever o seguinte exemplo de Miguel Reale24: ao se interpretar a norma que prevê o pagamento de letra de câmbio na data de seu vencimento, sob pena do protesto do título e de sua cobrança, goza o credor, desde logo, do privilégio de promover a execução do crédito. De modo que, se há um débito cambiário, deve ser .pago, e, se não for quitada a dívida, deverá haver uma sanção. Como se vê, a norma de direito cambial representa uma disposição legal que se baseia num fato de ordem econômica (o fato de, na época moderna, as necessidades do comércio terem exigido formas adequadas de relação) e que visa a assegurar um valor, o valor do crédito, a vantagem de um pronto pagamento com base no que é formalmente declarado na letra de câmbio. Tem-se um fato econômico que se liga a um valor de garantia para se expressar por meio de uma norma legal que atende às relações que devem existir entre aqueles dois elementos. T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil Raul Ahumada transcreve esse trecho in Sobre el concepto dei derecho, RBF, (55):361. Giorgio Campanini (Ragione e volontà nélla legge, Milano, Giuffrè, p. 3) entende também que o conceito de direito não pode identificar-se com o de norma ao dizer: "Indubbiamente ií concetto di legge è parte integrante dei piú generale concetto ãi Diritto, ma rton si risolve in esso, perchè Diritto non e soltanto la legge, nè con essa è stato storicamente identificato: accanto alia legge positiva sono sempre State poste, anche nél momento normativo dei diritto, legge naturale consuetudine, talchè ridurre la storia dei concetto di Diritto alia storia dei concetto di legge sarebbe un'arbitraria e ingiustificata trasposizione sul piano storico di attuali posizioni teoretiche non sufficientemente e criticamente fondate". 22. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, Rio de Janeiro, Forense, 1971, p. 16; Miguel Reale, Lições preliminares de direito, São Paulo, Saraiva, 1976, p. 65. 23. Van Acker, op. cit., p. 170. 24. M. Reale, Lições preliminares, cit., p. 66. 24 Portanto o jurista deve ter uma atitude intencionalmente compreensiva e teorética, ao estudar as normas postas pelo poder político, cujo valor deve procurar captar, e atualizar, em razão do fato que lhe é subjacente25. Com isso poder-se-á definir o direito como uma ordenação heterônoma das relações sociais, baseada numa integração normativa de fatos e valores26. B . D i r e i t o o b j e t i v o e d i r e i t o s u b j e t i v o Costuma-se distinguir o direito objetivo do subjetivo. O direito objetivo é o complexo de normas jurídicas que regem o comportamento humano, de modo obrigatório, prescrevendo uma sanção no caso de sua violação (jus est norma agendí). ■ O direito subjetivo, para Goffredo Telles Jr., é a permissão dada por meio de norma jurídica, para fazer ou não fazer alguma coisa, para ter ou não ter algo, ou, ainda, a autorização para exigir, por meio dos órgãos competentes do poder público ou por meio de processos legais, em caso de prejuízo causado por violação de norma, o cumprimento da norma infringida ou a reparação do mal sofrido. P. ex.: são direitos subjetivos as permissões de casar e constituir família; de adotar pessoa como filho; de ter domicílio inviolável; de vender os seus pertences; de usar, gozar e dispor da propriedade; de alugar uma casa sua; de exigir pagamento do que é devido27; de mover ação para reparar as conseqüências de ato considerado ilícito. Infere-se, daí, que duas são as espécies de direito subjetivo: a) o comúm da existência, que é a permissão de fazer ou não fazer, de ter ou não ter alguma coisa, sem violação de preceito normativo, e b) o de defender direitos, que é a autorização de assegurar o uso do direito subjetivo, de modo que o C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 25. M. Reale, O direito como experiência, São Paulo, Saraiva, p. 163 e s. 26. Adaptação do conceito dado por M. Reale, Lições preliminares, cit., p. 67. 27. Esta é a definição de G. Telles Jr. (O direito quântico, 5. ed., São Paulo, Max Limonad, 1981, cap. VIII; e Direito subjetivo — I, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 28, p. 298) por nós adotada. Autores há, como Kelsen, que procuram demonstrar que o direito subjetivo não existe como algo independente. O mestre de Viena, ao estabelecer que o direito deve ser visto como um sistema de normas, afirma que o direito subjetivo nada mais é do que o reflexo de um dever jurídico, que existe por parte dos outros em relação ao indivíduo de que se diz ter um direito subjetivo. Como o dever jurídico é a própria norma, o direito subjetivo é o fenômeno normativo colocado à disposição do sujeito (Kelsen, Teoria pura do direito, 2. ed., 1962, v. 1, n. 29; Tércio Sampaio Ferraz Jr., Direito subjetivo — U, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 28, p. 331). 25 T e o r ia G e r a l d o D ir e i t o C iv il lesado pela violação da norma está autorizado por ela a resistir contra a ilegalidade, a fazer cessar o ato ilícito, a reclamar reparação pelo dano e a processar criminosos, impondo-lhes pena. Essas autorizações são permissões concedidas pela coletividade, por meio de normas de garantia, que são as 1 normas jurídicas28. O direito subjetivo é subjetivo porque as permissões, com base na norma jurídica e em face dos demais membros da sociedade, são próprias das pessoas que as possuem, podendo ser ou não usadas por elas29. É comum dizer-se que o direito subjetivo é facultas agendi. Porém as faculdades humanas não são direitos, são qualidades próprias do ser humano, que independem de norma jurídicípara sua existência. A filosofia clássica já ensinava que fatíuldade são potências ativas ou qualidades, que dispõem, imediatamente, um ser a agir. Compete à norma jurídica ordenar tais faculdades humanas; logo, o uso dessas faculdades é lícito ou ilícito, conforme for permitido ou proibido. Portanto o direito subjetivo é a permissão para o uso das faculdades humanas. P. ex.: todos temos faculdade de ser proprietáriç, porém essa faculdade não é o direito de propriedade, porque o direito de propriedade não é mera faculdade de ser proprietário, mas a permissão, dada a quem é proprietário, de usar, gozar e dispor de seus bens (CÇ, àrt. 1.228, caput). Qualquer dos cônjuges, segundo o art. 1.647, I, do Código Civil, não pode, sem 28. G. Telles Jr., Direito subjetivo, cit., v. 28, p. 313 e 314; O direito quântico, cit., p. 407- 9; Iniríação na ciência do direito, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 255-96; Palavras do amigo aos estudantes de direito, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2003, p. 1-40. 29. Bassil Dower, op. cit., p. 7; Goffredo Telles Jr., Direito subjetivo, cit., v. 28, p. 299; e O direito quântico, cit., p. 391, e Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Direito subjetivo, cit, v. 28, p. 331 e 332), que escreve: "Karl Olivecrona, p. ex., diz que quando usamos esta expressão, fazemo-lo como se ela denotasse uma posição real de uma pessoa com respeito a uma coisa. Mas definir esta posição real é impossível, pois o'direito,de alguém à propriedade de um terreno não é idêntico à sua posse real e nem à garantia do Estado a uma posse tranqüila ou aos preceitos dirigidos a todos, proibindo sua interferência naquela posse, nem à possibilidade de iniciar uma ação contra os que violam a posse. O direito subjetivo à propriedade, como expressão, não tem um referencial real. Trata-se de uma expressão ou 'palavra oca' que tem apenas a função de influir na conduta, na medida em que serve de nexo para um conjunto de regras, as regras de aquisição de propriedade, de indenização de danos etc., e que se referem à situação em que uma pessoa é proprietária de um objeto e outra pessoa faz algo em relação a este objeto. Trata-se de uma função facilitadora das relações jurídicas, pois se suprimíssemos a expressão as relações continuariam a existir, ainda que fosse mais difícil manejá-las de modo unitário". 26 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o consentimento do outro, salvo no regime de separação absoluta de bens, alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis (CPC, arts. 10, com redação da Lei n. 8.952/94, e 11, parágrafo único). Pode fazê-lo, mas não tem direito de alienar sem outorga uxória ou marital. Como se vê, a chamada facultas agendi é anterior ao direito subjetivo. Primeiro, a faculdade de agir, e, depois, a permissão de usar essa aptidão30. Ante esta concepção, não podem ser aceitas as três teorias sobre a natureza do direito subjetivo, consagradas pela doutrina tradicional, que são: 1) A da vontade, de Savigny e Windscheid31, que entende que o direito subjetivo é o poder da vontade reconhecido pela ordem jurídica. A esta teoria surgiram as seguintes objeções: a) Sua definição é menos extensa que o definido, pois há direitos em que não existe uma vontade real do seu titular. P. ex.: os incapazes têm direito subjetivo, podem ser proprietários, herdar etc., mas não possuem vontade em sentido jurídico e próprio; o nascituro tem direito à vida, ao nome, à sucessão, embora não possua vontade própria; as pessoas jurídicas têm direitos, mas não se pode falar, com propriedade, na "vontade" desses entes; o empregado tem direito às férias anuais remuneradas; mesmo que queira renunciar a ele, sua renúncia não terá efeito jurídico, b) Casos existem em que há uma vontade real, porém o ordenamento jurídico não protege, propriamente, a "vontade" do titular, mas, sim, o seu direito32, c) O direito subjetivo não depende da vontade do titular. Pode existir sem fundamento nessa vontade. Deveras, os direitos de alienar, comprar, emprestar podem existir sem que haja nenhuma vontade de alienar, comprar, emprestar. O direito de cobrar um débito pode ser desprezado pelo credor; o direito de propriedade pode surgir sem que o proprietário o deseje. 2) A do interesse, de Ihering, para a qual o direito subjetivo é o interesse juridicamente protegido por meio de uma ação judicial33. Não se diga, 30. G. Telles Jr., Direito subjetivo, cit., v. 28, p. 300-3; e O direito quântico, cit., p. 391-8. As permissões dadas por meio de norma podem ser explícitas, quando mencionadas expressamente (CC, arts. 5a, 1.639 e 2.013), ou implícitas, quando não forem, embora seu uso seja regulado pelas normas, ou assegurado por elas, pela proibição do que impede esse uso ou, simplesmente, quando não for proibido por elas (GC, arts. 70 a 78; 1.525 a 1.564). 31. Windscheid, Pandectas, v. 1, § 37, p. 80 e s.; Savigny, Tratado de direito romano, § 14. 32. Essas críticas foram feitas por Ihering. Vide Franco Montoro, op. cit., v. 2, p. 222-7. 33. Von Ihering, üesprit du droit romain, v. 4, § 70 e s. 27 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il também, que o direito subjetivo é interesse juridicamente protegido porque: a) Há interesses, protegidos pela lei, que não constituem direitos subjetivos. P. ex.: no caso das leis de proteção aduaneira à indústria nacional, as empresas têm interesse na cobrança de altos tributos pela importação dos produtos estrangeiros, mas não têm nenhum direito subjetivo a tais tributos, b) Há hipóteses de direitos subjetivos em que não existe interesse da parte do titular. P. ex.: os direitos do tutor ou do pai em relação aos filhos são instituídos em benefício dos menores e não do titular, c) Na verdade, quando se diz que direito subjetivo é um "interesse", o que se está dizendo é que o direito subjetivo é um bem material ou imaterial que interessa. P. ex.: direito à vida, à liberdade, ao nome, à honra etc. Ora, interesse é utilidade, vantagem ou proveito assegurado pelo direito; logo, não tem sentido dizer que direito subjetivo é objeto que interessa. Os interesses ou bens não constituem direito subjetivo, são objetos em razão dos quais o direito subjetivo existe. Quando algo interessa a uma pessoa, ela procura consegui-lo. A pessoa age, buscando o bem que lhe interessa. Se ela age é porque tem essa faculdade. A permissão para empregá-la é que é direito subjetivo. O direito objetivo permite que à pessoa faça ou tenha o que lhe interessa ou não. Essa permissão é que é juridicamente protegida porque foi dada pelo direito objetivo e porque seu emprego é assegurado pelos remédios de direito34. 3) A mista, de Jellinek, Saleilles e Michoud35, que define o direito subjetivo como o poder da vontade reconhecido e protegido pela ordem jurídica, tendo por objeto um bem ou interesse; não pode ser aceita, por nós, pelas mesmas razões das anteriores. Nítida é a Correlação existente entre o direito objetivo e o subjetivo. Apesar de intimamente ligados, são inconfundíveis. O direito objetivo é sempre um conjunto de normas impostas ao comportamento humano, autorizando-o a fazer ou a não fazer algo. Estando, portanto, fora do homem, indica-lhe o caminho a seguir, prescrevendo sanção em caso de violação. O direito subjetivo é sempre permissão que tem o. ser humano de agir conforme o direito objetivo. 3.4. Vide Dabin, Le droit subjectif, Paris, Dalloz, 1952, p. 72 e s.; Franco Montoro, op. cit.; Anotações de aula do Prof. Dr. Goffredo Telles Jr., ministrada no Curso de Mestrado da USP em 1971, O direito quântico, cit., p. 398-400; Iniciação, cit., p. 105-16. 35. Saleilles, De ia personnalité jitridique, Paris, 1922, p. 547-8; Michoud, La thêorie de la personnalité morale, Paris, 1932, v. 1, p. 107 e s. 28 Um não pode existir sem o outro. O direito objetivo existe em razão do subjetivo, para revelar a permissão de praticar atos. O direito subjetivo, por sua vez, constitui-se de permissões e autorizações dadas por meio do direito objetivo36. C . D i r e i t o p ú b l i c o e d i r e i t o p r i v a d o A clássica divisão do direito em público e privado é oriunda do direito romano, como se vê na seguinte sentença de Ulpiano: “Hujus studii duae sunt positiones, públicum et privatum. Publicum jus est quoã ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem: sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatum"37. O direito público era aquele concernente ao estado dos negócios romanos; o direito privado era o que disciplinava os interesses particulares. Esse critério da utilidade ou interesse visado pela norma é falho, porque não se pode afirmar, com segurança, se o interesse protegido é do Estado ou dos indivíduos, porque nenhuma norma atinge apenas o interesse do Estado ou do particular. Tais interesses são correlatos, de modo que a norma jurídica que tiver por finalidade a utilidade do indivíduo visa também a do Estado e vice-versa. Deveras, casos há em que é nítida a interpenetraçâo existente entre o interesse individual e o social, como, p. ex., o direito de família, pois não há tema de índole mais individual do que o casamento, entretanto, não há, também, tema de maior, relevância para a sociedade do que á estabilidade familiar. Nas hipóteses da proibição de construção em desacordo com posturas municipais, da interdição da queima de matas ou da obrigatoriedade de se inutilizarem plantações atingidas por pragas, a interpenetraçâo dos interesses públicos e particulares é tão grande que parece haver o sacrifício do individual ao social, porém, na prática, ocorre, de modo indireto, vantagem para o cidadão. Delineia-se uma zona de interferência recíproca, o que dificulta a exata caracterização da natureza pública ou privada dessas normas38. C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o 36. G. Telles Jr., Diieito subjetivo, cit., v. 28, p. 312 e 313. 37. Digesto, I, 1, 1, 2. 38. Anadeto de Oliveira Faria, Direito público e privado, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 28, p. 40. Nas p. 41 e 42, faz esse autor uma observação de' ordem histórica: no momento em que o poder público sofreu alterações profundas, ao fim da Antiguidade e no inído da Idade Média, quando o Estado sofreu grave colapso, em decorrênda da invasão dos bárbaros e com o estabelecimento do feudalismo, o direito público entrou em crise, tomando-se inexistente. Depois da queda do Império Romano, os 29 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Em razão disso houve autores que concluíram que o fundamento dessa divisão encontrava-se no "interesse preponderante ou dominante". Assim as normas de direito público seriam as que assegurariam diretamente o interesse da sociedade e indiretamente o do particular; e as de direito privado visariam atender imediatamente o interesse dos indivíduos e mediatamente o do poder público. Entretanto, esse critério é insatisfatório; tão interligados estão, que é impossível verificar, com exatidão, qual o interesse que prepondera39. É, portanto, inidôneo separar o interesse público do privado e admitir que a utilidade dos cidadãos seja antagônica à utilidade pública. Modernamente, recusa-se a utilidade ou interesse como fator exclusivo da diferenciação em tela40. Já para Savigny essa tradiciorial divisão baseia-se no fim do direito. É o que se infere deste seu texto: "Enquanto no direito público o todo se apresenta como fim e o indivíduo permanece em segundo plano, no direito privado cada indivíduo, considerado em si, constitui o fim deste ramo do direito e a relação jurídica apenas serve como meio para a sua existência e para as suas condições particulares"41. Esta concepção não teve grande aceitação, pois o Estado também pode ser fim de relação jurídica regulada pelo direito privado, como no caso em que for parte num contrato de compra e venda42. Ihering propôs, para demonstrar a existência da dicotomia, três espécies de propriedade: a individual, cujo "sujeito-fim" é o indivíduo; a do Estado, em que o "sujeito-fim" é o Estado, e a coletiva, na qual o "sujeitofim" é a sociedade propriamente dita. A propriedade estàtal tem por titular textos sobre a administração imperial tomaram-se destituídos de qualquer valor ou . utilidade. Os jurisconsultos passaram a recorrer às fontes do direito romano, compiladas por Justiniano, apenas para procurar as normas de direito privado. O feudalismo confundiu soberania e propriedade, atribuindo ao titular do domínio poderes típicos do Estado, quais sejam os de distribuir a justiça, manter exércitos ou cunhar moedas. Disto resultava a possibilidade de serem as funções públicas reguladas com base em normas de âmbito privado. Desse modo desapareceu, durante a Era Medieval, a clássica distinção entre direito público e direito privado. Somente após a Revolução Francesa, com a fixação do novo conceito de soberania, é que retoma a divisão entre direito público e privado. Vide Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, Forense, 1976, v. 1, p. 26. 39. Anacleto de Oliveira Faria, op. cit., p. 45. 40. Caio M. S. Pereira, op. cit., p. 26. '41. Savigny, Sistema de direito romano, v. 1, § 9a. 42. G. Telles Jr., Introdução, cit., fase. 4,1972, p. 231; Iniciação, cit., p. 225-54. 30 o govemo da nação (p. ex.: o automóvel do Governador), e a coletiva, o povo (exempllflcativamente, uma praça pública). Insustentável é essa tese porque o direito não se reduz ao direito de propriedade43. Kahn apresenta-nos como critério para efetivar tal distinção o da "patrimonialidade", segundo o qual o direito privado teria conteúdo patrimonial enquanto o direito público não conteria questões dessa ordem. Entretanto, há partes do direito privado que não têm natureza patrimonial, como o direito de família, e normas de direito público com caráter patrimonial, como as concernentes às desapropriações, orçamentos etc.44. Outro critério foi proposto por Jellinek ao sustentar que o cerne da questão está em que o direito privado regulamenta relações dos indivíduos considerados como tais, e o direito público, a organização, relações e funções daqueles que têm poder de império, ou seja, relações entre sujeitos dotados de imperium, relações entre esses sujeitos e os que se submetem ao seu imperium. Para ele só têm poder de império o Estado e entes similares. Imperfeita é esta tese, porque mesmo os sujeitos dotados de imperium podem ser sujeitos de direito privado, como na hipótese em que o Estado é parte num contrato de compra e venda45. Goffredo Telles Jr.46 apresenta-nos um critério misto, pelo qual distingue-se o direito público do direito privado com base em dois elementos: o interesse preponderante protegido pela norma e a forma da relação jurídica regulada por prescrição normativa. Isto é assim porque se o direito é autorizante, é sempre um vínculo entre pessoas e este vínculo pode ser de coordenação ou de subordinação. A relação jurídica de coordenação é a que existe entre partes que se tratam de igual para igual. Um particular, ou mesmo o govemo, quando compra um objeto, paga um determinado preço e recebe o bem comprado. Há um laço entre o estabelecimento comercial e o comprador, que sempre terá tratamento igual, seja indivíduo ou governo. Se o govemo quiser pagar preço menor do que o estipulado, o comerciante não vende sua mercadoria. A relação jurídica de subordinação é aquela em que uma das partes é o govemo da sociedade política, que exerce sua C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s il e ir o 43. G. Telles Jr., Introdução, cit., p. 232. 44. Anacleto de Oliveira Faria, op. cit., p. 45; A. Franco Montoro, Introdução à ciência do direito, Ed. Martins, 1971, v. 2, p. 168 e 169. 45. G. Telles Jr., Introdução, cit., p. 233. 46. G. Telles Jr., Introdução, cit., p. 236-8. 31 função de mando, como, p. ex., a existente entre o Estado e os cidadãos por ocasião da convocação das eleições ou entre o Estado e os contribuintes de imposto, de modo que se o indivíduo não atender aos reclamos estatais deverá ser punido, conforme a norma jurídica. É, pois, uma relação entre partes que se tratam de superior para inferior. Assim o direito público seria o que protege interesses preponderantemente públicos, regulando relações jurídicas de subordinação, e o direito privado, o que concerne a interesses preponderantemente particulares e que regula relações jurídicas de coordenação. Gurvitch e Radbruch47 também entendem que o direito público seria um direito de subordinação^ havendo desigualdade nas relações jurídicas, com o primado da justiça distributiva, e o direito privado seria um direito de coordenação, em que as partès encontrar-se-iam em absoluta igualdade, subordinadas à justiça comutativa. Anacleto de Oliveira Faria observa que a "subordinação" implicaria as disposições de ordem pública, absolutamente compulsórias: a coordenação, as normas de caráter supletivo. Não resiste, pois, esse critério, às críticas, pois o direito internacional público ficaria à margem da distinção, já que em seu âmbito predomina a mera coordenação, sendo muito tênues as normas imperativas da organização mundial de nações48. Eis a razão pela qual, hodiernamente, se tem buscado o elemento diferenciador no sujeito ou titular da relação jurídica, associando-se o fator objetivo ao subjetivo. O direito público seria aquele que regula as relações em que o Estado49 é parte, ou seja, rege a organização e atividade do Estado considerado em si mesmo (direito constitucional), em relação com outro Estado (direito internacional), e em suas rèlações com os particulares, quando procede em razão de seu poder soberano e atua na tutela do bem coletivo (direitos administrativo e tributário). O direito privado é o que disciplina as relaT e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 47. Radbruch, Introduzione alia scienza dei diritto, Torino, Giappichelli, 1958. 48. Anacleto de Oliveira Faria, op. cit., p. 46. 49. Por Estado, em sua acepção mais ampla, entende-se o poder público (União, Estados, Municípios, Ministérios, Secretarias, Departamentos); as autarquias (órgãos que têm personalidade jurídica distinta da do Estado, mas que a ele se ligam, por serem criados por lei e exercerem função pública — INSS, OAB); as organizações internacionais (como a ONU, FAO, UNESCO, que são órgãos supranacionais, reconhecidos pelo Estado e que mantêm com eles relações jurídicas normais). É o que nos ensina A. Franco Montoro (op. cit., v. 1, cap. IV). 32 ções entre particulares50, nas quais predomina, de modo imediato, o interesse de ordem privada, como, p. ex., a compra e venda, a doação, o usufruto, o casamento, o testamento, o empréstimo etc.51. Pertencem ao direito público intemo: o direito constitucional, que visa regulamentar a estrutura básica do Estado, disciplinando a sua organização ao tratar da divisão dos poderes, das funções e limites de seus órgãos e das relações entre governantes e governados; o direito administrativo, que é o conjunto de normas que regem a atividade estatal, exceto no que se refere aos atos jurisdicionais e legislativos, visando à consecução de fins sociais e políticos ao regulamentar a atuação governamental, a administração dos bens públicos etc.; o direito tributário, disciplinando impostos, taxas e contribuições; o direito financeiro, que tem por escopo regular a despesa e a receita do Estado; o direito processual, que disciplina a atividade do Poder Judiciário e dos que a ele requerem ou perante ele litigam, correspondendo, portanto, à função estatal de distribuir a justiça; o direito penal, que é o complexo de normas que definem crimes e estabelecem penas, com as quais o Estado mantém a integridade da ordem jurídica, mediante sua função preventiva e repressiva; o direito previdenciário, que diz respeito à contribuição para o seguro social e aos benefícios dele oriundos (pensão, auxílios, aposentadoria etc.). No direito público externo, temos o direito internacional, que pode ser público, se se constitui de normas disciplinadoras das relações entre Estados, ou privado, se rege as relações do Estado com cidadãos pertencentes a Estados diversos52. Em que pese tal opinião entendemos que o direito internacional privado é ramo do direito público intemo por conter normas internas de cada país, que autorizam o juiz nacional a aplicar ao fato interjurisdicional a norma a ele adequada. C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e ir o 50. Por particular devemos entender as pessoas físicas ou naturais; as instituições particulares (associações, fundações, sociedades simples ou empresárias), enfim as pessoas jurídicas de direito privado e o próprio Estado, quando participa, muna transação jurídica, não na qualidade de poder público, mas na de simples particular. P. ex., como locatário de um prédio, o Estado figura na condição de inquilino, sujeito à Lei do Inquilinato (A. Franco Montoro, op. cit., v. 1, cap. IV). 51. Enneccerus, Tratádo de derecho civil, v. 1, § 31, p. 132; Ruggiero, Instituições de direito civil, v. 1, § 8a, p. 59; Caio M. S. Pereira, op. cit., p. 27-9. 52. Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, v. 1, p. 9 e 10; A. Franco Montoro, op. cit., v. 1, cap. IV; v. 2, p. 170 e s.; M. H. Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, São Paulo, Saraiva, 1994. 33 O direito privado abrange o direito civil, que regulamenta os direitos e deveres de todas as pessoas, enquanto tais, contendo normas sobre o estado, capacidade e as relações atinentes à família, às coisas, às obrigações e sucessões; o direito comercial, ou melhor, empresarial, que disciplina a atividade econômica de produção e circulação de bens e serviços do empresário e da sociedade empresária; o direito do trabalho, que rege as relações entre empregador e empregado, compreendendo normas sobre a organização do trabalho e da produção, e o direito do consumidor, conjunto de normas que regem as relações de consumo existentes entre consumidor e fornecedor53. Entretanto, há, nos dias atuais, uma.tendência à publicização do direito privado, em virtude da interferência do direito público nas relações jurídicas privadas, como ocorre com a Lei do Inquilinato e com as normas de direito de família54. Existe, ainda, a questão da unificação do direito privado, que até hoje é controvertida. Há os que defendem a unificação total, preconizando a eliminação do direito comercial, e os que pretendem a unificação parcial no que concerne ao direito obrigacional. Apesar desse movimento para unificar o direito privado, parece-nos que a tese da dualidade prevalecerá, pelo menos no que diz respeito ao campo da circulação da riqueza55. A maioria dos juristas56 entende ser impossível uma solução absoluta ou perfeita do problema da distinção entre direito público e privado. Embora o direito objetivo constitua uma unidade, sua divisão em público e privado é aceita por ser útil e necessária, não só sob o prisma da ciência do T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil 53. A. Franco Montoro, op. cit., v. 1, cap. IV, e v. 2, p. 191-202; W..Barros Monteiro, op. cit., p. 10; Fábio Ulhoa Coelho, Curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, 2003, v. 1, p. ( 11 e 12. 54. W. Barros Monteiro, op. cit., p. 11; Caio M. S. Pereira, op. cit., p. 30. 55. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, Rio de Janeiro, Forense, 1971, p. 26-8. 56. Còm exceção de: a) Duguit, que julga tal distinção ultrapassada e sem rigor lógico, pois entre os dois direitos há o mesmo espírito de justiça, sem diversidade de natureza. Mas, ao mesmo tempo, defende a subsistência da tradicional linha de separação, buscando o critério diferencial no tipo de sanção de um e outro direito; e b) Kelsen, que nega a diferença fundamental entre direito público e privado, pois com a "pureza metódica" surgiu o postulado de unidade do conhecimento jurídico-científico, desaparecendo o dualismo Direito e Estado (se este último, segundo o kelsenismo, tem alguma relação com o direito, sendo, portanto, objeto da jurisprudência, não pode ser mais do que uma ordem jurídica); eliminou-se o dualismo direito estatal e internacional. A esse respeito, vide Serpa Lopes, Curso de direito civil, Freitas Bastos, 1962, v. 1, p. 26; Kelsen, Teoria pura do direito, 2. ed., 1962, v. 2, p. 165-72; Legaz y Lacambra, Filosofia dei derecho, p. 122 e 123; Maria Helena Diniz, A ciência jurídica, cit., p. 26 e 27. 34 direito, mas também sob o ponto de vista didático57. Todavia, não se deve pensar que sejam dois compartimentos estanques, estabelecendo uma absoluta separação entre as normas de direito público e as de direito privado, pois intercomunicam-se com certa frequência58. D. F o n t e s j u r í d i c a s * O termo "fonte do direito" é empregado metaforicamente, pois em sentido próprio — fonte — é a nascente de onde brota uma corrente de água59. Justamente por ser uma expressão figurativa tem mais de um sentido. . Nesta acepção, "fonte jurídica" seria a origem primária do direito, havendo confusão com o problema da gênese do direito. Trata-se da fonte real ou material do direito, ou seja, dos fatores reais que condicionaram o aparecimento de norma jurídica60. Kelsen admite esse sentido do vocábulo "fonte do direito", apesar de não o considerar como científico-jurídico, quando com esse termo se designam todas as representações que, de fato, influenciam a função criadora e aplicadora do direito, como: os princípios morais e políticos, as teorias jurídicas, pareceres de especialistas. Fontes essas que, no seu entender, se distinguem das fontes do direito positivo, porque estas são juridicamente vinculantes e aquelas não o serão enquanto uma norma jurídica positiva não as tomar vinculantes, caso em que elas assumem o caráter de uma norma jurídica superior que determina a produção de uma norma jurídica inferior61. 4 C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s il e ir o 57. Anacleto de Oliveira Faria, op. cit., p. 47. Convém lembrar aqui que alguns autores têm alertado para uma tendência, cada vez maior, de atenuação da clássica distinção entre direito público e direito privado, principalmente no que atina à atuação de entidades do terceiro setor, que não são pessoas jurídicas de direito público, mas atuam, exclusivamente, na defesa de interesses públicos. 58. Caio M. S. Pereira, op. cit., p. 26. 59. Ensina-nos Nelson Saldanha (Fontes do direito — I, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 38, p. 47) que: "A sugestiva expressão latina fons et origo aponta para a origem de algo: origem no sentido concreto de causação e ponto de partida. Fonte, na linguagem corrente, pode aludir a um local ou a um fator, ou à relação entre um fenômeno e outro, do qual o primeiro serve de causa". Sobre fontes jurídicas, vide Maria Helena Diniz, Compêndio de introdução à ciência jurídica, São Paulo, Saraiva, 1989, p. 255-98; Pablo S. GagÜano e Rodolfo Pamplona Fa, Novo curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, 2002, v. 1, p. 9-29. 60. Nelson de Souza Sampaio, Fontes do direito — II, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 38, p. 51 e 53. 61. Kelsen, Teoria pura do direito, 2. ed., 1962, v. 2, p. 85. 35 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Emprega-se também a expressão "fonte do direito" como equivalente ao fundamento de validade da ordem jurídica. A teoria kelseniana, por postular a pureza metódica da ciência jurídica, procura afastá-la de quaisquer influências sociológicas, ideológicas ou valorativas, liberando-a da análise de aspectos fáticos, teleológicos, morais ou políticos que, porventura, estejam ligados ao direito, remetendo o estudo desses elementos à sociologia, à política e à filosofia da justiça. Portanto, só as normas são suscetíveis, segundo Kelsen, de indagação teórico-científica. Com isso a problemática das fontes jurídicas confunde-se com a validade das normas de direito. Essa doutrina designa como "fonte" o fundamento de validadè jurídico-positiva da norma jurídica. O fundamento de validade de uma norma, como assevera Kelsen, apenas pode ser a validade de uma outra, figurativamente denominada norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior. De maneira que o direito deve ser considerado como um sistema escalonado e gradativo de normas jurídicas suprainfraordenadas umas às outras, ou melhor, em que cada qual retirará sua validade da camada que lhe for imediatamente superior e assim sucessivamente até atingir a norma hipotética fundamental. Logo, é fonte jurídica a norma superior que regula a produção da norma inferior. Assim, a Constituição é a fonte das normas gerais, elaboradas pelo Poder Legislativo, Executivo e por via consuetudinária, e uma norma geral é fonte, p. ex., da sentença judicial que a aplica e que é representada por uma norma individual. Num sentido jurídico-positivo, fonte jurídica só pode ser o direito, pelo fato de que ele regula a sua própria criação, uma vez que a norma inferior só será válida quando for criada por órgão competente e segundo certo procedimento ou processo previsto em norma superior. A aplicação do direito é, concomitantemente, sua criação. Para essa concepção, entendese também por fonte jurídica a norma hipotética fundamental, que confere o fundamento último de validade da ordem jurídica. Tal ocorre porque é impossível encontrar na ordenação jurídica o fundamento positivo para a Constituição. Verifica-se que, na teoria pura do direito, a ciência jurídica, ao contemplar o direito como um sistema normativo, está obrigada a pressupor uma norma hipotética fundamental que garanta a possibilidade de conhecer o direito, pois é ela o princípio ideal que reduz as normas jurídicas a uma unidade absoluta; conferindo-lhes validade. Essa norma básica foi, por Kelsen, designada como constituição no sentido lógico-jurídico, diferenciando-a assim da Constituição em sentido lógico-positivo. Essa norma fundamental diz apenas que se deve obedecer ao poder que estabelece a ordem jurídica, mantendo a ideia de que uma norma somente pode originar-se de outra, da qual re­ 36 tira sua validez62. Nesta acepção enquadra-se, em certa medida, a fonte formal da teoria tradicional, que é a idônea para produzir norma jurídica, ou seja, a que é constituída pelos elementos que, na ordenação jurídica,l?ervem de fundamento para dizer qual é o direito vigente63. Estamos com a teoria egológica de Carlos Cossio, que demonstrou que o jurista deve ater-se tanto às fontes materiais como às formais, preconizando a supressão da distinção, preferindo falar em fonte formal-material, já que toda fonte formal contém, de modo implícito, uma valoração, que só pode ser compreendida como fonte do direito no sentido de fonte material. Além disso, a fonte material aponta a origem do direito, configurando a sua gênese, daí ser fonte de produção, aludindo a fatores éticos, sociológicos, históricos, políticos etc.; que produzem o direito e condicionam seu desenvolvimento. A fonte formal lhe dá forma, demonstrando quais os meios empregados pelo jurista para conhecer o direito, ao indicar os documentos que revelam o direito vigente, possibilitando sua aplicação a casos concretos, apresentando-se, portanto, como fonte de cognição64. As fontes formais podem ser estatais e não estatais. As estatais subdividem-se em legislativas (leis, decretos, regulamentos etc.), jurisprudenciais (sentenças, precedentes judiciais, súmulas etc.)65 e C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o 62. Kelsen, op. cit., p. 84; Nelson de Souza Sampaio, op. cit., p. 52 e 53; Maria Helena Diniz (A detida jurídica, cit., p. 18 e s., 145 e s. e 155 e 156) esclarece que "a norma fundamental é metajurídica no sentido de não ser uma norma positiva, criada por um ato real volitivo de um órgão jurídico e sim uma norma pressuposta no pensamento jurídico. Por não ser positiva, é óbvio que ela não pertence ao sistema, sendo até mesmo anterior a ele, que dela depende. Fora do sistema tem a norma básica uma função postulatória, ou seja, consiste no ponto de partida necessário à investigação jurídicocientífica. Todavia é jurídica no sentido de ter funções jurídicas relevantes como a de fundamentar a validade objetiva do significado subjetivo dos atos de vontade criadores da norma e a de fundamentar a unidade de uma pluralidade de normas. Dentro do sistema tem ela uma dupla função constitutiva: a de dar unidade e a de dar validade a um sistema de normas". 63. Luiz Fernando Coelho, Fonte formal, in Enríclopêdia Saraiva do Direito, v. 38, p. 40. 64. Luiz Fernando Coelho, Fonte de produção e Fonte de cognição, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 38, p. 39 e 40. Alf Ross (Diritto e ginstizia, 3. ed., Torino, 1965, p. 74) reúne os dois tipos de fontes na seguinte definição: "Por fontes do direito entende-se o conjunto dos fatores que influem sobre a formulação da norma que serve de fundamento à decisão do juiz, com o acréscimo de que essa influência pode variar desde aquelas fontes que fornecem ao juiz uma norma já elaborada e que ele simplesmente tem que aceitar até aquelas fontes que só lhe oferecem ideias e inspiração, das quais ele formulará a norma que necessita". 65. O termo jurisprudênda está sendo empregado como o conjunto de decisões uniformes dos tribunais. É, como prefere Miguel Reale (Liçõespreliminares de direito, p. 167 e 175), 37 convencionais (tratados e convenções internacionais). As não estatais, por sua vez, abrangem o direito consuetudinário (costume jurídico), o direito científico (a doutrina)66 e as convenções em geral ou negócios jurídicos67. T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil a forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais. Os recursos ordinários e extraordinários do Supremo Tribunal Federal vão estabelecendo a possível uniformização das decisões judiciais. O Supremo Tribunal coordena e sistematiza sua jurisprudência mediante enunciados normativos que resumem as teses consagradas em reiteradas decisões. São as Súmulas do STF, que periodicamente vêm sendo atualizadas, constituindo, não um simples repertório de ementas de acórdãos, mas um sistema de normas jurispradenciais a que a Corte subordina os seus arestos. W. Barros Monteiro (op. cit.,. p. 23) apresentou vários casos concretos que realçam a importância da jurisprudência na formação do direito; dentre eles, podemos transcrever o seguinte: "Para o casal italiano, vindo pobre para o Brasil, o regime matrimonial era o da completa separação, por força de seu estatuto pessoal. Nessas condições, bens adquiridos em nome do marido só a ele pertenciam. Muitas situações iníquas surgiram em detrimento da mulher, com a aplicação do art. 14 da velha Lei de Introdução ao Código Civil. Passou, então, a jurisprudência a admitir, em casos semelhantes, a comunhão dos bens adquiridos na constância do matrimônio, porque a presunção era a de que a esposa havia contribuído com seu esforço, trabalho e economia para a aquisição. Tal entendimento tomou-se normal, sendo certo que à brasileira, casada com estrangeiro, sob regime que exclua a comunhão universal, socorre a mesma disposição específica (Dec.-lei n. 3.200/41, art. 17)". Impossível esquecer o papel que está reservado à jurisprudência na criação do direito. 66. Na lição de Fábio Ulhoa Coelho {Curso de direito civil, cit., v. 1, p. 65 e 66), as normas jurídicas externas podem ser: a) internacionais, se advindas de acordo entre Estados soberanos (convenções ou tratados); b) supranacionais, se editadas por organismos internacionais (ONU; OMC — Organização Mundial do Comércio; União Européia etc.). Se forem internalizadas, passam tais normas a ter a mesma hierarquia das leis. A doutrina é formada pela atividade dos juristas, ou seja, pelos ensinamentos dos professores, pelos pareceres dos jurisconsultos, pelas opiniões dos tratadistas. É a doutrina que constrói as noções gerais, os conceitos, as classificações, as teorias, os sistemas. Com isto exerce função relevante na elaboração, reforma e aplicação do direito, devido à sua grande influência na legislação e na jurisprudência. Sobre o assunto, vide Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, cit., p. 54; Nelson Godoy Bassil Dower, Curso moderno de direito civil, v. 1, p. 29; W. Barros Monteiro, op. cit., p. 21 e 22. Miguel Reale, por sua vez, nega à doutrina a qualidade de fonte do direito, ao escrever nas Lições preliminares de direito (p. 176): "as fontes de direito produzem modelos jurídicos, isto é, estruturas normativas que, com caráter obrigatório, disciplinam as distintas modalidades de relações sociais. Como pensamos ter demonstrado em nosso livro O direito como experiência, enquanto as fontes revelam modelos jurídicos que vinculam os comportamentos, a doutrina produz modelos dogmáticos, isto é, esquemas teóricos, cuja finalidade é determinar: a) como as fontes podem produzir modelos jurídicos válidos; b) que é que estes modelos significam e c) como eles se correlacionam entre si para compor figuras, institutos e sistemas, ou seja, modelos de mais amplo repertório". Para nós a doutrina é, como afirmamos mais adiante, fonte de direito por ser norma consuetudinária. 67. Luiz Fernando Coelho, op. cit., p. 41. Chironi e Abello (Trattato di diritto civile, v. 1, nota 1, p. 23) discutem sobre se o contrato deva ser incluído como uma das fontes do 38 C o r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o E . N o r m a j u r í d i c a e.l. Conceito Tem razão Alexandre Caballero68 ao afirmar que "é um fenômeno normal o da evolução dos conceitos, mesmo dos mais elementares e fundamentais. Quanto mais manuseada uma ideia, mais ela fica revestida de minuciosos acréscimos, sempre procurando os pensadores maior penetração, maior exatidão, maior clareza. A interferência das mais diversas teorias sobre um conceito em lugar de esclarecer complica, frequentemente, as ideias. E, o que era antes um conceito unívoco, converte-se em análogo e até em equívoco. Tal a variedade e disparidade de significação que lhe acabam sendo atribuídas". De modo que quem quiser orientar-se acerca do problema do conceito da norma jurídica encontrar-se-á, portanto, diante de uma imensidão caótica de orientações e pontos de vista diferentes que lhe não será fácil dominar. Isto nos leva a pensar na necessidade de buscar, com absoluta objetividade, o conceito de norma jurídica, pois não existe entre os juristas um certo consenso na definição da norma jurídica, que é uma das partes integrantes do direito. Para tanto dever-se-á ter presente que "um dos caminhos para a descoberta das essências das coisas é o que leva à intimidade das palavras que as simbolizam", revelando sua íntima estrutura, desvendando os elementos de que se compõem, enumerando seus aspectos inteligíveis ou notas, pois é óbvio que o conjunto desses aspectos constitui o perfeito conhecimento intelectual dos objetos69. direito, advertindo que uma das conseqüências da confusão entre fontes do direito objetivo e fontes do direito subjetivo é colocar-se o contrato como uma das fontes do direito. Dizem eles, o contrato pode ser fonte do direito objetivo, mas é ilógico eleválo ao mesmo plano da lei e dar-lhe a mesma força e significação jurídica, dada a diversidade de sua posição jurídica, restrita a um dado caso concreto, enquanto as relações jurídicas atuam sempre in abstracto. Eis por que a teoria clássica exclui os negócios jurídicos da categoria de fontes do direito. Observam Laborde-Lacoste (Intr. gênérale à 1’étude du droit, Paris, n. 206, p. 171 e 172) que, no fim do século XIX, os autores juspublicistas, como Duguit, Bonnard, Jèze, criticaram essa concepção clássica, partindo da ideia de que o contrato, sendo uma manifestação de vontade, exteriorizada com o fim de produzir efeito jurídico, constitui fonte de direito. Miguel Reale (Lições preliminares, cit., p. 178-81) salienta a importância do poder negocial como força geradora de normas jurídicas. 68. A. Caballero, O ser em si e o ser para si, RBF, 48(71):277,1968. 69. G. Telles Jr., Introdução, cit., fase. 4,1972, p. 219 (apostila). 39 T e o r ia G e r a i , d o D i r e i t o C i v i i Os conceitos refletem, no nosso entender, a essência da coisa, e as palavras são veículos dos conceitos. Isto supõe a relação entre significados das expressões lingüísticas e a realidade. A operação de se revelar o que um objeto é, por meio da enunciação de seus aspectos inteligíveis, chama-se operação de definir; seu produto é a definição. A lógica tradicional que procede de Aristóteles ensina que se determina a essência das coisas por meio de uma definição, ou seja, por indicação do gênero próximo e da diferença específica70. É preciso definir exatamente a norma jurídica, purificando-a de seus elementos contingentes, que encobrem sua verdadeira natureza, assinalando as essências que fazem dela uma realidade diferente de todas as realidades sociais. Logo, só a definição real essencial revela a essência da norma jurídica pelo gênero próximo, que é a ideia imediatamente superior, quanto à extensão, à ideia de norma, e pela diferença específica, ou seja, a qualidade que, acrescentada a um gênero, constitui uma espécie, distinta como tal de todas as espécies do mesmo gênero71. Ante a1 multiplicidade de normas, o pensamento deverá munir-se de um critério seletor que consiga enquadrar os caracteres essenciais das normas investigadas. Como o "ser" jurídico da norma não está na coisa material, sendo uma significação ideal que mantém com o objeto real uma relação peculiar, só a intuição racional poderá apreendê-lo, atingindo o conceito da norma jurídica, sem recorrer a nenhuma disposição normativa, sem fazer confrontos entre duas ou mais normas, devido a uma visão intelectual. A intuição racional consiste em olhar para uma norma qualquer, prescindindo de suas particularidades, de seu conteúdo ou caráter psicológico, sociológico etc., não considerando sua existência singular, para atingir aquilo que tem de geral, ou seja, ir isolando do objeto tudo o que for acidental até atingir a ideia72. 70. Fritz Schreier, Conceptos y formas fmdamentales dei derecho, Buenos Aires, Losada, 1942, p. 26; G. Telles Jr., Tratado da consequência, 2. ed., Bushatsky, 1962, p. 324-6; Jacques Maritain, Éléments de philosophie; petite logique, 2. ed., çi. 29, p. 95; Edmund Husserl, Idées directrices pour une phénoménotogie, 4. ed., Ed. Gallimard, 1950, p. 46. 71. Régis Jolivet, Curso de filosofia, 7. ed., Rio de Janeiro, Agir, 1965, p. 36. 72. L. Vilanova, Sobre o conceito do direito, Imprensa Oficial, Recife, 1947, p. 107-15, 123; Aloys Müller, Introducción a la filosofia, Buenos Aires, 1937, p. 104; Recaséns Siches, Tratado general de filosofia dei derecho, 3. ed., México, Porrúa, 1965, p. 458 e 459; Max Planck, Aonde vai a ciência? 40 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o Colocado ante uma norma, o sujeito cognoscente vai depurando-a, objetivamente, através de fases sucessivas de eliminação, até captá-la em toda sua pureza. Isto é assim porque a norma de direito encontra-se no mundo dos objetos reais, sendo valiosa positiva ou negativamente. As normas jurídicas têm um conteúdo que varia de acordo com as épocas, lugares, políticas dominantes etc. O conteúdo varia mas não a norma jurídica; esta é como que um invólucro capaz de reter dentro de si os mais variados conteúdos. Por este motivo podemos falar que é jurídica a norma jurídica argentina, a americana, a russa, a brasileira etc. O que demonstra que, além dos fatores particulares e imediatos que determinam as normas singulares, existem outros gerais e comuns. Todas elas têm em comum alguma coisa, que faz delas normas jurídicas; trata-se de sua essência. A essência não se confunde com a norma jurídica. A norma é algo real, porém, sua essência é ideal73, pois é atemporal, não está no espaço, é a priori, porque não depende desta ou daquela experiência; a ela não chegamos através dos sentidos, mas da intuição intelectual, e é neutra ao valor. É o conceito que fixa a essência, a dimensão ideal da norma, o seu elemento imutável e necessário74. Logo, o conceito não reproduz a norma, uma vez que funciona como um princípio de simplificação, tendo uma função seletiva75. Este conceito deve dar-nos a essência do jurídico, deixando de lado todos os qualificativos específicos e individuais, abrangendo todas as normas jurídicas que existiram, existem e hão de existir, servindo para a norma civil, penal, administrativa, tributária, processual etc. Sendo aplicável ao ordenamento de um povo primitivo ou dè um Estado civilizado, compreende, igualmente, as normas justas como as injustas, pois o sentido da norma jurídica deve ser apenas a intenção de realizar a justiça e não seu logrado cumprimento76. 73. L. Vilanova, op. cit., p. 58; Celso Antônio Bandeira de Mello, Metodologia do direito administrativo, aula proferida no Curso de Especialização em Direito Administrativo da PUC/SP, 1972, p. 17; Del Vecchio, Lições de filosofia do direito, 2. ed., Coimbra, Ed. A. Amado, 1951, p. 16 e 17; Juan Llambias de Azevedo, Eidética y aporêtica dei derecho, Buenos Aires, Espasa-Calpe, 1940, p. 18; Legaz y Lacambra, Filosofia dei derecho, 3. ed., Barcelona, Bosch, 1972, p. 166; Goldschmidt, Filosofia, historia y derecho, Buenos Aires, Livr. Jurídica, 1953, p. 102. 74. Cathrein, La filosofia dei derecho; el derecho natural y el positivo, 3. ed., Madrid, Ed. Reus, 1940, p. 17. 75. L. Vilanova, op. cit., p. 15 e 16. 76. Por mais desagradável que isto resulte não há por que duvidar de que houve, há e sempre haverá normas injustas: a que instituiu a escravidão, as inúmeras leis fascistas, 41 T e o r ia G e r a i , d o D ir e i t o C ivil Urge, portanto, que se faça uma análise racional sobre a natureza da norma jurídica, eliminando tudo o que resulte ao espírito como sendo acessório, numa seleção gradual que tenha em vista, tão somente, destacar as notas essenciais da norma jurídica77. A norma jurídica é, sem dúvida, uma norma de conduta, no sentido de que seu escopo direto ou indireto é dirigir o comportamento dos indivíduos particulares, das comunidades, dos governantes e funcionários no seio do Estado e do mesmo Estado na ordena internacional. Ela prescreve como se deve orientar a conduta de cada um, sendo, portanto, prescritiva ou diretiva. É manifestação de um ato de vontade do poder, por meio do qual uma conduta humana é obrigatória, permitida ou proibida. É imperativa como toda norma de comportamento humano dèstinada a regular o agir do homem e a orientá-lo para suas finalidades. Por conseguinte, é imperativa, porque "imperar" é impor um dever, o qual é da essência do preceito78. Nota-se que a norma jurídica situa-se no âmbito da normatividade ética, pois tem por objetivo regular a conduta humana tendente à consecução de seus fins próprios, no seio de uma sociedade. Apresenta-se, portanto, na vida social como uma ordem de conduta, ou de "dever ser", que indica que os comportamentos devem ser assim, de uma determinada maneira; logo pertence à ordem ética, que tem por objeto as ações humanas. A norma moral e a jurídica têm em comum a base ética; ambas são normas de comportamento. Assim sendo, a nòrma jurídica possui uma essência ética, uma vez que indica como deve ser a conduta dos simples indivíduos, autoridades e instituições na vida social79. E é justamente isso que a distingue da lei físico-natural, cuja finalidade é a explicação de relações constantes entre fenômenos, sendo constatativa nazistas e soviéticas (conglomerado das mais anti-humanas e nefandas normas), que contudo não deixam de ser jurídicas, ainda que abomináveis, aviltantes e repugnantes aos nossos sentimentos. 77. Jacy de Souza Mendonça, Problemática filosófico-jurídica atual, RBF, 81:52, 1971. 78. Kelsen, Teoria pura do direito, 2. ed., Coimbra, Ed. A. Amado, 1962, v. 1, n. 4-"b", p. 7, e 4-"c", p. 22; Juan Manuel Teran, Filosofia dei derecho, 5. ed., Porrúa, 1971; Del Vecchio, Filosofia dei derecho, p. 339. 79. Leonardo Van Acker, Sobre um ensaio de jusnaturalismo fenomenológico-existencial, RBF, 20(78):186,1970; Paul Amselek, Méthodephénommiologique etthéorie du droit, Libr. Générale de Droit et de Jurlsprudence, 1964, p. 71. 42 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o de uma certa ordem que se verifica em qualquer setor da natureza. A norma ética, como, p. ex., a jurídica, tem por fim provocar um comportamento. Postula uma conduta que, por alguma razão, se estima valiosa, ainda que de fato possa produzir-se um comportamento contrário. Exprime o que deve ser, manda que se faça algo, e talvez não seja cumprida, isto porque o suposto filosófico de toda norma é a liberdade dos sujeitos a que obriga, situando-se no campo da atividade humana representada pela consciência e liberdade. Impõe dever, sendo, portanto, imperativa e não constatativa como a lei da natureza, que nada impõe à natureza. Todas as normas, sejam elas morais, religiosas, educativas ou jurídicas, são normas éticas, ou seja, mandamentos imperativos. O traço distintivo entre a norma ética e a lei física é a imperatividade, pois diferencia as normas de comportamento humano das leis que regem outros seres. Por conseguinte, é a nota de imperatividade que revela o gênero próximo da norma jurídica80, incluindo-a no grupo das normas que regulam o comportamento humano. A imperatividade é característica essencial genérica e importantíssima da norma jurídica. Não se pode conceber uma norma que não tenha caráter imperativo, elemento iniludível da norma de direito. Entretanto, uma norma que desse lugar tão somente a um mero dever não seria uma norma jurídica. A caracterização da norma de direito como imperativo é insuficiente, porque não permite diferenciá-la do heterogêneo conjunto de normas que a vida em sociedade nos oferece. A problemática da distinção entre norma moral e jurídica é uma velha questão doutrinária. Quando se examinam as ideias dos juristas a esse respeito, percebe-se um sem-número de pontos de vista. Há quem julgue que a sanção é a sua nota específica. Contudo, consideramos estreita a concepção da norma jurídica caracterizada pela sanção. Isto porque não é a sanção que distingue a norma jurídica da norma moral e dos convencionalismos sociais. Tanto estas como as jurídicas são sancionadoras, pois a infração de seus preceitos acarreta conseqüências. Já as 80. G. Telles Jr., O direito quântico, p. 262 e 172; Paul Amselek, La phénoménologie et le droit, in Archives de philosophie du Droit et Sociologie Juridique, 1972, p. 229 e 234. 43 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il leis físicas não o são, porque as conseqüências por elas previstas resultam, necessariamente, do fato em seus nexos causais. O desrespeito a uma norma moral pode causar: 1) sanção individual e interna, ou seja, da consciência, que nada mais é senão a insatisfação ou o desgosto (arrependimento, vergonha, remorso); 2) sanção externa, como a opinião pública que estima as pessoas honestas e lança ao desprezo os iníquos (desconsideração social)81. Pensamos que a sanção da norma moral e a dos usos sociais pode estar contida implicitamente e predeterminada na norma; mas consiste numa condenação, numa censura ao infrator pronunciada pelo círculo social a que pertence ou numa reprovação que poderá chegar até à eliminação do violador da norma do referido círculo. Como a transgressão de normas morais ou sociais desencadeia uma sanção de reprovação ou de exclusão de um determinado círculo coletivo — sanção esta que pode resultar gravíssima para o sujeito e cujo temor costuma exercer uma vigorosa influência —, a sanção não pode ser a característica específica da norma jurídica82. Logo, não é a sanção a nota distintiva da norma jurídica, porque a norma moral também contém sanções83. 81. R. Jolivet, op. cit., p. 382; Vicente Ráo, O direito e a vida dos direitos, Max Limonad, 1952, v. 1, p. 37. 82. Recaséns Siches, Panorama dei pensamiento jurídico en el siglo XX, t. 1, p. 501. Virally afirma: "La violation des règles morales peut entrainer des réactions sociales qui dépassent la simple désaprobation, et qui, pour être spontanées, peuvent être violents et automatiques: mise au ban, quarantaine, expulsion, sans parler d'autres humiliations” (La pertsêe juridique, Paris, LGDJ, 1960, p. 77). 83. Contudo alguns autores a consideram como elemento específico da norma jurídica; dentre eles podemos citar Durkheim, que afirma que o que diferencia a norma moral da jurídica é a forma da sanção. A norma moral está acompanhada de uma sanção difusa, isto é, não organizada, ao passo que a norma jurídica contém sanção organizada, uma vez que um órgão competente a exerce e executa. São da mesma opinião Raddiffe-Brown, que ponderam que só há normas jurídicas apenas quando as sanções forem aplicadas por autoridade constituída, política, religiosa ou econômica, e se as sanções não emanarem da referida autoridade, mas derivarem da sociedade difusamente, então, não há normas jurídicas, mas tão somente costumes; e Thumwald, que diz que o fenômeno de uma sanção organizada distingue a ordem jurídica dos costumes e usos sociais. Vide Durkheim, Division, Introduction, p. 25-37; Radcliffe-Brown, Law primitive e Sanction social, in Encyclapaedia ofthesocial sciences; Thurnwald, Origem, formação e transformação do direito, Sociologia, v. 3, n. 3/1941; Stodieck, Problemas da filosofia do direito, RF, 228(542), 1948; Malinowski (Crime and custom in savage society) pesquisou o direito dos habitantes das Ilhas Trobriand, na Melanésia, sustentando que é possível divisar a existência da norma jurídica mesmo sem a presença de uma sanção organizada que a tome obrigatória. Põe em dúvida, portanto, que a sanção organizada seja caráter específico da norma de direito. 44 Além do mais, a "sanção é uma medida legal que poderá vir a ser imposta por quem foi lesado pela violação da norma jurídica a fim de fazer cumprir a norma violada, de fazer reparar o dano causado ou de infundir respeito à ordem jurídica"84. A norma de direito, ao mesmo tempo que estabelece a ordem desejada, sanciona a transgressão a esta ordem, a fim de que essa infração não se produza. É, portanto, medida legal que a norma jurídica estabelece antes de ser violada. É um remédio colocado à disposição do lesado para eventual uso; logo esse remédio não é empregado necessariamente, o lesado o emprega quando quiser. É sempre medida ligada à violação possível da norma e não à norma jurídica. Está prescrita em norma de direito antes que haja violação. Não há sanção legítima sem norma jurídica que a institua e regulamente. Se é a norma que a estatui não pode ser de sua essência. "A sanção é a consequência jurídica que o não cumprimento de um dever produz em relação ao obrigado"85. O essencial na norma jurídica não pode ser a consequência jurídica (a sanção), precisamente porque é consequência. Como toda consequência, a sanção encontra-se condicionada pela realização de um suposto, ou seja, da violação da norma86. Se a obrigação for cumprida, a sanção não pode impor-se. A sanção é, portanto, indiferente, estranha à essência específica da norma de direito. Outros colocam a coação como elemento essencial da norma jurídica. A coação é a aplicação ou realização efetiva da sanção87. Quando a sanção for imposta ao violador da norma jurídica é que se dá a coação. Os adeptos da teoria do coativismo sustentam que a nota especificadora da norma C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e i r o 84. G. Telles Jr., Anotações de aula proferida no curso de Pós-Graduação em Direito da USP, 1971. 85. Garcia Máynez, Jntroducción al estúdio dei derecho, n. 154, p. 97; Du Pasquier, Introduction à la théorie générale et à la philosophie du droit, n. 135, p. 112. 86. Llambias de Azevedo, Eidética y aporética, cit., p. 86; Benvenuti, Sul concetto di sanzione, Jus, 1955, p. 223 e s.; Mandrioli, Appunti sulla sanzione, Jus, 1956, p. 86 e s. 87. Sforza, Norma e sanzione, RIFD, 1:6, 1921; Pekelis, II diritto come volontà constante, Pádua, 1930, p. 109 e s.; Aliara, Le nozioni fondamentali dei diritto privato, Torino, 1939, v. 1, p. 6; Goffredo Telles Jr., Anotações de aula proferida no Curso de Pós-Graduação em Direito da USP, em 1971; Camelutti, H valore delia sanzione nel diritto, Rivista di Diritto Processuale, 1:237 e s., 1955; Garcia Máynez, Introducciõn al estúdio dei derecho, México, Porrúa, 1972, p. 298 e s. 45 jurídica reside no uso da força88; com isso a norma jurídica converter-se-ia num fenômeno físico, ter-se-ia, então, justamente, o contrário do que as análises anteriores nos demonstraram, apareceria como a causa de um efeito. A ideia de força das normas de direito está em contradição manifesta com a realidade. Elas não exercem nenhuma pressão sobre o indivíduo, apenas lhe indicam o caminho que deve seguir. Realmente, como poderia a norma coagir? Como poderia tomar um indivíduo pelo braço e forçá-lo a fazer ou a não fazer algo? A 'norma não age, logo não coage89, apenas prescreve a conduta daquele que pode exercer coação. A coação não é exercida pela norma jurídica, mas por quem é lesado pela sua violação90. Se a norma jurídica fosse coativa, a coação seguiria, necessariamente, a sua violação. Nem sempre isso ocorre; pode suceder que a norma seja violada sem que haja alguma coação contra o seu infrator. Inúmeros são os casos em que os lesados abrem mão da coação91. A violação da norma jurídica pressupõe, necessariamente, a existência dessa norma, isto porque o que não existe não pode ser violado, de maneira que a norma é anterior à coação. Logo, não é a norma que depende da coação, mas é a coação que depende da norma. A norma jurídica vigora sem coação, pois com sua promulgação já é uma norma completa, com plena vigência, ao passo que a coação depende da preexistência da norma de direito, porque decorre da sua violação. Se a coação supõe a existência da norma jurídica, jamais poderia ser um elemento essencial desta. Note-se, ainda, que a coação pode nunca aparecer, bastando que a norma não seja violada, posto que é perfeitamente possível que ninguém infrinja a norma jurídica. Além disso, a regulamentação da coação é feita pela norma jurídica, para que não se converta numa brutal arbitrariedade e em T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 88. Hermes Lima, Introdução à ciência do direito, Ed. Nacional de Direito, 4. ed., p. 98 e 99, 1944; 6. ed., p; 19 e 22, 1952; Suárez, Tratado de ias leyes y de Dios legislador, Madrid, Reus, 1921, Livro III, 2,11,12; Ihering, El fin en el derecho, v. 1, p. 320; Olivecrona, Law as fact, London, Oxford University Press, 1959, p. 134; Alf Ross, On law and justice, London, Ed. Stevens, 1958, p. 34, 52 e 53. 89. G. Telles Jr., O direito quântico, cit., p. 264 e 265; Carbonnier, Droit civil, 1957, v. 1, p. 5; Lucien Aulagnon, Aperçu sur la force dans la règle de droit, in Mélanges Roubier, Dalloz, 1961, v. 1, p. 29. 90. G. Telles Jr., O direito quântico, cit., p. 265. 91. Schreier, Conceptos y formas fundamentales dei derecho, Buenos Aires, Losada, 1942, p. 111 e 117; Rosmini, Filosofia dei diritto, 2. ed., 1865, v. 1, p. 126; G. Telles Jr., Filosofia do direito, 2. ed., p. 279; M. Reale, Filosofia do direito, v. 1, p. 234. 46 violência. São as normas que disciplinam as condições e procedimento em que a coação pode ou deve ser exercida, as pessoas que podem e devem exercê-la etc.92. Para que haja coação é preciso que o violador da norma seja encontrado e identificado. Muitos são os infratores que burlam a ação da polícia: poderão não ser capturados, identificados, ou mesmo, se encontrados, poderão conseguir que um hábil advogado demonstre a sua inocência. A coação não é, pois, elemento constitutivo da norma jurídica. Se o fosse, nos casos em que se torna impossível a coação, desapareceria a norma jurídica. Existem autores que julgam que a norma jurídica exerce contínua coação sobre todos pelo medo que inspiram as conseqüências decorrentes de sua violação. Trata-se da coação psíquica ou coerção. Ora, o medo de violar a norma só pode nascer se existir uma norma a violar. Deveras, que medo pode haver das conseqüências da violação de uma norma de direito se essa norma não existe? Além disso, a norma jurídica não é a causa do medo. O medo não é da norma, mas das conseqüências que advêm de sua transgressão. A coerção não é privativa das normas de direito, pois o cumprimento de normas morais pode ser também motivado pelo medo das conseqüências que decorrem de sua violação. É importante esclarecer que o medo de violar a norma jurídica só existe em quem deseja violá-la. O normal é a eficácia pacífica da norma, sem necessidade do recurso à intimidação para obrigar os indivíduos a se sujeitarem a ela93. A norma jurídica será acatada pela maioria dos membros da comunidade porque serve aos seus interesses, merecendo o seu respeito. Não há dúvida de que a coerção possui uma eficácia preventiva. Todavia, se uma grande parte dos cidadãos resolver ser violenta, aplicando atos de sabotagem e resistência às normas jurídicas, a coerção será inútil para levá-los a cumprir as normas jurídicas. A coação física ou psíquica não entra na constituição da norma jurídica, embora seja um elemento importantíssimo na vida do direito, como um remédio que socorre a norma jurídica quando ela for violada. É a força a C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o 92. G. Telles Jr., O direito quântico, cit., p. 265; Bobbio, Studi per una teoria generale dei diritto, Torino, Giappichelli, 1970, p. 128. 93. G. Telles Jr., O direito quântico, cit., p. 266. 47 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil serviço da norma de direito; é um elemento externo que surge para revigorar a norma violada. Pelo exposto percebe-se que a coação não soluciona o problema do caráter jurídico da norma de direito. Alguns autores sustentam, então, que a coativiáade é parte dela necessariamente por ser a possibilidade de exercer a coação94. A norma jurídica para esses juristas é sempre um imperativo acompanhado da possibilidade do emprego da coação. A coação só intervém no caso de transgressão da norma e a possibilidade de coagir permanece latente, mesmo se a norma é respeitada. Engenhosa é esta argumentação, mas não convincente, como facilmente se demonstrará. A coatividade é contingente, pois só pode fundar-se em norma jurídica já existente, supondo a norma, uma vez que existe para sua defesa; logo, não pode ser de sua essência. Além disso, essa possibilidade de coagir o violador da norma jurídica há de pertencer a alguma entidade. Não será, obviamente, a própria norma de direito, que não contém, em si mesma, nenhuma possibilidade de coagir95. A coação é um ato consciente, logo, só seres conscientes têm a possibilidade de exercê-la. A coatividade não pode pertencer à norma, mas ao lesado. Impossível definir a norma jurídica pela coatividade, que é elemento que não lhe pertence. Petrazycki deu um passo à frente ao dizer que as normas jurídicas são atributivas, pois antes de sua obra os autores apenas diziam que eram coativas, superando, assim, os imperfeitos critérios de coação e de coatividade como elementos específicos das normas de direito96. A sua ideia tornou-se tradicional. O elemento essencial específico da norma jurídica passou a ser a atríbutividade, que é a qualidade inerente à norma jurídica de atribuir a quem seria lesado por sua eventual violação a faculdade de exigir do violador, por meio do poder competente, o cumprimento dela ou a reparação do mal sofrido. 94. Tomásio, Fundamenta iurís naturae etgentíum, 1705; Cammerata, Sidla coattività delle normegiuriãiche, Milano, 1932; Alessandro Levi, Teoria generale dei diritto, Padova, 1950, p. 146-8. 95. G. Telles Jr., O direito quântico, cit., p. 270. 96. Petrazycki, Theory oflaw, 1913. 48 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s il e ir o 4 € Essa concepção, contudo, deu ensejo a uma série de pesquisas e análises, a uma longa meditação, que precisavam ser feitas e que efetivamente foram feitas, magistralmente, por Goffredo Telles Jr. A norma jurídica, diz ele97, não é uma atribuição de faculdade especial, a quem tenha sido lesado pela violação, de reagir contra quem o lesou. Não tem a norma jurídica nenhuma possibilidade de fazer essa atribuição, isto porque ela não possui nenhuma faculdade de reagir contra quem quer que seja. Com efeito, a etimologia indica, claramente, que a "faculdade" é principio de ação, pois este termo deriva do latim facultas, cuja raiz é facere (fazer, agir). Em vista disso, devemos confessar que o alcance jurídico outorgado a este vocábulo não está de acordo com sua significação etimológica. A faculdade é uma qualidade inerente ao homem. A filosofia clássica já ensinava que as faculdades são "potências ativas ou qualidades que dispõem imediatamente um ser a agir". As faculdades humanas são qualidades do homem que independem de normas jurídicas; elas existem com ou sem normas de direito98. Não se diga, pois, que a norma jurídica é atributiva. Para Goffredo Telles Jr., a essência específica da norma de direito é o autorizamento, porque o que compete à norma é autorizar ou não o uso dessa faculdade de reação do lesado. A norma jurídica autoriza que o lesado pela violação exija o cumprimento dela ou a reparação pelo mal causado. Em rigor deveríamos dizer que tal autorizamento é da sociedade e não da norma, mas como é a norma jurídica que prescreve as ações exigidas e proibidas pela sociedade nada desaconselha dizer que o autorizamento pertence à norma que exprime em palavras o autorizamento inerente à sociedade99. Com efeito, o elaborador da norma intervém apenas para legitimar as faculdades humanas e não para interditá-las. Nas normas jurídicas há assim um contínuo de licitudes e um descontínuo de ilicitudes. A norma jurídica traça, objetivamente, as fronteiras entre o lícito e o ilícito jurídico. É, portanto, a norma jurídica que autoriza o uso da faculdade de coagir, legitimando-a. A coatividade é do lesado, mas o autorizamento para o 97. G. Telles Jr., O direito quântico, cit., p. 236. 98. G. Telles Jr., O direito quântico, cit, p. 270. 99. G. Telles Jr., O direito quântico, cit., p. 264. 49 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il seu uso é da norma jurídica. Logo, o autorizamento é condição para o uso lícito da coatividade, sendo o elemento necessário e específico da norma jurídica, distinguindo-a das demais normas. Através dessa análise em progressão, em que selecionamos tudo o que há de essencial na norma jurídica, deixando de lado os elementos acidentais, atingimos as suas notas essenciais: a imperatividade e o autorizamento. Tais são os motivos pelos quais definimos a norma jurídica: imperativo autõrizante, que é o conceito dado por Goffredo Telles Jr. O elemento "imperativo" revela seu gênero próximo, incluindo-a no grupo das normas éticas que regem a conduta humana, diferenciando-a das leis físico-naturais. E o "autõrizante" indica sua diferença específica, distinguindo-a das demais normas, pois só a jurídica é autõrizante100. e.2. Classificação Quanto à imperatividade, as normas jurídicas podem ser: 1) de imperatividade absoluta ou impositivas, também chamadas absolutamente cogentes ou de ordem pública. São as que ordenam ou proíbem alguma coisa (obrigação de fazer ou de não fazer) de modo absoluto. São as que determinam, em certas circunstâncias, a ação, a abstenção ou o estado das pessoas, sem admitir qualquer alternativa, vinculando o destinatário a um único esquema de conduta. Exemplificativamente: o Código Civil, no art. 1.526, diz: "A habilitação (para o casamento) será feita perante o oficial do Registro Civil e, após a audiência do Ministério Público, será homologada pelo juiz"; no art. 3® estabelece: "São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I — os menores de 16 anos; II — os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III — os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade". Essas normas, por sua vez, subdividem-se em afirmativas e negativas. P. ex.: o art. 1.245, caput, do Código Civil, que estatui o seguinte: "Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis"; o art. 426 do Código Civil, que dispõe: "Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva". 100. Sobre esse assunto vide Goffredo Telles Jr., Iniciação, cit., p. 43-104; Maria Helena Diniz, Conceito de norma jurídica como problema de essência, São Paulo, Saraiva, 1999. 50 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o A imperatividade absoluta de certas normas é motivada pela convicção de que determinadas relações ou estados da vida social não podem ser deixados ao arbítrio individual, o que acarretaria graves prejuízos para a sociedade. Existem relações humanas que pela sua grande importância são reguladas, taxativamente, em normas jurídicas, a fim de evitar que a vontade dos particulares perturbe a vida social. As normas impositivas tutelam interesses fundamentais, diretamente ligados ao bem comum, por isso é que são também chamadas de "ordem pública"101. 2) de imperatividade relativa ou dispositivas, que não ordenam, nem proíbem de modo absoluto; permitem ação ou abstenção ou suprem a declaração de vontade não existente. Podem ser, portanto, permissivas, quando permitem uma ação ou abstenção. P. ex.: Código Civil, art. 1.639, caput: "É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver"; Código Civil, art. 628, que estabelece que "o contrato de depósito é gratuito, exceto se houver convenção em contrário, se resultante de atividade negocial ou se o depositário o praticar por profissão". As. normas dispositivas podem ser supletivas quando suprem a falta de manifestação de vontade das partes. Estas normas só se aplicam na ausência da declaração de vontade dos interessados. Se as partes interessadas nada estipularem, em determinadas circunstâncias, a norma estipula em lugar delas. Como exemplos, podem-se enumerar dentre outros: "Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente" (CC, art. 327, I a parte). "Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial" (CC, art. 1.640, caput)102. Uma norma dispositiva pode tornar-se impositiva, em virtude da doutrina e da jurisprudência, como verifica Goffredo Telles Jr. P. ex.: o Código Civil de 1916, art. 924, que estatuía o seguinte: "Quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir proporcionalmente a pena estipulada para o caso da mora ou inadimplemento", salientando que, ao tempo 101. G. Telles Jr., Introdução à ciência do direito, 1972, fase. 5, p. 347 e 348 (apostila). 102. G. Telles Jr., Introdução, cit., p. 349; A. Franco Montoro, Introdução à ciência do direito, v. 2, p. 76 e 77. Têm imperatividade relativa: arts. 233, 287, 296, 327, 354, 450, 485, 490, 502, 533,1, 551, 552, 566, I, 578, 619, 631, 698, 704, 711, 713, 714, 728, 770, 812, 917; 989, 1.331, § 52, 1.334, § 2a, 1.348, § 2a, 1.352, parágrafo único, 1.392, 1.411, 1.421, 1.427, 1.488, § 2a, e 1.507, § 2a, do CC. 51 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il da promulgação do Código Civil, este dispositivo só vigorava quando não havia, no contrato, a declaração de que a multa era sempre devida, integralmente, no caso de mora ou inadimplemento. Por influência dos civilistas e dos tribunais, posteriormente, entendeu-se que ainda que houvesse tal cláusula estabelecendo que a multa era sempre devida integralmente, o juiz podia reduzir a pena, proporcionalmente à parte devida da obrigação, porque o citado artigo, que era dispositivo, passou a ser considerado norma impositiva103. Hoje, pelo art. 413 do novo Código Civil, "a penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestadamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio". Quanto ao autorizamento as normas jurídicas podem classificar-se em: 1) Mais que perfeitas: são as que por sua violação autorizam a aplicação de duas sanções: a nulidade do ato praticado ou o restabelecimento da situação anterior e ainda a aplicação de uma pena ao violador. Como exemplo desta noima, podemos citar o Código Civil, art. 1.521, VI, que estatui: "Não podem casar as pessoas casadas"; com a violação dessa disposição legal, autoriza a norma que se decrete a nulidade do casamento; realmente, estabelece o Código Civil, no art. 1.548, II, que: "É nulo o casamento contraído por infringência de impedimento", e que se aplique uma pena ao transgressor, como dispõe o Código Penal no seu art. 235: "Contrair alguém, sendo casado, novo casamento. Pena: reclusão de 2 a 6 anos". 2) Perfeitas: são aquelas cuja violação as leva a autorizar a declaração da nulidade do ato ou a possibilidade de anulação do ato praticado contra sua disposição e não a aplicação de pena ao violador. São exemplos dessas normas: Código Civil, art. 1.647, I: "Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime de separação absoluta, alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis", sob pena de nulidade relativa, não havendo suprimento judicial (CC, art. 1.649); Código Civil, art. 1.730: “É nula a nomeação de tutor pelo pai ou pela mãe que, ao tempo de sua morte, não tinha o poder familiar". 3) Menos que perfeitas: são as que autorizam, no caso de serem violadas, a aplicação de pena ao violador, mas não a nulidade ou anulação do ato que as violou. Como exemplos temos o Código Civil, art. 1.523,1: "Não devem casar o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquan103. G. Telles Jr., Introdução, cit., p. 350; Iniciação, cit., p. 155-7. T 52 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o to não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros". Violada esta norma, não está nulo o novo matrimônio, porque a norma não autoriza que se declare a nulidade desse ato; com efeito, o art. 1.641, I, do Código Civil diz: "É obrigatório o regime da separação de bens no casamento, das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento" e o art. 1.489, II, do mesmo diploma legal, confere hipoteca legal aos filhos sobre imóveis do pai ou da mãe que passar a outras núpcias antes de fazer o inventário do casal anterior. 4) Imperfeitas: são aquelas cuja violação não acarreta qualquer consequência jurídica. São normas sui generis, não são propriamente normas jurídicas, pois estas são autorizantes. Casos típicos são as obrigações decorrentes de dívidas de jogo, dívidas prescritas e juros não convencionados. "A dívida de jogo deve ser paga"; essa norma não é, contudo, positiva, não a encontramos no Código Civil brasileiro, não está prescrita em norma jurídica; assim sendo, o lesado pela sua violação não poderá, certamente, exigir o seu cumprimento, de modo que ninguém pode ser obrigado a pagar tal débito, já que a referida norma não é autõrizante. O Código Civil chega até a dispor expressamente, no art. 814, que: "As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagam ento...". Logo, se violado esse preceito, a referida norma não autoriza o credor a exigir o seu adimplemento. Entretanto, se essa norma for cumprida, se o devedor pagar sua dívida, ele não poderá exigir a devolução do que, voluntariamente, pagou, porque a norma jurídica não o autoriza a isso. Com efeito, reza o art. 814 do Código Civil: "As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento, mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou...". Além disso, estatui o Código Civil no seu art. 876: "Todo aquele que recebeu o que não lhe era devido fica obrigado a restituir...". Ora, o credor recebeu a importância que lhe era devida em virtude de jogo, logo, não é obrigado a restituir (Súmulas 71 e 546 do STF). A norma que manda pagar a dívida de jogo, embora não tenha a natureza de norma jurídica, adquire eficácia jurídica quando cumprida. Quem a viola não pode ser obrigado a cumpri-la, uma vez que a norma não autoriza o lesado pela violação a exigir seu adimplemento; mas quem a cumpre não pode arrepender-se, pois a norma não o autoriza a exigir a restituição da importância com que a pagou. Da mesma natureza, como observa Goffredo Telles Jr., é a norma que manda pagar dívida prescrita, ou seja, da que, por força do tempo decorri­ 53 T e o r ia G er a l d o D i r e i t o C iv il do após seu vencimento, sem reclamação do credor, não pode mais ser cobrada judicialmente. O pagamento dessa dívida é inexigível, mas quem a pagar voluntariamente não poderá requerer a restituição da quantia com que a solveu, é o que prescreve o Código Civil, art. 882. Essas obrigações, cujo cumprimento é inexigível, são as chamadas obrigações naturais, que são obrigações civis cuja evolução ainda não se completou por não ter chegado a adquirir a indispensável tutela jurídica; realmente, como vimos, o credor não pode ingressar em juízo a fim de reclamar o pagamento; ele não tem ação, não está autorizado a isso, porque as obrigações naturais são desprovidas de exigibilidade. Trata-se de instituto impreciso, de natureza incerta. Não são obrigações jurídicas porque ninguém tem o dever de solvê-las e de exigi-las. Mas não deixam, como assevera Goffredo Telles Jr., de ser obrigações verdadeiras, pois acarretam dois efeitos: quando cumprida, sua repetição é inexigível, e, quando não cumprida, acarreta o descrédito social do inadimplente104. Quanto à sua hierarquia105 as normas classificam-se em: 1 — Nòrmas constitucionais: são as relativas aos textos da Constituição Federal, de modo que as demais normas da ordenação jurídica deverão ser conformes a elas. 2 — Leis complementares: ficam entre a norma constitucional e a lei ordinária. São inferiores à Constituição Federal,, que lhes confere essa quàli104. Para Kelsen trata-se de norma Jurídica não autônoma que não estatui sanções, mas que só vale quando se liga a uma norma sancionadora. Vide o que dizemos a respeito no v. 2 do Curso de direito civil brasileiro, cap. III, item A, a.4. Sobre esta classificação vide G. Telles Jr., Introdução, cit., fase. 5, p. 352 (ápostila); Iniciação, cit., p. 158; A. Franco Montoro, op. cit., v. 2, p. 77 e 78; Cendrier, L'obligatión naturel, p. 12; Dabin, Teoria general dei derecho, Madrid, 1955, p. 52; Senn, Leges perfectae, imperfectae, minus quam perfectae, Paris, 1902; W. Barros Monteiro, Curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, v. 4, p. 237-42; Marcelo Figueiredo, A medida provisória na Constituição, São Paulo, Atlas, 1991. 105. A. Franco Montoro, op. cit., p. 65 e s.; Roberto Caldas, Limitações das medidas provisórias, Folha de S. Paulo, 19 jan. 1994; Celso Ribeiro Bastos, Lei complementar — teoria e comentários, São Páulo, Celso Bastos ed., 1999; CF, art. 5 9 ,1 a VII. Vide: Resolução n. 1/2002 do Congresso Nacional sobre apreciação do CN das Medidas Provisórias e o Decreto n. 4.176/2002 que estabelece normas para elaboração, redação, alteração, consolidação e encaminhamento ao Presidente da República de projetos de atos normativos da competência dos órgãos do Poder Executivo; Resolução do Senado Federal n. 23/2007, que altera o Regimento Intemo do Senado Federal, para dispor sobre o processo de apresentação, tramitação e de aprovação dos projetos de lei de consolidação. 54 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o dade, não podendo, portanto, apresentar contradições com os textos constitucionais, sob pena de serem declaradas inconstitucionais, e superiores às leis ordinárias, que por sua vez não as podem contrariar, sob pena de invalidade (CF, arts. 59, parágrafo único, 61 e 69). 3 — Leis ordinárias: são as elaboradas pelo Poder Legislativo. Leis delegadas: têm a mesma posição hierárquica das ordinárias, só que são elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional (CF, art. 68, §§ I a a 3a). Medidas provisórias: estão no mesmo plano das ordinárias e das delegadas, embora não sejam leis, sendo editadas pelo Poder Executivo (CF, art. 84, XXVI) que exerce função normativa, nos casos previstos na Constituição Federal. Substituíram, com a promulgação da Nova Carta, os antigos decretos-leis (art. 25, I, II, §§ I a e 2a, do Ato das Disp. Transitórias). Pelo art. 62, §§ I a a 12, da Constituição de 1988 (com a redação da EC n. 32/01), o Presidente da República poderá adotar tais medidas, com força de lei, em caso de relevância e urgência, devendo submetê-las de im ed ia ­ to ao Congresso Nacional. Tais medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei dentro de 60 dias, prorrogável por uma única vez por igual prazo, contado a partir de sua publicação, suspendendo-se durante os períodos de recesso parlamentar, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. Se tal decreto legislativo não for editado até 60 dias após a rejeição ou perda de eficácia da medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. Vedada está a edição de medidas provisórias sobre: a) questões relativas a nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; direito penal, processual penal e processual civil; organização do Poder Judiciário e de Ministério Público, a carreira e garantia de seus membros; planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares; b) detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; c) matéria reservada à lei complementar; e d) assunto já disciplinado em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República. Com isso freia-se o poder normativo do Presidente da República, tornando-se o Congresso Nacional corresponsável pela decisão do Executivo. Decretos legislativos: são normas, aprovadas pelo Congresso, sobre matéria de sua exclusiva competência, como ratificação de tratados intemacio- 55 nais, julgamentos das contas do Presidente da República. Portanto, tais atos não são remetidos ao Presidente da República para serem sancionados. Resoluções: são decisões do Poder Legislativo sobre assuntos do seu peculiar interesse, como questões concernentes à licença ou perda de cargo por deputado ou senador ou à fixação de subsídios. 4 — Decretos regulamentares: são normas jurídicas gerais, abstratas e impessoais, estabelecidas pelo Poder Executivo, para desenvolver üma lei, facilitando sua execução.. 5 — Normas internas: são os despachos, estatutos, regimentos etc. 6 — Normas individuais: são os contratos, sentenças judiciais, testamentos etc. T e o r ia G e r a i , d o D ir e i t o C ivil 1 Q uadro S in ó t ic o DIREITO POSITIVO 1. NOÇÃO DE DIREITO POSITIVO 2. DIREITO OBJETIVO 3. DIREITO SUBJETIVO 4. DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO 4. DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO o) Conceito Segundo Miguel Reale é a ordenação heterônoma das relações sociais, baseada numa integração normativa de fatos e valores. É o complexo de normas jurídicas que regem o comportamento humano de modo obrigatório, prescrevendo uma sanção no caso de sua violação. " Para Goffredo Telles jr. é a permissão, dada por meio de norma jurídica, para fazer ou não fazer alguma coisa, para ter ou não ter algo, ou, ainda, a autorização para exigir, por meio dos órgãos competentes do direito público ou por meio de processos legais, em caso de prejuízo causado por violação de norma, o cumprimento de norma infringida ou a reparação do mal sofrido. 1. Direito subjetivo comum da existência, que é a permissão de fazer ou não fazer, de ter ou não ter algo, sem violação de preceito normativo. 2. Direito subjetivo de defender direito, que é a autorização de assegurar o uso do direito subjetivo, de modo que o lesado pela violação da norma está autorizado por ela a resistir contra a ilegalidade, a fazer cessar o ato ilícito, a reclamar reparação pelo dano e a processar criminosos, impondo-lhes pena, ‘ Direito público era aquele concernente ao estado dos negócios romanos, e o privado, o que disciplinava interesses particulares. Contudo, esse critério da utilidade ou interesse visado pela norma é falho, porque não se pode 1. Direito afirmar, com segurança, se o interesse protegido é do Esromano tado ou dos indivíduos. Em razão disso houve autores que concluíram que o fundamento da divisão encontrava-se no "interesse dominante", ideia insatisfatória, pois tão interligados estão que é impossível verificar qual o interesse dominante. b) Espécies o) Fundamentos da divisão o) Fundamentos da divisão 2. Savigny 3. Ihering 4. Kahn 5. jellinek 6. Goffredo Telles Jr. 7. Doutrina dominante No direito público o todo se apresenta como fim, e o indivíduo permanece em segundo plano; no privado, cada indivíduo, considerado em si, constitui o fim deste ramo do direito, e a relação jurídica apenas serve como meio para sua existência e para as suas condições particulares. Percebe-se, todavia, que o Estado também pode ser fim da relação jurídica regulada pelo direito privado, como no . caso em que for parte numa compra e venda. Reduz o direito ao direito de propriedade, ao dizer que a propriedade estatal tem por titular o governo da nação e a coletiva, o povo. O direito privado teria conteúdo patrimonial e o público, não. N ão' se pode aceitar essa teoria porque há partes do direito privado que não têm natureza patrimonial e normas de direito público com caráter patrimonial. O direito privado regula relações individuais e o público, as relações entre sujeitos dotados de imperium. Observa-se, entretanto, que mesmo os sujeitos que têm império podem ser sujeitos de direito privado, como na hipótese em que o Estado é parte numa compra e venda. Este jurista distingue o direito público do privado com base em dois elementos: o interesse preponderante protegido pela norma e a forma de relação jurídica regulada por prescrição normativa. A relação jurídica de coordenação (direito privado) é a que existe entre partes que se tratam de igual para igual. E a de subordinação, de direito público, é a em que uma das partes é o governo, que exerce poder de mando. Gurvitch e Radbruch também aceitam que o direito público seria um direito de subordinação, com primado da justiça distributiva, e o privado, um direito de coordenação, subordinado à justiça comutativa. Nessas concepções o direito internacional público ficaria à margem da distinção., O direito público é aquele que regula relações em que o Estado é parte, regendo a organização a atividade do Estado, considerado em si mesmo, em relação com outro Estado e em suas relações com particulares, quando procede em razão de seu poder soberano e atua na tutela do bem coletivo. O direito privado é o que disciplina relações entre particulares, nas quais predomina, de modo imediato, o interesse de ordem privada. 4. DIREITO PUBLICO E DIREITO PRIVADO 5. FONTES JURÍDICAS 6. NORMA JURÍDICA b) Ramos do direito público e privado 1. Direito público Interno Externo Direito constitucional. Direito administrativo. Direito tributário e financeiro. Direito processual. Direito penal. Direito previdenciário. Direito internacional público e privado. Este último é, na verdade, ramo do direito público interno. 2. Direito privado Direito civil. Direito comercial. Direito do trabalho. Direito do consumidor. a) Fonte material ou real, ou seja, os fatores que condicionam a gênese da norma jurídica. b) Fonte formal como fundamento da validade da ordem jurídica. c) Fonte formal- -material a) Conceito Toda fonte formal contém implicitamente a material (fonte de produção), dando-lhe a forma, demonstrando quais são os meios empregados para conhecer o direito; daí ser fonte de cognição, abrangendo fontes estatais (legislativas, jurisprudenciais e convencionais) e não estatais (direito consuetudinário, científico e convencional). Segundo Goffredo Telles Jr. é um imperativo-autorizante. A imperatividade revela seu gênero próximo, incluindo-a no grupo das normas éticas, que regem a conduta humana, diferenciando-a das leis físico-naturais, e o autorizamento indica sua diferença, distinguindo-a das demais normas. 1. Quanto à imperatividade Normas de imperatividade absoluta ou impositivas. Normas de imperatividade relativa ou dispositivas, que podem ser permissivas e supletivas. b) Classificação 2. Quanto ao autorizamento Mais que perfeitas. Perfeitas. Menos que perfeitas. Imperfeitas. 6. NORMA JURÍDICA b) Classificação 3. Quanto à hierarquia o) Normas constitucionais. b) Leis complementares. c) Leis ordinárias. - Leis delegadas. - Medidas provisórias. - Decretos legislativos. - Resoluções. d) Decretos regulamentares. e) Normas internas. f ) Normas individuais. Direito civil A . P r i n c í p i o s e c o n t e ú d o d o d i r e i t o c i v i l O conceito do direito civil passou por uma evolução histórica106. No direito romano era o direito da cidade que regia a vida dos cidadãos independentes107, abrangendo todo o direito vigente, contendo normas de direito penal, administrativo, processual etc. Na era medieval, o direito civil ídentiflcou-se com o direito romano, contido no Corpus Juris Civilis, sofrendo concorrência do direito canônico, devido à autoridade legislativa da Igreja, que, por sua vez, constantemente, invocava os princípios gerais do direito romano. Na Idade Moderna, no direito anglo-americano, a expressão civil law correspondia ao direito moderno, e as matérias relativas ao nosso direito civil eram designadas como private law10S. Passou a ser um dos ramos do direito privado, o mais importante por ter sido a primeira regulamentação das relações entre particulares. A partir do século XIX toma um sentido mais estrito para designar as instituições disciplinadas no Código Civil109. Contém o Código Civil duas partes: a geral, que, com base nos elementos do direito subjetivo, apresenta normas concernentes às pessoas, aos bens, aos fatos jurídicos, atos e negócios jurídicos, desenvolvendo a teoria das nulidades e princípios reguladores da prescrição e decadência110, e a especial, 106. Hemández Gil, El concepto dei derecho civil, Madrid, RDP. 107. Gaius, Institiiciones, Commentarius primus, 1. 108. Caio M. S. Pereiia, Instituições, cit., v. 1, p. 31. 109. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 31; Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, p. 37. 110. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 88; Paulo Nader, Curso de direito civil— parte geral, Rio de Janeiro, Forense, 2002; Arnaldo Rizzardo, Parte geral do Código Civil, Rio de Janeiro, Forense, 2003. 61 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il cóm normas atinentes: a) ao "direito das obrigações", tendo como fulcro o poder de constituir relações obrigacionais para a consecução de fins econômicos ou civis, disciplinando os contratos e as obrigações oriundas de declaração unilateral de vontade e de atos ilícitos; b) ao "direito de empresa", regendo o empresário, a sociedade, o estabelecimento e os institutos complementares; c) ao "direito das coisas", referente à posse, à propriedade, aos direitos reais sobre coisas alheias, de gozo, de garantia e de aquisição; ã) ao "direito de família", normas relativas ao casamento, à união estável, às relações entre os cônjuges e conviventes, às de parentesco e à proteção de menores e incapazes; e e) ao "direito das sucessões", formulando normas sobre a transferência de bens por força de herança e sobre o inventário e partilha111. Apresenta, ainda, um livro complementar que encerra as disposições finais e transitórias (arts. 2.028 a 2.046). O direito civil é, pois, o ramo do direito privado destinado a reger relações familiares, patrimoniais e obrigacionais que se formam entre indivíduos encarados como tais, ou seja, enquanto membros da sociedade112. É o direito comum a todas as pessoas, por disciplinar o seu modo de ser e de agir, sem quaisquer referências às condições sociais ou culturais. Rege as relações mais simples da vida cotidiana, atendo-se às pessoas garantidamente situadas, com direitos e deveres, na sua qualidade de marido e mulher, pai ou filho, credor ou devedor, alienante ou adquirente, proprietário ou possuidor, condômino ou vizinho, testador ou herdeiro113. Como se vê, toda a vida social está impregnada do direito civil, que regula as ocorrências do dia a dia, pois, como exemplifica Ferrara, a simples aquisição de uma carteira de notas é contrato áe compra e venda; a esmola que se dá a um pedinte é doação; o uso de um ônibus é contrato de transporte; o valer-se de restaurante automático no qual se introduz uma moeda para obter alimento é aceitação de oferta ao público114. Os princípios basilares que norteiam todo conteúdo do direito civil são: o da personalidade, ao aceitar a ideia de que todo ser humano é sujeito de direitos e obrigações, pelo simples fato de ser homem; o da autonomia da vontade, pelo reconhecimento de que a capacidade jurídica da pessoa humana lhe confere o poder de praticar ou abster-se de certos atos, conforme 111. M. Reale, Lições preliminares áe direito, p. 356; Caio M. S. Pereira, op. cit., p. 88 e 89. 112. Serpa Lopes, Curso de direito civil, cit., v. 1, p. 32. 113. M. Reale, Lições, cit., p. 353 e 354. 114. Orlando Gomes, op. cit., p. 40. 62 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s il e ir o sua vontade; o da liberdade de estipulação negocial, devido à permissão de outorgai direitos e de aceitar deveres, nos limites legais, dando origem a negócios jurídicos; o da propriedade individual, pela ideia assente de que o homem pelo seu trabalho ou pelas formas admitidas em lei pode exteriorizar a sua personalidade em bens móveis ou imóveis que passam a constituir o seu patrimônio; o da intangibilidade familiar, ao reconhecer a família como uma expressão imediata de seu ser pessoal; o da legitimidade da herança e do direito de testar, pela aceitação de que, entre os poderes que as pessoas têm sobre seus bens, se inclui o de poder transmiti-los, total ou parcialmente, a seus herdeiros; o da solidariedade social, ante a função social da propriedade e dos negócios jurídicos, a fim de conciliar as exigências da coletividade com os interesses particulares115. Os demais ramos do direito privado destacaram-se do direito civil por força da especialização de interesses, sujeitando-se à regulamentação de atividades decorrentes do exercício de profissões116, pois o direito civil, propriamente dito, disciplina direitos e deveres de todas as pessoas enquanto tais e não na condição especial de empresário ou empregado, que se regem pelo direito comercial, apesar de algumas de suas normas estarem inseridas no Código Civil, que absorveu o direito da empresa, e pelo direito do trabalho. Q u a d r o S i n ó t i c o : CONTEÚDO E PRINCÍPIOS DO DIREITO CIVIL • Apresenta norm as sobre pessoas, bens e fatos jurídicos em sentido amplo. = Regula o direito das obrigações (arts. 233 a 965); o direito de empresa (arts. 966 a 1.195); o direito das coisas (arts. 1.196 a 1.510); o direito de família (arts. 1.511 a 1.783) e o direito das sucessões (arts. 1.784 a 2.027). * Disposições finais e transitórias (arts. 2.028 a 2.046). 115. M. Reale, Lições, cit., p. 355 e 356; Paulo Luiz Netto Lôbo, Constitucionalização do direito civil, Revista de Informação Legislativa, n. 141, ;an./mar. 1999, p. 99-109; R. Limongi França, O direito civil como direito constitucional, RDC, 54:167; Francisco dos Santos Amaral Neto, A evolução do direito civil brasileiro, RDC, 24:74; Roberto Rosa, Constituição e direito civil, RT, 761:64; Rosa Maria Andrade Nery, Noções preliminares de direito civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002. 116. Orlando Gomes, op. cit., p. 37. Parte Ceral 1. CO N TEÚ D O DO DIREITO C IV IL * ? . . Especial Livro C o m ­ plementar 63 T e o r ia G e r a l d o D ir e i t o C iv il ! 2. PRIN CÍPIO S DO j D IREITO CIV IL B. E t x o l o g i a h i s t ó r i c a d o C ó d i g o C i v i l b r a s i l e i r o Difícil é a tarefa de codificar o direito, pois não é uma simples reunião de preceitos normativos relativos a certo tema. É preciso coordenar e classificar metodicamente as normas concernentes às relações jurídicas de uma só natureza, criando princípios harmônicos, dotados de uma unidade sistemática117; para tanto deve-se eleger um critério objetivo, lógico e racional. A ideia de codificar o direito surgiu entre nós com a proclamação da independência política em 1822. Ante o fato de não haver leis próprias, a Assembleia Constituinte baixou a Lei de 20 de outubro de 1823, determinando que continuassem a vigorar, em nosso território, as Ordenações Filipinas, de Portugal, embora alteradas por leis e decretos extravagantes, principalmente na seara cível, até que se elaborasse o nosso Código. A Constituição Imperial de 1824 determinou a organização do Código Civil e Criminal, que viria consolidar a unidade política do país e das províncias. Carvalho Moreira, em 1845, foi quem primeiro se preocupou com a matéria ao apresentar um estudo sobre a revisão e codificação das leis civis. Em 15 de fevereiro de 1855, o governo imperial entendeu que antes da codificação seria preciso tentar uma consolidação das leis civis, que se encontravam esparsas, e para tanto encarregou Teixeira de Freitas, que, em 1858, obteve a aprovação de sua Consolidação das Leis Civis, com 1.333 artigos. Contratou-se, então, Teixeira de Freitas para elaborar. 9 projeto de Código Civil, que não foi aceito por ter unificado o direito civil com o direi­ • Da personalidade. " Da autonomia da vontade. • Da liberdade de estipulação negocial. • Da propriedade individual. • Da intangibilidade familiar. • Da legitimidade da herança e do direito de testar. • Da solidariedade social. 117. Caio M. S. Pereira, op. cit., p. 82; Sebastião José Roque, Teoria geral do direito civil, São Paulo, ícone, 1994, p. 13-24. 64 to comercial. Entretanto, o Esboço de Teixeira de Freitas exerceu grande influência na feitura do Código Civil argentino. Após rescindir o contrato com Teixeira de Freitas, o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, incumbiu-se de elaborar um novo projeto, porém devido a sua morte não pôde levar até o fim sua missão. Em 1881, Felício dos Santos apresentou um projeto denominado Apontamentos, com 2.602 artigos, que recebeu parecer contrário da comissão nomeada para examiná-lo. Essa mesma comissão, composta de juristas renomados como Lafayette Rodrigues Pereira, Ribas, Justiniano de Andrade, Coelho Rodrigues, Ferreira Viana e Felício dos Santos, fez uma tentativa de codificação, mas a comissão, com a perda de Justiniano e Ribas e com o afastamento de Lafayette, logo se dissolveu em 1886. Em 1889, pouco antes da proclamação da República, o ministro da Justiça, Cândido de Oliveira, nomeou uma comissão, que, com o advento da República, não chegou a apresentar nenhum projeto de codificação. Ante as tentativas infrutíferas das comissões, o ministro da Justiça, Campos Sales, incumbiu em 12 de julho de 1890 Coelho Rodrigues da feitura de projeto, que, concluído em 23 de fevereiro de 1893, também não conseguiu ser transformado em lei. Contudo, ao ocupar a Presidência da República, Campos Salles, por indicação de seu ministro Epitácio Pessoa, nomeou, em 1899, Clóvis Beviláqua para esta árdua tarefa. No final desse ano apresentou ele um projeto, que após dezesseis anos de debates transformou-se no Código Civil, promulgado em I a de janeiro de 1916, e vigente a partir de l 2 de janeiro de 1917, com novas alterações introduzidas pela Lei n. 3.725/19118. Como observa R. Limongi França119, o Código Civil apresentou-se como um diploma de seu tempo, atualizado para a época, porém o seu tempo foi o da transição do direito individualista para o social. Com isso, precisou ser revisto e atualizado. O Código Civil de 1916 era obra monumental; alterar seu texto seria a destruição de um patrimônio cultural, mas a realidade social se impôs, de C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s il e ir o 118. Caio M, S. Pereira, op. cit., p. 84-8; W. Barros Monteiro, op. cit., p. 48-53. O CC de 1916, por seguir o espírito de sua época, era individualista e patriarcalista e caracterizava-se pelo voluntarismo baseado na autonomia da vontade. 119. R. Limongi França, Código Civil (Histórico), in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 15, p. 393. 65 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il modo imperioso, pois os fatos não podiam ficar adstritos a esquemas legais que, a eles, não correspondiam. Em verdade, depois de 1916 os acontecimentos alteraram, profundamente, os fatos sociais, requerendo maior ingerência do juiz nos negócios jurídicos, derrogando o princípio pacta sunt servanãa. A locação de serviço deu ensejo ao aparecimento dos contratos de trabalho; a propriedade, que no Código Civil apresentava-se com um cunho individualista, passa a ter uma função social efetiva; o direito de família sofreu influência da publicizaçãò dos conceitos, reclamando a alteração das condições da mulher casada, em razão de sua promoção política e profissional, a inclusão dos preceitos concernentes à separação judicial e divórcio, a modificação dos princípios relativos ao menor sob pátrio poder e tutela, maior atenção à questão do menor abandonado e à dos efeitos da união estável, a revisão do regime de bens, pois a minúcia com que cuidava do regime dotal poderia levar o observador a pensar que ele era extremamente usado entre nós, quando, na verdade, ninguém a ele recorria; o condomínio em edifícios de apartamentos e o pacto de reserva de domínio em contratos de compra e venda requeriam uma secção no Código Civil; o pacto de melhor comprador, a enfiteuse e a hipoteca judicial estavam em franca decadência, sendo de bom alvitre que se suprimissem tais institutos do Código e se incluísse a superfície; o direito obrigacional exigia que se alargasse a noção de responsabilidade civil, que se consignassem normas sobre a teoria da imprevisão, que se disciplinasse o instituto da lesão e o do estado de perigo, que se fixasse a questão do abuso de direito, que se cogitasse da reserva mental, que se tratasse da cessão de débito paralela à do crédito; o direito da personalidade requeria uma construção dogmática; o direito das sucessões sofreu pressão do direito previdenciário que acolheu a herança do companheiro, sendo necessário, ainda, que se adaptassem as normas de sucessão legítima e legitimária conseqüentes às modificações do direito de família, e simplificasse a elaboração do testamento, principalmente nas formas em que participe o oficial público120. Com o escopo de atualizar o Código Civil de 1916, atendendo aos reclamos sociais, várias leis, que importaram em derrogação do diploma de 1916, 120. R. Limongi França, Código, cit., v. 15, p. 393 e 394; Calo M. S. Pereira, op. cit., p. 90 e 91; Silvio Rodrigues, Direito Civil, Max Limonad, 1962, v. 1, p. 35; W. Barros Monteiro, op. cit., p. 53; Maria Helena Diniz, Código Civil de 1916, in História do direito brasileiro, Eduardo C. B. Bittar (org.), São Paulo, Atlas, 2003, p. 209-220. 66 foram publicadas, dentre elas: a do estatuto da mulher casada, a do divórcio, as da união estável, a dos direitos autorais, a dos registros públicos, a do compromisso de compra e venda, a do inquilinato, a do reconhecimento de filhos, a do condomínio edilício, a do parcelamento do solo, a do estatuto da criança e do adolescente etc.121. O direito civil, então, inclinou-se às contingências sociais criadas por leis especiais, acolhendo as transformações ocorridas, aluvionalmente, paia atender às aspirações da era atual. O Govemo brasileiro, reconhecendo a necessidade da revisão do Código Civil, em virtude das grandes transformações sociais e econômicas, resolveu pôr em execução o plano de reforma, encarregando Orozimbo Nonato, Filadelfo Azevedo e Hahnemann Guimarães de redigir um Anteprojeto de Código das Obrigações separado do Código Civil, seguindo o exemplo suíço, que, vindo a lume em 1941, sofreu, contudo, severas críticas de juristas, por atentar contra o critério orgânico do nosso direito codificado, que se romperia com a aprovação isolada do Código Obrigacional122. Em 1961, com o objetivo de elaborar um Anteprojeto do Código Civil, o Governo nomeia para tanto Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira e Sílvio Marcondes. Entretanto, esse projeto, ao ser enviado ao Congresso Nacional, em 1965, foi retirado pelo Govemo em decorrência de fortes reações. O ministro da Justiça Luiz Antônio da Gama e Silva, em 1967, nomeia nova comissão para rever o Código Civil, convidando para integrarem-na: Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sílvio Marcondes, Ebert V. Chamoun, Clóvis Couto e Silva e Torquato Castro. Em 1972, essa comissão apresenta um Anteprojeto que procurou manter a estrutura básica do Código Civil, reformulando os modelos normativos à luz dos valores éticos e sociais da experiência legislativa e jurisprudencial, substituindo na Parte Geral a disciplina dos atos jurídicos pela dos negócios jurídicos e alterando a Parte Especial em sua ordem, a saber: obrigações, direito empresarial, coisas, família e sucessões. Recebeu críticas desfavoráveis por unificar as obrigações civis e mercantis. Em 1984 foi publicada no Diário do Congresso Nacional a redação final do Projeto de Lei n. 634-B/75 que, constituindo o PLC n. 118/84, recebeu inúmeras emendas em razão da promulgação da nova Carta Magna, introduzindo muitas novidades, oriundas da evolução social, cheC u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o 121. R. Limongi França, Código, cit., v. 15, p. 394. 122. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 89 e 90. 67 gando após 26 anos.de tramitação no Senado e na Câmara dos Deputados à sua redação definitiva, contando com subsídios de entidades jurídicas e de juristas e dando maior ênfase ao social. Aprovado por ela e pelo Senado em 2001, e publicado em 2002, revogou o Código Civil de 1916, a primeira parte do Código Comercial de 1850, bem como toda a legislação civil e comercial que lhe for incompatível (CC, art. 2.045). O novel Código passa a ter um aspecto mais paritário e um sentido social, atendendo aos reclamos da nova realidade, abolindo instituições moldadas em matrizes obsoletas, albergando institutos dotados de certa estabilidade, apresentando desapego a formas jurídicas superadas, tendo um sentido operacional à luz.do princípio da realizabilidaãe, traçando, tão somente, normas gerais definidoras de instituições e de suas finalidades, com o escopo de garantir sua eficácia, reservando os pormenores às leis especiais, mais expostas às variações dos fatos da existência cotidiana e das exigências sociocontemporâneas, e eliminando, ainda, normas processuais ao admitir apenas as intimamente ligadas ao direito material. Procura exprimir, genericamente, os impulsos vitais, formados na era contemporânea, tendo por parâmetro a justiça social e o respeito da dignidade da pessoa humana (CF, art. Ia, III). Tem por diretriz o princípio da socialidaáe, refletindo a prevalência do interesse coletivo sobre o individual, dando ênfase à função social da propriedade e do contrato e à posse-trabalho, e ao mesmo tempo, contém, em seu bojo, não só o princípio da eticidade, fundado no respeito à dignidade humana, dando prioridade à boa fé subjetiva e objetiva, à probidade e à equidade, como também o princípio da operabilidade, conferindo ao órgão aplicador maior elastério, para que, em busca de solução mais justa (LINDB, art. 5a), a norma possa, na análise de caso por caso, ser efetivamente aplicada. Como diz Engisch, "normatividade carece de preenchimento valorativo", as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados contidos nos preceitos do novo diploma legal requerem uma valoração objetiva do julgador, tendo por base os valores vigentes na sociedade atual. Todos os princípios norteadores do Código Civil de 2002, ora vigente, giram em torno da cidadania, da dignidade humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Deixa, o novo Código, acertadamente, para a legislação especial a disciplina de questões polêmicas ou dependentes de pronunciamentos jurisprudenciais e doutrinários. Por isso, nada dispõe sobre contratos eletrônicos, direitos difusos, relações de consumo, parceria entre homossexuais, preservação do meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, experiênT e o r ia G e r a l d o D ir e i t o C ivil 68 C o r so d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o cia científica em seres humanos, pesquisa com genoma humano, clonagem humana, efeitos jurídicos decorrentes das novas técnicas de reprodução humana assistida, medidas socioeducativas aplicadas à criança e ao adolescente etc. Tais matérias não se encontram, no nosso entendimento, nos marcos do direito civil, por serem objeto de outros ramos jurídicos, em razão de suas peculiaridades, devendo ser regidas por normas especiais. Por exemplo, diante da necessidade de uma adaptação do direito do estado atual das situações inusitadas engendradas pelo progresso biotecnológico, o grande desafio do século XXI será desenvolver um biodireito, que corrija os exageros provocados pelas pesquisas científicas, pela biotecnologia e pelo desequilíbrio do meio ambiente e promover a elaboração de um Gódigo Nacional de Bioética, que sirva de diretriz na solução de questões polêmicas advindas de práticas biotecnocientíficas. Em vigor continuam, portanto, no que não conflitarem com o novo Código Civil, a Lei do Divórcio, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Locação Predial Urbana etc. (CC, arts. 2.033, 2.036, 2.043). Oxalá o n ov o C ódigo Civil logre êxito, sem embargo da ocorrência de fatos supervenientes, por representar um esforço para atualizar o direito civil, que se encontrava preso a normas contrárias ao espírito da época, visto que, como já dizia Rui Barbosa, "o tempo só respeita as obras de que foi colaborador"123. Q u a d r o S i n ó t i c o O K IG H M D O C Ó D IG O C IV IL « Após árduas e infrutíferas tentativas de codificação, Cam pos Salles, ao ocupar a Presidência da República, por indicação de Epitácio Pessoa, nomeia, em „ m r c „ _ _ 1899, Clóvis Beviláqua para essa tarefa; este no final ORIGEM DO C O D IG O . ^ - * desse mesmo ano apresentou um projeto que, apos 16 anos de debates, transformou-se no Código C ivil, promulgado em 1M -1916, entrando em vigor em 1H-1-1917, ora revogado pelo atual Código, que após 26 anos de tramitação foi aprovado. 123. Nelson Godoy Bassil Dower, Curso moderno de direito civil, Ed. Nelpa, 1976, v. 1, p. 46 e 47; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 91 e 92; Fábio V. Figueiredo e Brunno 69 T e o r ia G e r a l d o D ir e i t o C iv il C . O b j e t o e f u n ç ã o d a Pa r t e G e r a l O sistema germânico ou método científico-racional — preconizado por Savigny124 para atender ao requisito de que para uma boa codificação é mister que haja ordem metódica na classificação das matérias12s — divide o direito civil em uma Parte Geral e uma Parte Especial. Na Parte Geral contemplam-se os sujeitos de direito (pessoas), o objeto do direito (bens jurídicos) e os fatos jurídicos. Regulamenta-se tanto a pessoa natural como a jurídica (arts. Ia a 69), com a correlata questão do domicílio (arts. 70 a 78). Refere-se às diferentes categorias de bens: imóveis (arts. 79 a 81) e móveis (arts. 82 a 84); fungíveis e consumíveis (arts. 85 e 86); divisíveis e inP. Giancoli, Direito civil, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 7-56 (Coleção OAB Nacional, v. 1); Christiano Cassetari, A função social da obrigação: uma aproximação na perspectiva civil constitucional Direito civil — direito patrimonial e direito existencial — estudos em homenagem a Giselda Hironaka (coord. Tartuce e Castilho), São Paulo, Método, 2006, p. 177 a 190; Francisco Amaral, Interpretação jurídica segundo o Código Civil, Revista Brasileira de Direito Comparado, 29:19-42. Observa Reis (A elaboração do BGB: homenagem ao centenário do Código Civil Alemão, Revista de Direito Civil, n. 76, p. 30-43) que o BGB surgiu depois de 22 anos de discussão. Na Alemanha, após as dificuldades encontradas, desde o início do século XIX até pouco depois de sua metade, para a unificação do direito civil, o Conselho Federal (Bundesrat), cumprindo uma lei de 1873, veio a nomear, em 28-2-1874, uma Comissão Preparatória (Vorkommission), composta de cinco juristas, para elaborar o projeto de código civil. Em julho de 1896, o Conselho Federal aprovou o Projeto, votado pelo Reichstag, e em 18 de agosto do mesmo ano, aniversário da batalha de Gravelotte, o Kaiser promulgou o Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil, conhecido abreviadamente como BGB), com 2.385 parágrafos alterados em 2002. Consulte: Josaphat Marintre, Código e Leis especiais, Consulex, n. 13, p. 15 e 16; Glauber M. Talavera, O Projeto do Novo Código Civil brasileiro. Tribuna do Direito, abril de 2000, p. 32; Miguel Reale, Visão Geial do Projeto deiCódigo Civil, RT, 752:22; Osvaldo H. Tavares, Aspectos fundamentais do Projeto de Código Civil, RDC, 59:60; Roberto Senise Lisboa, Novo Código Civil e suas perspectivas perante a constitucionalização dos direitos, História, cit., p. 431-53; Jamil Miguel, Anotações à parte geral do Código Civil, in Contribuições ao estudo do novo direito civil, Campinas, Millennium, 2004, p. 3 a 9; George de C. Morais e Karina N. de Oliveira, A sistemática das dáusulas gerais no novo Código Civil, Direito e Liberdade, ESMARN, 5:455- 70 (2007); Francisco Amaral, O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma judicativo-decisório, STVDIA IVRIDICA, 90:33-55. Imprimiu-se, no atual Código, estilo que, como admitia Pe. Antônio Vieira (Sermão da Sexagésima, I, p. 18), pode ser muito claro e muito alto. Claro para que o entendam os que nada sabem e alto para que nele tenham muito que entender os que sabem. 124. Savigny, Sistema do direito romano. 125. W. Barros Monteiro, op. cit., p. 53. Em sua estrutura adotou o método do BGB (Bürgerliches Gesetzbuch), de grande perfeição técnica. 70 C o r s o d e D i r e i t o C i v il B r a s i l e ir o divisíveis (arts. 87 e 88); singulares e coletivos (arts. 89 a 91); bens reciprocamente considerados (arts. 92 a 97); públicos e particulares (arts. 98 a 103). No que concerne aos fatos jurídicos, após mencionar as disposições preliminares (arts. 104 a 114), apresenta cinco títulos: o do negócio jurídico (arts. 104 a 184); o dos atos jurídicos lícitos (art. 185); o dos atos ilícitos (arts. 186 a 188); o da prescrição e decadência (arts. 189 a 211); o da prova (art. 212 a 232)126. Na Parte Especial cuida-se do direito das obrigações (arts. 233 a 965); do direito de empresa (arts. 966 a 1.195); do direito das coisas (arts. 1.196 a 1.510); do direito de família (arts. 1.511 a 1.783) e do direito das sucessões (arts. 1.784 a 2.027), não mais invertendo como o fez o de 1916 a ordem do Código Civil alemão que lhe serviu de modelo, que inclui em primeiro lugar o direito das obrigações, ao qual se seguem o direito das coisas, o direito de família e o das sucessões. Apresenta, ainda, um Livro Complementar, contendo disposições transitórias (arts. 2.028 a 2.046). Não é necessário apresentar aqui as discussões sobre a utilidade ou conveniência da existência de uma parte geral no Código, pois, se o legislador lançou mão de um critério que a exige, não se pode pretender suprimi-la. Apesar de haver objeções127 à sua inclusão no Código Civil, grande é sua utilidade por conter normas aplicáveis a qualquer relação jurídica. Deveras, o direito civil é bem mais do que um dos ramos do direito privado; estabelece os parâmetros de todo ordenamento jurídico e engloba princí126. W. Barios Monteiro, op. cit., p. 56; José Carlos Moreira Alves, A parte geral do Projeto do Código Civil brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1986; Ehrenzweig, System des õsterreichischen allgemeinen Privatrechts, Wien, 1927, § 7, p. 36; Heck, Der allgemeine Teil des Privatrechts Einwort der Verteidigung, Archiv für die civilistische Praxis, 146:1 e s.; Georg Amold Heise, Grundiss eines Systems desgemeinem Zivilrechts, 1807; Alzira Pereira da Silva, A função da parte geral no Sistema do Código Civil, RDC, 16:53; Vilian Bollmann, As inovações jurídicas na Parte Geral do Novo Código Civil, RT, 793:42; Mário A. Konrad e Sandra L. N. Konrad, Direito civil 1, Coleção Roteiros Jurídicos, São Paulo, Saraiva, 2008, p. 3 a 92; Luís Paulo Cotrim Guimarães, Direito civil, Rio de Janeiro, Elsevier, 2007, p. 17 a 116; Silvio Luís Ferreira da Rocha, Direito civil 1, Parte Geral, São Pardo, Malheiros, 2010. 127. W. Barros Monteiro (op. cit., p. 55) apresenta algumas críticas à compreensão de uma Parte Geral e de uma Parte Especial. "Diz-se, p. ex., que a existência de ambas constitui excesso de técnica... Afirma-se ainda que o capítulo concernente aos fatos jurídicos interessa mais ao direito das obrigações, sendo raros seus reflexos nos demais ramos do direito civil. Não se justificaria assim sua permanência na Parte Geral. Assevera-se, por fim, que esta encerra princípios meramente acadêmicos, elementos heterogêneos ou abstrações inúteis, que poderiam ser perfeitamente dispensados, sem nenhum prejuízo para o Código. Tem-se por isso sustentado que as futuras codificações do direito privado não mais precisarão de Parte Geral." Entre nós, Hahnemann Guimarães e Orlando Gomes são adeptos da corrente que pretende suprimi-la. 71 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil pios ético-jurídicos de aplicação generalizada e não restritiva às questões cíveis. É consultando o direito civil que o jurista alienígena percebe qual a estrutura fundamental do ordenamento jurídico de um dado país e que o jurista nacional encontra as normas que têm repercussão em outros âmbitos do direito. É na Parte Geral que estão contidos os preceitos normativos relativos à prova dos negócios jurídicos, à noção dos defeitos dos atos jurídicos, à prescrição e à decadência, institutos comuns a todos os ramos do direito. Eis por que Planiol, Ripert e Boulanger sustentam que o direito civil continua sendo o direito comum, compreendendo normas atinentes às relações de ordem privada, generalizando conceitos fundamentais utilizados, frequentemente, por juspublicistas128. Além do mais a Parte Geral fixa, para serem aplicados, conceitos, categorias e princípios, que produzem reflexos em todo o ordenamento jurídico e cuja fixação é condição de aplicação da Parte Especial e da ordem jurídica; isto é assim porque toda relação jurídica pressupõe sujeito, objeto e fato propulsor que a constitui, modifica ou extingue. Como veremos, logo mais adiante, a relação jurídica pode ser focalizada sob três prismas: sujeito, objeto e relação de interesse sobre o objeto, que é o nexo de ligação entre eles. A Parte Especial contém normas relativas ao vínculo entre o sujeito e o objeto, e a Parte Geral, as normas pertinentes ao sujeito, ao objeto e à forma de criar, modificar e extinguir direitos, tornando possível a aplicação da Parte Especial. Logo, a Parte Geral do Código Civil tem as funções de dar certeza e estabilidade aos seus preceitos, por regular, de modo cogente, não só os elementos da relação jurídica, mas também os pressupostos de sua validade, existência, modificação e extinção e possibilitar a aplicação da Parte Especial, já que é seu pressuposto lógico. Clara é sua função operacional no sentido de que fornece à ordem jurídica conceitos necessários à sua aplicabilidade129. Ater-nos-emòs neste Livro ao exame da Parte Geral, daí o seu título: Teoria Geral do Direito Civil. 128. Planiol, Ripert e Boulanger, Traitê êlêmentaire du droit civil, v. 1, n. 32, p. 13; Caio M. S. Pereira, op. cit., p. 32 e 33. Constitui a Parte Geral o alicerce para a operacionalidade jurídica, por estabelecer as linhas basilares para adequar a norma aos fatos sociais in fieri e aos valores vigentes na sociedade atual. 129. A esse respeito vide Ephraim de Campos Jr., A função desempenhada pela Parte Geral no direito civil e fora do direito civil — Análise da Lei de Introdução ao Código Civil e sua função no ordenamento jurídico. Trabalho apresentado em 1980 no Curso de Pós-Graduação em Direito da PUCSP, p. 1-9. 1 Oi : u ! a ; 'O *“•' Z : O « • 'S C/D i ã iO O !i f i i < ' C3 ! c / E3cou CD > XIc VO 3 O) c , o 00 «3- rv ig u s l i 4 —r cc co ro u 3 § I c ,a ~ tO IO aj m ° CL. D - Q u . oo D oo i r ) on OT3p to te o ■D E £ gj s .! LO to £ £ CQ CU OU fa o 'i—'O 0) ’roQ. 'u c . •ÍT f D - Os 03C to »■§ S E .S"8 £ I ín o C U CQ 4-> ^ "D § s a XI .8 ° 5 'D *5. fi ralOu. 33c ■ ^o u ------ , 'O "7' ‘*7 u 5P o o s JV PO W 4-t £ 2 N < < D. S o O CLro E E LL. CU R5 E cuo‘d_o cn 1 — 'O * 3 to c n 0 c iro *•3X c 0) íü cu •wc u. <Ü rou ’ > c n0 u u 0E 0 0 “D0 12 .«-■a ro 'O •c U u o «■o ro .2 c u E o Q. to /ro H 1 3 y QJ </> íts • «B S ‘S N r“ O « S E t: c fli c _*• g 0J ,5 t- ’ ~J 1 ¥ ° 8 "D c C ro ro <ü cr os - £ .O rtj OI O> .ÍS o £ $ S « 13 > (D ra U -a = á s r *t <ô E — £> o xuJ r~ C «J m ra ~0C3 ® 5 05 r ~ O I § 5 u £ ■- 9 ? 55 ra c E ro • XJ É ã .2 c qJ ra c ® ra oS •” 3 v ~oo o óT. t i U *0* “O o" JZ vo 3 t ! eu o u õ E c u qj ra ~ _ 73 Dl Já_ ~C3 ra ro r? s J -s O R3 fO Q_ ro 37-0 ro ui -O d> o £ o o £ T3 o *T3C ra O) .§ | $I « à. ■“ u. to “O c o r> cn w ra o *5 ira qj C u (D fOp c r g fO "D § a 03 QJ .12 ro i? ro 4->O ro c . O i ü 3 s g ro o ^ 3Ep QJ 3 CT l ao *o s - l .2 'O sS..9- D- "3 CÚD 02Q "O t ! g - S ■£ o è: s <co z U' LU - J< Q < ü 2 z Z cò 123 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il £. A RELAÇÃO JURÍD ICA As normas de direito regulam comportamentos humanos dentro da sociedade. Isto é assim porque o homem, em vida social, está sempre em interação, influenciando a conduta de outrem, o que dá origem a relações sociais que, disciplinadas por normas jurídicas, transformam-se em relações de direito238. Segundo Del Vecchio239 a relação jurídica consiste num vínculo entre pessoas, em razão do qual uma pode pretender um bem a que outra é obrigada. A transformação do vínculo de fato em jurídico acarreta os seguintes efeitos: 1) Tem-se uma relação entre sujeitos jurídicos, ou melhor, entre o sujeito ativo, que é o titular do direito subjetivo de ter ou de fazer o que a norma jurídica não proíbe, e o sujeito passivo, que é o sujeito de um dever jurídico, é o que deve respeitar o direito do ativo240. Esse vínculo será de sujeição relativa ou específica se o sujeito passivo tiver a obrigação de satisfazer determinado interesse do titular do direito. É o que se dá com o direito de crédito: o devedor deverá pagar sua dívida a certo credor. A sujeição poderá ser absoluta ou genérica quando consiste apenas no dever de respeitar a posição jurídica do titular, como sucede nos direitos personalíssimos e nos direitos reais241. Além do mais quanto ao conteúdo a relação jurídica poderá ser: simples, quando se constitui de um só direito subjetivo. Cada sujeito ocupa 238. Serpa Lopes, Comentários, cit., v. 1, p. 227 e 228; Pugliatti, Introducción al estúdio dei derecho civil, p. 192; Von Tuhr, Teoria general dei derecho civil alemán, v. 1, p. 155. 239. Del Vecchio, Lezione de filosofia dei diritto, p. 263. Sobre o conceito de relação jurídica, vide Vicente Ráo, op. cit., v. 3, p. 296; Trabucchi, Istituzioni di diritto civile, cap. III; Enneccerus, Tratado de derecho civil, v. 1, t. 1. Santoro-Passarelli ensina-nos que a relação jurídica indica a respectiva posição de poder de uma pessoa e de dever da outra, ou seja, poder e dever estabelecidos pelo ordenamento jurídico para a tutela de um interesse (Dottrine generali dei diritto civile, p. 69). Para Hans Kelsen (Teoria pura do direito, 2. ed., 1962, v. 1, p. 311 e s.), a relação jurídica não é uma relação entre indivíduos, mas entre normas, ou seja, entre o dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde; sendo este último o dever jurídico, isto é, a própria norma jurídica, não há, na realidade, nenhuma relação entre o dever jurídico e o direito reflexo. 240. Windscheid, Pandette, v. 1, § 37-a; Von Tuhr (op. cit., v. 1, p. 156) por sua vez admite a existência de relações jurídicas entre uma pessoa e uma coisa (propriedade); entre duas pessoas; entre uma pessoa e determinado lugar (domicílio). 241. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, p. 98. 124 uma posição: um, a ativa, e outro, a passiva; e complexa, quando contiver vários direitos subjetivos, caso em que as pessoas ocupam, simultaneamente, as duas posições, figurando, ao mesmo tempo, como sujeito ativo e passivo, p. ex.: numa compra e venda, o comprador tem direito a entrega do objeto comprado (sujeito ativo) e o dever de pagar o preço (sujeito passivo), e o vendedor tem o direito de receber o pagamento do preço (sujeito ativo) e o dever de entregar a coisa vendida (sujeito passivo)242. O sujeito ativo tem, ainda, a proteção jurídica, ou seja, a autorização normativa para ingressar em juízo para reaver o seu direito, para reparar o mal sofrido em caso do sujeito passivo não ter cumprido suas obrigações. 2) O poder do sujeito passa a incidir sobre um objeto imediato, que é a prestação devida pelo sujeito passivo, por ter a permissão jurídica de exigir uma obrigação de dar, fazer ou não fazer, e sobre um objeto mediato, que é o bem móvel, imóvel ou semovente, sobre o qual recai o direito, devido à permissão que lhe é dada por norma de direito de ter alguma coisa como sua, abrangendo, airida, os seus modos de ser (sua vida, seu nome, sua liberdade, sua honra etc.). Orlando Gomes243 afirma que para ser objeto de direito a coisa precisa apresentar os requisitos da economicidade, permutabilidade e limitabilidade, ou seja, ser suscetível de avaliação pecuniária, podendo submeter-se ao domínio da pessoa e sendo o seu uso e quantidade limitados. 3) Há necessidade de um fato propulsor, idôneo à produção de conseqüências jurídicas. Pode ser um acontecimento, dependente ou não da vontade humana, a que a norma jurídica dá a função de criar, modificar ou extinguir direitos. É ele que tem o condão de vincular os sujeitos e de submeter o objeto ao poder da pessoa, concretizando a relação. Reveste a forma de fato jurídico stricto sensu, quando o acontecimento for independente da ação humana; de ato jurídico, se consistir num ato voluntário, sendo irrelevante a intenção do resultado; e de negócio jurídico, se provier de ação humana que visa a produzir os efeitos que o agente pretende244. De modo que se pode dizer, exemplificativamente, que o direito de propriedade é um vínculo entre o proprietário (sujeito ativo), que tem doC u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o 242. Orlando Gomes, op. cit., p. 104. 243. Orlando Gomes, op. cit., p. 103. 244. Orlando Gomes, op. cit., p. 104. 125 T e o r ia G e r a l d o D ir e t t o C iv il xnínio sobre a coisa (objeto mediato), em razão de permissão legal, e demais pessoas (sujeito passivo) que são obrigadas a respeitar tal domínio (objeto imediato)245. A Parte Geral do Código Civil objetiva regulamentar esses elementos da relação jurídica, ou seja, as pessoas, os bens e os fatos jurídicos em sentido lato. Eis por que serão objeto de nossa investigação nos próximos capítulos. r* Q u a d r o S i n ó t i c o : r e l a ç ã o j u r í d i c a Segundo Del Vecchio, consiste num vínculo entre pessoas, em razão do qual uma pode pretender um bem a que outra é obrigada. - Elementos * Sujeito ativo e passivo. ’ Objeto imediato e mediato. • Fato propulsor. ' Proteção jurídica. 245. A. Franco Montoro, op. cit., v. 2, p. 256. CAPÍTULO V - a s P essoas I L Personalidade A . C o n c e i t o d e p e s s o a Primeiro, imprescindível se torna verificar qual é a acepção jurídica do termo "pessoa"1. Para a doutrina tradicional "pessoa" é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito. Sujeito de direito é aquele que é sujeito de um dever jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica, que é o poder de fazer valer, através de uma ação, o não cumprimento do dever jurídico, ou melhor, o poder de intervir na produção da decisão judicial2. 1. Segundo W. Barros Monteiro (Curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, 1968, v. 1, p. 58 e 59), o vocábulo "pessoa" é oriundo do latim persona, que, adaptado à linguagem teatral, designava máscara. Isto é assim porque persona advinha do verbo personare, que significava ecoar, fazer ressoar, de forma que a máscara era uma persona que fazia ressoar, mais intensamente, a voz da pessoa por ela ocultada. Mais tarde persona passou a exprimir a própria atuação do papel representado pelo ator e, por fim, completando esse ddo evolutivo, a palavra passou a indicar o próprio homem que representava o papel. Passa, então, a ter três acepções: a) a vulgar, em que pessoa seria sinônimo de ser humano, porém não se pode tomar com precisão tal assertiva, ante a existência de instituições que têm direitos e deveres, sendo, por isso, consideradas como pessoas e devido ao fato de que já existiram seres humanos que não eram considerados pessoas, como os escravos; b) a filosófica, segundo a qual a pessoa é o ente, dotado de razão, que realiza um fim moral e exerce seus atos de modo consciente; c) a jurídica, que considera como pessoa todo ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. É nesse sentido que pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito da relação Jurídica. Rosa Nery (Pessoa natural: sujeito de direito, tese de doutorado apresentada na PUCSP em 1998, p. 64 e s.) esclarece que a pessoa deve, para individuar-se como sujeito de direito, apresentar: capacidade, status, fama, nome e domicílio. 2. Diego Espín Cánovas, Manual de derecho civil espafiol, v. 1, p. 100; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 59; Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil, 4. ed., p. 69. Vide o 130 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o Para Kelsen o conceito de sujeito de direito não é necessário para a descrição do direito, é um conceito auxiliar que facilita a exposição do direito. De forma que a pessoa natural, ou jurídica, que tem direitos e deveres, é um complexo destes direitos e deveres, cuja unidade é, figurativamente, expressa no conceito de pessoa. A pessoa é tão somente a personificação dessa unidade. Assim sendo, para esse autor a "pessoa" não é, portanto, um indivíduo ou uma comunidade de pessoas, mas a unidade personificada das normas jurídicas que lhe impõem deveres e lhe conferem direitos. Logo, sob o prisma kelseniano é a "pessoa" uma construção da ciência do direito, que com esse entendimento afasta o dualismo: direito objetivo e direito subjetivo3. Entre essas duas concepções ficamos com a primeira, que passamos a analisar. B . P e r s o n a l i d a d e j u r í d i c a Liga-se à pessoa a ideia de personalidade, que exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações4. Deveras, sendo a pessoa natural (ser humano) ou jurídica (agrupamentos humanos) sujeito das relações jurídicas e a personalidade a possibilidade de ser sujeito, ou seja, uma aptidão a ele reconhecida, toda pessoa é dotada de personalidade. A personalidade é o conceito básico da ordem jurídica, que a estende a todos os homens, consagrando-a na legislação civil e nos direitos constitucionais de vida, liberdade e igualdade5. art. Ia do Código Civil, que assim dispõe: "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil". 3. Kelsen, Teoria pura do direito, 2. ed., 1962, v. 1, p. 320 e s. 4. Caio M. S. Pereira, Instituições de direito civil, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1977, v. 1, p. 198; Clóvis Beviláqua, op. cit., § 3a, p. 67; D'Aguano, Lagenese e Vevoluzione dei diritto civile, p. 141 e s.; Enneccerus a define como a qualidade jurídica que constitui a condição prévia de todos os direitos e deveres (Derecho civil; parte general, p. 318); Larenz a considera como a faculdade de uma pessoa de poder ser titular de direitos e deveres (Derecho civil; parte general, p. 104). A pessoa é sempre sujeito de direito e obrigações e os direitos da personalidade são seus componentes. 5. Haroldo Valladão, Capacidade de direito, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 13, p. 34. A consideração da pessoa natural como ser humano coaduna-se com o art. 4a do Cap. II da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 25-9-1992 e promulgada pelo Decreto n. 678/92. Com isso evita-se conotação machista que não corresponderia com a paridade constitucional de direitos e deveres entre homens e mulheres como sujeitos de direitos. 131 Capacidade, por sua vez, é "a medida jurídica da personalidade"6, ou, como prefere Teixeira de Freitas, a "manifestação do poder de ação implícito no conceito de personalidade"7. Antônio Chaves, a esse respeito, afirma que para realçar a importância desse conceito na ciência jurídica e, especialmente, no direito privado, basta lembrar que não há nessa especialidade instituto jurídico que não lhe peça passagem. Só mediante representação e assistência poderá realizar-se um ato de interesse de um incapaz e, ainda assim, sob observância de rigorosas formalidades legais8. Isto é assim porque a capacidade jurídica é a condição ou pressuposto de todos os direitos. Assim, para ser "pessoa" basta que o homem exista, e, para ser "capaz", o ser humano precisa preencher os requisitos necessários para agir por si, como sujeito ativo ou passivo de uma relação jurídica. Eis por que os autores distinguem entre capacidade de direito ou de gozo e capacidade de exercício ou de fato9, como veremos logo mais. C. D i r e i t o s d a p e r s o n a l i d a d e A fim de satisfazer suas necessidades nas relações sociais, o homem adquire direitos e assume obrigações, sendo, portanto, sujeito ativo e passivo de relações jurídico-econômicas. O conjunto dessas situações jurídicas individuais, suscetíveis de apreciação econômica, designa-se patrimônio, que é, sem dúvida, a projeção econômica da personalidade; ao lado dos direitos reais temos os pessoais, como, p. ex., as relações entre credor e devedor. Porém, a par dos direitos patrimoniais e dos direitos pessoais a pessoa natural tem direitos da personalidade10, o mesmo se diga da pessoa jurídica (CC, art. 52), pois se houver violação à sua imagem, à sua honra objetiva etc., fará jus à reparação por dano moral (RT, 776:195, 734:507, 733:297 e 589, 727:123, 725:336; 716:2703; 680:85, 627:28; Súmula 227 do STF). T e o r i a G e r a i d o D i r e i t o C i v il 6. Virgílio de Sá Pereira, Direito de família, 2. ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1959; Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, 3. ed., 1971, p. 149. 7. Antônio Chaves, Capacidade civil, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 13, p. 2. 8. Antônio Chaves, Capacidade civil, cit., p. 2. 9. Antônio Chaves, Capacidade civil, cit., p. 3. 10. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 202 e 203; Diogo Leite de Campos, Lições de direito da personalidade, 1995; Capelo de Sousa, O direito geral da personalidade, 1995; Elimar Szaniawski, Direitos da personalidade e sua tutela, 1993; Antonio Cezar Lima da Fonseca, Anotações aos direitos da personalidade, RT, 715:36; Carlos Alberto Bittar 132 C o r so d e D i r e i t o C iv i l B r a s il e ir o O reconhecimento dos direitos da personalidade como categoria de direito subjetivo é relativamente recente, porém sua tutela jurídica já existia na Antiguidade, punindo ofensas físicas e morais à pessoa, através da actio injuriaram, em Roma, ou da áike kakegorias, na Grécia. Com o advento do Cristianismo houve um despertar para o reconhecimento daqueles direitos, tendo por parâmetro a ideia de fraternidade universal. Na era medieval entendeu-se, embora implicitamente, que o homem constituía o fim do direito, pois a Carta Magna (séc. XIII), na Inglaterra, passou a admitir direitos próprios do ser humano. Mas foi a Declaração dos Direitos de 1789 que impulFilho, Os direitos da personalidade na Constituição de 1988, RT, 733:83; Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho, Direito civil constitucional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 45-58; Eduardo C. B. Bittar, Os direitos da personalidade no novo Código Civil, Atualidades Jurídicas, 5:63-70; Fábio Maria de Mattia, Direitos da personalidade: aspectos gerais, RDC, 3:35; José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, O Estado de direito e os direitos da personalidade, RT, 532:11; André Decocq, Essai d'une théoríe gênérale des droits sur la personne, 1960; H. Hubman, Das Persónlichkeitsrecht, 1967; José Serpa de Santa Maria, Direitos da personalidade e a sistemática civil geral, 1987; Julius Binder, Das Problem der juristischen Personlichkeit, 1967; Ives Gandra da S. Martins, Os direitos da personalidade, O novo Código Civil — estudos em homenagem a Miguel Reale, São Paulo, LTr, 2003, p. 54-69; Alexandre Assumpção Alves, A pessoa jurídica e os direitos da personalidade, Rio de Janeiro, Renovar, 1998; Alex Sandro Ribeiro, Ofensa à honra da pessoa jurídica, São Paulo, LETJD, 2004; Pablo S. Gagliano e R. Pamplona Fa, Novo curso, cit., v. 1, p. 145-88; Luiz Edson Fachin, Direitos da personalidade no Código Civil brasileiro: elementos para uma análise de índole constitucional da transmissibilidade, Direito civil — direito patrimonial e direito existencial (coord. Tartuce e Castilho), São Paulo, Método, 2006, p. 625-44; Giselle C. Groeninga, Os direitos da personalidade e o direito de ter uma personalidade, Direito civil — direito patrimonial e direito existencial, cit., p. 645-64; Tatiana A. V. Rodrigues, Os direitos da personalidade na concepção civil — constitucional, Direito civil — direito patrimonial e direito existencial, cit., p. 665-78; Mário Luiz Delgado, Direitos da personalidade nas relações de família, in Família e dignidade humana, Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família (coord. R. Cunha Pereira), São Paulo, IOB Thomsom, 2006, p. 679. Vide Lei n. 4.319/64, que criou o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Mesmo a pessoa jurídica (CC, art. 52) tem direitos da personalidade, como o direito ao nome, à marca, à honra objetiva etc. Observa Michael R. Will (Warentext und Werbung, p. 67 e s.) que testes neutros de mercadoria podem ferir direitos da personalidade, como o nome da empresa, o good will (capacidade do estabelecimento de produzir lucros; qualidade do fundo de comércio, oriunda de condições objetivas, como local ou instalação, e subjetivas, como qualidade do titular e do pessoal) e a verba trabalhista referente à participação nos resultados obtidos pelo estabelecimento empresarial. Para acarretar responsabilidade civil por dano moral à pessoa jurídica, o fato lesivo e o dano eventual deverão ser comprovados (Enunciado n. 189 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil). Mas neste item concentrar-nos-emos na questão dos direitos da personalidade da pessoa natural considerada em si mesma e em sua projeção social. Vide Decreto Legislativo italiano n. 196/2003. 133 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il sionou a defesa dos direitos individuais e a valorização da pessoa humana e da liberdade do cidadão. Após a Segunda Guerra Mundial, diante das agressões causadas pelos governos totalitários à dignidade humana, tomou-se consciência da importância dos direitos da personalidade para o mundo jurídico, resguardando-os na Assembleia Geral da ONU de 1948, na Convenção Européia de 1950 e no Pacto Internacional das Nações Unidas. Apesar disso, no âmbito do direito privado seu avanço tem sido muito lento, embora contemplados constitucionalmente. O Código Civil francês de 1804 os tutelou em rápidas pinceladas, sem defini-los. Não os contemplaram o Código Civil português de 1866 e o italiano de 1865. O Código Civil italiano de 1942 os prevê nos arts. 5a a 10; o atual Código Civil português, nos arts. 70 a 81, e o novo Código Civil brasileiro, nos arts. 11 a 21. Sua disciplina, no Brasil, tem sido dada por leis extravagantes e pela Constituição Federal de 1988, que com maior amplitude deles se ocupou, no art. 5a em vários incisos e ao dar-lhes, no inc. XLI, uma tutela genérica ao prescrever que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Somente em fins do século XX se pôde construir a dogmática dos direitos da personalidade, ante o redimensionamento da noção de respeito à dignidade da pessoa humana, consagrada no art. Ia, III, da CF/88. A importância desses direitos e a posição privilegiada que vem ocupando na Lei Maior são tão grandes que sua ofensa constitui elemento caracterizador de dano moral e patrimonial indenizável, provocando uma revolução na proteção jurídica pelo desenvolvimento de ações de responsabilidade civil e criminal; do mandado de segurança; do mandado de injunção; do habeas corpus; do habeas data etc. Com isso reconhece-se nos direitos da personalidade uma dupla dimensão: a axiológica, pela qual se materializam os valores fundamentais da pessoa, individual ou socialmente considerada, e a objetiva, pela qual consistem em direitos assegurados legal e constitucionalmente, vindo a restringir a atividade dos três poderes, que deverão protegê-los contra quaisquer abusos, solucionando problemas graves que possam advir com o progresso tecnológico, p. ex., conciliando a liberdade individual com a social. Convém dizer uma palavra sobre os direitos da personalidade. Como pontifica Goffredo Telles Jr., a personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa11. A personalidade não é um direito, 11. G. Telles Jr., Direito subjetivo — I, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 28, p. 315. 134 C u r s o d e D i r e i t o C i v il B r a s i l e ir o de modo que seria errôneo afirmar que o ser humano tem direito à personalidade. A personalidade é que apoia os direitos e deveres que dela irradiam12, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens13. O direito objetivo autoriza a pessoa a defender sua personalidade, de forma que, para Goffredo Telles Jr., os direitos da personalidade são os direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a identidade, a liberdade, a sociabilidade, a reputação, a honra, a autoria etc. Por outras palavras, os direitos da personalidade são direitos comuns da existência, porque são simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta14. A vida humana, p. ex., é um bem anterior ao direito, que a ordem jurídica deve respeitar. A vida não é uma concessão jurídico-estatal, nem tampouco um direito a uma pessoa sobre si mesma. Na verdade, o direito à vida é o direito ao respeito à vida do próprio titular e de todos. Logo, 12. Ruggiero e Maroi, Istituzioni di diritto privato, Milano, 1955, v. 1, § 35. 13. G. Telles Jr., Direito subjetivo, cit., p. 315; Iniciação, cit., p. 297-304. 14. G. Telles Jr., Direito subjetivo, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 28, p. 315 e 316. R. Limongi França define os direitos da personalidade como "faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos" (Manual de direito civil, 3. ed., Revista dos Tribunais, 1975, p. 403). Simón Carrejo (Derecho civil, Bogotá, Themis, 1972,1.1, p. 299 e 1300) assevera: "en el lenguaje jurídico actual la expresión 'derechos de la personalidad' tiene significado particular, referido a algunos derechos cuya función se relaciona de modo más directo con la persona humana, pues se dirígen a la preservación de sus más íntimos e imprescindibles intereses. En efecto, esos derechos constituyen un mínimo para asegurar los valores fundamentales dei sujeto de derecho; sin ellos, la personalidad quedaria incompleta e imperfecta,.y el indivíduo, sometido a la incertidumbre en cuanto a sus bienes jurídicos fundamentales... Puede decirse que los derechos de la personalidad son los derechos subjetivos de caráter privado y no patrimonial, primordiales y absolutos, a través de los cuales el ordenamiento reconoce y tutela los intereses básicos e inherentes a la persona en si misma considerada". Vide Lei n. 8.069/90, que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, referindo-se aos seus direitos da personalidade nos arts. ls a 18, 53 a 69; à prevenção da ocorrência de sua violação, nos arts. 70 a 97, e às medidas de sua proteção, nos arts. 98 e seguintes; Lei n. 9.610/98, sobre tutela aos direitos autorais; Lei n. 8.078/90, sobre a proteção aos direitos do consumidor (à vida, à integridade física etc.); CPP, art. 201, § 62, com redação da Lei n. 11.690/2008, sobre a preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação. 135 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil os direitos da personalidade são direitos subjetivos “excluâenãi alios", ou seja, direitos de exigir um comportamento negativo dos outros, protegendo um bem inato, valendo-se de ação judicial. Os direitos da personalidade são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis. São absolutos, ou de exclusão, por serem oponíveis erga omnes, por conterem, em si, um dever geral de abstenção. São extrapatrimoniais por serem insuscetíveis de aferição econômica, tanto que, se impossível for a reparação in natura ou a reposição do statu quo ante, a indenização pela sua lesão será pelo equivalente. São intransmissíveis, visto não poderem ser transferidos à esfera jurídica de outrem. Nascem e se extinguem ope legis com o seu titular, por serem dele inseparáveis. Deveras ninguém pode usufruir em nome de outra pessoa bens como a vida, a liberdade, a honra etc. São, em regra, indisponíveis, insuscetíveis de disposição, mas há temperamentos quanto a isso. Poder-se-á, p. ex., admitir sua disponibilidade em prol do interesse social; em relação ao direito da imagem, ninguém poderá recusar que sua foto fique estampada em documento de identidade. Pessoa famosa poderá explorar sua imagem na promoção de venda de produtos, mediante pagamento de uma remuneração convencionada. Nada obsta a que, em relação ao corpo, alguém, para atender a uma situação altruística e terapêutica, venha a ceder, gratuitamente, órgão ou tecido. Logo, os direitos da personalidade poderão ser objeto de contrato como, por exemplo, o de concessão ou licença para uso de imagem ou de marca (se pessoa jurídica); o de edição para divulgar uma obra ao público; o de merchanãising para inserir em produtos uma criação intelectual, com o escopo de comercializá-la, colocando, p. ex., desenhos de Disney em alimentos infantis para despertar o desejo das crianças de adquiri-los, expandindo, assim, a publicidade do produto. Como se vê, a disponibilidade dos direitos da personalidade é relativa. São irrenunciáveis já que não poderão ultrapassar a esfera de seu titular. São impenhoráveis e imprescritíveis, não se extinguindo nem pelo uso, nem pela inércia na pretensão de defendê-los, e são insuscetíveis de penhora, Há quem ache que, diante da om issão legal, os direitos da personalidade são prescritíveis. Pondera Fábio Ulhoa Coelho que, "se o ofendido não promove a responsabilidade do ofensor dentro do prazo geral de prescrição, ele perde a oportunidade para defender seu direito da personalidade, do mesmo modo que perderia o de defender qualquer outro direito prescritível. Pretendendo sanar tal lacuna, o Projeto de Lei n. 699/2011 incluirá, como logo mais veremos, no rol dos caracteres dos direitos da personalidade, alterando a redação do art. 11, a imprescritibilidade. O direito da personalidade é o direito da pessoa de defender o que lhe é próprio, como a vida, a identidade, a liberdade, a imagem, a privacidade, 136 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o a honra etc. É o direito subjetivo, convém repetir, de exigir um comportamento negativo de todos, protegendo um bem próprio, valendo-se de ação judicial. Como todos os direitos da personalidade são tutelados em cláusula pétrea constitucional, não se extinguem pelo seu não uso, nem seria possível impor prazos para sua aquisição ou defesa. Logo, se a pretensão for indenização civil por dano moral direto em razão de lesão a direito da personalidade (p. ex., integridade física ou psíquica, vida, imagem, liberdade de pensamento etc.), ter-se-á, na nossa opinião, a imprescritibilidade. Mas se a pretensão for a obtenção de uma reparação civil por dano patrimonial ou dano moral indireto, o prazo prescricional será de três anos (CC, art. 206, § 3a, V). Isto porque a prescrição alcança os efeitos patrimoniais de ações imprescritíveis, como as alusivas às pretensões oriundas de direito da personalidade. Os direitos da personalidade são necessários e inexpropriáveis, pois, por serem inatos, adquiridos no instante da concepção, não podem ser retirados da pessoa enquanto ela viver por dizerem respeito à qualidade humana. Daí serem vitalícios; terminam, em regra, com o óbito do seu titular por serem indispensáveis enquanto viver, mas tal aniquilamento não é completo, uma vez que certos direitos sobrevivem. Deveras ao morto é devido respeito; sua imagem, sua honra e seu direito moral de autor são resguardados. São ilimitados, ante a impossibilidade de se imaginar um número fechado de direitos da personalidade. Não se resumem eles ao que foi arrolado normativamente, nem mesmo se poderá prever, no porvir, quais direitos da personalidade serão, diante das conquistas biotecnológicas e do progresso econômico-social, tipificados em norma. Apesar de apresentar todos esses caracteres, o art. 11 do Código Civil apenas reconhece expressamente dois deles, ao prescrever: "Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária". Mas, pelo Enunciado n. 4, aprovado na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, tal limitação seria possível desde que não seja permanente, nem geral. E, implicitamente, admite sua relativa disponibilidade, no art. 13, ao admitir doação de órgãos ou tecidos para fins terapêuticos e de transplante desde que não venha a lesar permanentemente a integridade física do doador, e sua vitaliciedade, ao prever, no art. 12, a possibilidade de reclamar perdas e danos por lesão a direito de personalidade do morto pelo seu cônjuge sobrevivente e parentes15; "os direitos da 15. Orlando Gomes, Os direitos da personalidade — coordenadas fundamentais, Revista do Advogado, São Paulo, Boi. AASP, n. 38,1992, p. 5-13; Introdução ao direito civil, 3. ed.. 137 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes" (Enunciado n. 139 do Conselho de Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil de 2004). Mais abrangente será a redação proposta pelo Projeto de Lei n. 699/2011 ao art. 11, com acréscimo de um parágrafo único: “O direito à vida, à integridade físico-psíquica, à identidade, à honra, à imagem, à liberdade, à privacidade, à opção sexual e outros reconhecidos à pessoa são natos, absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis. Parágrafo único. Com exceção dos casos previstos em lei, não pode o exercício dos direitos da personalidade sofrer limitação voluntária". Sem embargo disso, o Parecer Vicente Arruda não acatou essa proposta ao comentar o Projeto de Lei n. 6.960/2002 (hoje substituído pelo PL n. 699/2011), argumentando: "A existência de um capítulo expresso relativo aos direitos da personalidade constitui uma inovação do novo diploma ciRio de Janeiro, Forense, 1971, p. 143; Adriano de Cupis, Os direitos da personalidade, Lisboa, Livr. Morais, 1961, p. 44 e s.; Arturo de Valencia Zea, Derecho civil-, parte general, 6. ed., Bogotá, Themis, 1.1, p. 459 e 460; Carbonnier, Droit civil, Paris, PUF, 1969, v. 1, p. 247; Antônio Chaves, Lições de direito civil-, parte geral, São Paulo, Bushatsky, 1972, v. 3, p. 168; Fábio Maria de Mattia, Direitos de personalidade — II; in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 28, p. 155-8, e Direitos da personalidade: aspectos gerais, Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empresarial, 1978, n. 3, p. 40 e 41; Marcelo de Carvalho Bottallo, Os direitos da personalidade e a Constituição de 1988, Revista do Advogado, 38:45; Edson Ferreira da Silva, Direitos da personalidade — os direitos da personalidade são inatos?, RT, 694:21; Carlos Alberto Bittar, Os direitos da personalidade, Rio de Janeiro, Forense, 1995; Gilberto Haddad Jabur, Liberdade de pensamento e direito à vida privada, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 27-128; Capelo de Sousa, O direito geral da personalidade, Coimbra, 1995; Tobenas, Los derechos de la personalidad, Madrid, 1952; Lindon, Les droits de la personalité, Paris, Dalloz, 1983; Beignier, Le droit de la personalité, Paris, PUF, 1992; Perlingieri, La personalità umana nelVordinamento giuridico, 1972; Danilo Doneda, Os direitos da personalidade no novo Código Civil, A parte geral no novo Código Civil (coord. Tepedino), Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 35-58; Fábio Ulhoa Coelho, Curso, cit., v. 1, p. 182; Fernando Dias Menezes de Almeida, Liberdade de reunião, São Paulo, Max Limonad, 2002; Francisco Amaral, Direito civil — introdução, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 248; Adriana C. do R. Freitas Dabus Maluf, Direito da personalidade no novo Código Civil e os elementos genéticos para a identidade da pessoa humana, Novo Código Civil — questões controvertidas (coord. Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves), São Paulo, Método, 2003, p. 45-90. Sobre uso de cadáver não reclamado para fins de estudo e pesquisa científica: Lei n. 8.501/92. 138 C u r s o de D i r e i t o C r v n B r a s i l e i r o vil, na esteira das previsões constitucionais sobre a matéria, mormente as contidas no art. 5a da Carta Política. A proposta do alargamento redadonal desse dispositivo parece demasiada, mesmo porque a lei não deve conter palavras inúteis ou ser supérflua a ponto de tomar-se doutrinária. O alargamento, mesmo se fosse aceito, deveria ser exempMcativo para não fechar o rol dos direitos da personalidade, que são todos aqueles inerentes à pessoa. Além disso, a ressalva dos casos previstos em lei refere-se às qualidades dos direitos da personalidade, propriamente ditos, e não à limitação voluntária do seu exercício". R. Limongi França apresentou, cientificamente, a estrutura da especificação e classificação dos direitos da personalidade16, assim formulada: os direitos da personalidade são direitos de defender: 1) a integridade física: a vida, os alimentos, o próprio corpo vivo ou morto, o corpo alheio vivo ou morto, as partes separadas do corpo vivo ou morto (CF, art. 199, § 4a; Lei n. 9.434/97 e Deo n. 2.268/97, que a regulamenta; CC, arts. 13, 14 e 15; Lei n. 8.069/90, art. 33, § 4a, acrescentado pela Lei n. 12.010/2009; Portaria n. 1.376/93 do Ministério da Saúde); 2) a integridade intelectual: a liberdade de pensamento (RT, 210:411, 401:409), a autoria científica, artística, literária; 3) a integridade moral: a liberdade civil, política e religiosa, a honra (RF, 63:174, 67:217, 85:483), a honorificência, o recato, o segredo pessoal, doméstico e profissional (RT, 330:809, 339:518, 521:513, 523:438, 567:305; CC, art. 21), a imagem (RT, 570:177, 576:249, 600:69, 623:61; CC, art. 20) e a identidade pessoal (CC, arts. 16, 17, 18 e 19), familiar e social. Quanto ao critério dos aspectos fundamentais da personalidade, apresenta-os Limongi França de acordo com a seguinte divisão: 1) direito à integrida16. R. Limongi França, Manual, cit., p. 411; Coordenadas fundamentais dos direitos da personalidade, RT, 567:9; João Gualberto de Oliveira, O transplante dos órgãos humanos à luz do direito, São Paulo, 1970; Maria Helena Diniz, O estado atual do biodireito, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 249-316; Javier Lozano y Romen, Autonomia dei transplante humano, México, 1969; Jones F. Alves e Mário Luiz Delgado, Código Civil anotado, São Paulo, Método, 2004, p. 27. Sobre o direito à vida: Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 7, p. 135 e s.; O estado atual do biodireito, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 21-112. Para Raphael de Barros Monteiro Filho e Ronaldo de Barros Monteiro (Comentários ao novo Código Civil, coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, v. 1, 2010, art. 13), a circuncisão e a perfuração de orelhas para uso de brincos constituem atos não atentatórios à integridade física. As tatuagens e piercings, por serem modismos e afetarem a expressão corporal da pessoa, não deveriam ser praticados por serem uma agressão à pele, que é o órgão de defesa do organismo humano. As tatuagens e as perfurações de pele para colocação de ornamentos pela Lei estadual paulista n. 9.828/97, art. ls, estão proibidas se realizadas em menores. 139 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il de física: 1.1) Direito à vida: a) à concepção e à descendência (gene artificial, inseminação artificial, inseminação de proveta etc.); b) ao nascimento (aborto); c) ao leite materno; d) ao planejamento familiar (limitação de filhos, esterilização masculina e feminina, pílulas e suas conseqüências); e) à proteção do menor (pela família e sociedade); f) à alimentação; g) à habitação; h) à educação; í) ao trabalho; j) ao transporte adequado; k) à segurança física; T) ao aspecto físico da estética humana; m) à proteção médica e hospitalar; ri) ao meio ambiente ecológico; o) ao sossego; p) ao lazer; q) ao desenvolvimento vocacional profissional; r) ao desenvolvimento vocacional artístico; 5) à liberdade; t) ao prolongamento artificial da vida; u) à reanimação; v) à velhice digna; w) relativos ao problema da eutanásia. 1.2) Direito ao corpo vivo: a) ao espermatozóide e ao óvulo; b) ao uso do útero para procriação alheia; c) ao exame médico; ã) à transfusão de sangue; e) à alienação de sangue; f) ao transplante; g) relativos a experiência científica; h) ao transexualismo; i) relativos à mudança artificial do sexo; 7) ao débito conjugal; k) à liberdade física; I) ao "passe" esportivo. 1.3) Direito ao corpo morto: a) ao sepulcro; b) à cremação; c) à utilização científica; ã) relativos ao transplante; e) ao culto religioso. 2) Direito à integridade intelectual: a) à liberdade de pensamento; b) de autor; c) de inventor; ã) de esportista; e) de esportista participante de espetáculo público. 3) Direito à integridade moral: a) à liberdade civil, política e religiosa; b) à segurança moral; c) à honra; d) à honorificência; e) ao recato; f) à intimidade; g) à imagem; h) ao aspecto moral da estética humana; i) ao segredo pessoal, doméstico, profissional, político e religioso;;') à identidade pessoal, familiar e social (profissional, política e religiosa); k) à identidade sexual; I) ao nome; m) ao título; ri) ao pseudônimo. Apesar da grande importância dos direitos da personalidade, o Código Civil, mesmo tendo dedicado a eles um capítulo, pouco desenvolveu sobre tão relevante temática, embora, com o objetivo primordial de preservar o respeito à pessoa e aos direitos protegidos constitucionalmente, não tenha assumido o risco de uma enumeração taxativa prevendo em poucas normas a proteção de certos direitos inerentes ao ser humano, talvez para que haja, posteriormente, desenvolvimento jurisprudencial e doutrinário e regulamentação por normas especiais. Assim no art. 13 e parágrafo único previu o direito de disposição de partes, separadas do próprio corpo em vida para fins de transplante, ao prescrever que, "salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial". 140 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o O direito ao próprio corpo é indisponível se conducente à diminuição permanente da integridade física, a não ser que a extração de órgãos, tecidos ou membros seja necessária, por exigência médica, para resguardar a vida ou a saúde, p. ex. amputação de perna gangrenada. Estando em consonância com a Lei n. 9.434/97 (art. 9a, §§ 3a a 8a), regulamentada pelo Decreto n. 2.268/97 (art. 15, §§ Ia a 9a), prevê a doação voluntária (CF, art. 199, § 4a), feita por escrito e na presença de testemunhas, por pessoa juridicamente capaz, de tecidos, órgão e parte do próprio corpo vivo para efetivação em vida do doador de transplante ou tratamento, comprovada a necessidade terapêutica do receptor consorte, parente consanguíneo até o 4a grau ou qualquer pessoa inscrita na lista única de espera, mediante autorização judicial, salvo o caso de medula óssea. Essa doação apenas é permitida em caso de órgãos duplos (rins), partes recuperáveis e regeneráveis de órgão (fígado) ou tecido (pele, medula óssea), cuja remoção não traga risco para a integridade física do doador, nem comprometa suas aptidões vitais e saúde mental, nem lhe provoque deformação ou mutilação (Lei n. 9.434/97, art. 9a, §§ 3a e 4a). As operações de mudança de sexo em transexual, em princípio, são proibidas por acarretarem mutilação, esterilidade, perda de função sexual orgânica. Mas lícitas são as intervenções cirúrgicas para corrigir anomalias nas genitálias de intersexuais, bem como a retirada de órgãos e amputação de membros para salvar a vida do próprio paciente. Só por exigência médica será possível a supressão de partes do corpo humano para preservação da vida ou da saúde do paciente. Reforça tal ideia o Enunciado n. 6, aprovado na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF), que assim dispõe: "A expressão exigência médica, contida no art. 13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente". E o Conselho da Justiça Federal no Enunciado n. 276 (aprovado na IV Jornada; de Direito Civil) esclarece: "O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil". Razoável é tal disposição legal, pois não se pode exigir que alguém se sacrifique em benefício de terceiro. P. ex., ninguém pode admitir a retirada de córnea de pessoa viva para fins de transplante, por causar grave mutilação. Além disso, pela lei, a gestante somente poderá dispor de tecido para ser usado em transplante de medula óssea, desde que tal ato não afete sua saúde e a do feto (art. 9a, § 7a). Aquele que for incapaz, com compatibilida­ 141 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il de imunológica comprovada, pode doar, havendo consenso de seus pais ou do representante legal, dispensando-se hoje autorização judicial, em caso de transplante de medula óssea, que não venha a lesar sua saúde (Lei n. 9.434/97, art. 9a, § 6a). O ato de disposição de órgão e tecido em vida do doador é revogável por ele ou pelo seu responsável legal, a qualquer tempo, antes de sua concretização (Lei n. 9.434/97, art. 9a, § 5a), ou seja, antes da intervenção cirúrgica. Isto é assim porque não se pode admitir execução coativa, uma vez que é inadmissível, juridicamente, impor a alguém a obrigação de dispor de sua integridade física. O autotransplante pode dar-se com a anuência da própria pessoa, ou, se ela for incapaz, de seus pais ou responsável legal (Lei n. 9.434/97, art. 9a, § 8a). É preciso, ainda, que, antes do transplante ou enxerto, haja expresso consentimento do receptor, ou de seu representante legal, se incapaz, devidamente instruído, em termos compreensíveis, da excepcionalidade da medida e dos riscos que podem advir (Lei n. 9.434/97, art. 10 e parágrafo único; Dec. n. 2.268/97, art. 22, §§ I a e 2a). Tal se dá porque ninguém pode ser constrangido a submeter-se a um tratamento médico ou intervenção cirúrgica com risco de vida (CC, art. 15). O profissional da saúde deve, ante o princípio da autonomia, respeitar a vontade do paciente, ou de seu representante, se incapaz. Daí a exigência do consentimento livre e informado. Imprescindível será a informação detalhada sobre seu estado de saúde e o tratamento a ser seguido, para que tome decisão sobre a terapia a ser empregada. A prática médica, em razão do princípio da beneficência, deve buscar o bem-estar do paciente, evitando, na medida do possível, quaisquer danos e risco de vida. Só se pode usar tratamento ou cirurgia para o bem do enfermo. Há, ainda, em virtude do princípio da não maleficência, obrigação de não acarretar dano ao paciente, e, havendo recusa, p. ex., em razão de religião à transfusão de sangue, o médico deve tentar tratamento alternativo. Se entre os direitos à vida e à liberdade de religião apresentar-se uma situação que venha a colocá-los em xeque, de tal sorte que apenas um deles possa ser atendido, ter-se-á a incidência absoluta do princípio do primado do direito mais relevante, que é, indubitavelmente, o à vida. Já pelo Enunciado n. 274 do Conselho da Justiça Federal (aprovado na IV Jornada de Direito Civil): "Os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. Ia, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica 142 da ponderação". Por essa razão qualquer ofensa ao direito constitucional da liberdade religiosa, ainda que sem o consenso do paciente ou de seus familiares, não entra na categoria dos atos ilícitos. A extração de sangue feita sem a anuência da pessoa é tida como lesão, e a própria transfusão de sangue só é permitida com o consenso do paciente, desde que não haja perigo de vida. Deveras, como a vida é o bem mais precioso, que se sobrepõe a todos, entre ela e a liberdade religiosa do paciente, deverá ser a escolhida, por ser anterior a qualquer consentimento do doente ou de seus familiares. O sacrifício de consciência é um bem menor do que o sacrifício eventual de uma vida. Os valores considerados socialmente importantes e os essenciais à comunidade nacional e internacional são diretrizes ou limites à manifestação da objeção de consciência. Ilegítima é a objeção de consciência sempre que estiver em jogo a vida de uma pessoa e a saúde pública. É direito básico do paciente não ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a terapia ou cirurgia e, ainda, não aceitar a continuidade terapêutica. Logo, não se poderá impor ao segurado a realização de uma cirurgia de risco, buscando sua cura, para livrar a seguradora do pagamento da indenização devida, por ter assumido o risco da ocorrência da sua morte. A lei, portanto, privilegia o direito à vida, que deve nortear a ação do profissional da saúde. As cirurgias plásticas, corretiva ou estética, são permitidas legalmente, gerando, a primeira, responsabilidade civil subjetiva do médico, por haver obrigação de meio, e a segunda, responsabilidade objetiva, visto que assume obrigação de resultado. Está legalmente proibida a mercantilização do corpo humano que provoque diminuição permanente da integridade física ou que contrarie os bons costumes (p. ex., disposição onerosa de órgãos e tecidos humanos, prostituição, magia negra, prática sadomasoquista etc.). No art. 14 e parágrafo único o Código Civil dispõe: "É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo". Rege a disposição gratuita e a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano post mortem para fins de transplante em paciente com doença progressiva ou incapacitante irreversível por outras técnicas terapêuticas (Lei n. 9.434/97, art. Ia; Dec. n. 2.268, art. 23). Essa técnica terapêutica só pode ser levada a efeito por estabelecimento de saúde, público ou privado, e por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizadas pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde, depois da realização, no doador, de todos os tesC u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 143 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il tes de triagem para diagnóstico de infecção e infestação exigidos por normas regulamentares expedidas pelo Ministério da Saúde (Lei n. 9.434, art. 2a e parágrafo único; Dec. n. 2.268, art. 24, §§ Ia a 5a). A retirada post mortem de seus órgãos, tecidos ou partes de seu corpo para fins terapêuticos ou de transplante deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, baseado em critérios clínicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina (Lei n. 9.434/97, art. 3a). Tal morte deverá ser constatada, com prudência e segurança, por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, admitindo-se, para tanto, a presença de médico de confiança da família do falecido (Lei n. 9.434/97, art. 3a, § 3a). Exige-se, portanto, a prova incontestável da morte, mediante declaração médica da cessação da atividade encefálica, embora a pulmonar e a cardiovascular se mantenham por processos artificiais. A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo do falecido, que nada dispôs sobre isso, dependerá da autorização de qualquer parente maior, da linha reta ou colateral até o 2- grau, ou do cônjuge sobrevivente, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte (Lei n. 9.434/97, art. 4a, com alterações da Lei n. 10.211/2001). Em se tratando de pessoa falecida juridicamente incapaz, a remoção de seus órgãos e tecidos apenas poderá ser levada a efeito se houver anuência expressa de ambos os pais ou por seu representante legal (Lei n. 9.434/97, art. 5Q). E se o corpo for de pessoa não identificada, proibida está a remoção post mortem de seus órgãos e tecidos (Lei n. 9.434/97, art. 6a). Se houver morte sem assistência médica ou resultante de causa mal definida ou de situação que requeira verificação da causa médica da morte, a retirada de órgão ou tecido do cadáver para fins de transplante ou tratamento deverá ser precedida de autorização do patologista do serviço de verificação de óbito responsável pela investigação e citada em relatório de necropsia (parágrafo único do art. 7a da Lei n. 9.434/97). É preciso, ainda, que após a remoção de partes do corpo, o cadáver seja condignamente recomposto e entregue a seus familiares ou responsáveis legais para sepultamento (Lei n. 9.434/97, art. 8e, e Dec. n. 2.268, art. 21). Pelo art. 14 e parágrafo único do Código Civil nítida é a consagração do princípio do consenso afirmativo, pelo qual cada um deve manifestar, em escritura pública ou em testamento, sua vontade de doar seus órgãos e tecidos para depois de sua morte, com objetivo científico (p. ex., estudo da anatomia humana em universidades) ou terapêuticos (transplante de órgãos e tecidos), tendo o direito de, a qualquer tempo, revogar livremente essa doação post mortem. 144 Se, porventura, os parentes do doador falecido vierem a se opor à retirada de órgãos e tecidos, o beneficiado poderá fazer uso das tutelas judiciais de urgência. "O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4a da Lei n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador" (Enunciado n. 277 do CJF, aprovado na IV Jornada de Direito Civil). Fácil é perceber que se protege não só a integridade física, ou melhor, os direitos sobre o próprio corpo vivo ou morto, defendendo-o contra o poder de sua disposição, salvo se feita gratuitamente para fins científicos ou terapêuticos e desde que não lese, se levada a efeito, em vida o doador e não ofenda os bons costumes, mas também a inviolabilidade do corpo humano, pois ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica (CC, art. 15). Daí a importância da informação detalhada sobre seu estado de saúde e o tratamento a ser seguido, para que possa dar, ou não, o seu consentimento livre e esclarecido. Se não puder dar seu consenso, tal informação deverá ser dada a seu representante legal ou a algum de seus familiares, para que tome decisão sobre a terapia a ser empregada. É direito do paciente a recusa de algum tratamento ou não aceitação de continuidade terapêutica nos casos incuráveis ou de sofrimento atroz ou, ainda, que possa trazer risco de vida. Nos arts. 16 a 19 tutela o Código Civil o direito ao nome contra atentados de terceiros, tendo-se em vista que ele integra a personalidade, por ser o sinal exterior pelo qual se individualiza a pessoa, identificando-a na família e na sociedade. Reprime-se abuso cometido por alguém que o exponha inclusive em publicações ou representações (RT, 778:225, 779:249; Súmula STJ n. 221) ao desprezo público ou ao ridículo, violando a respeitabilidade de seu titular, mesmo que não haja intenção de difamar, por atingir sua boa reputação, moral e profissional, no seio da coletividade (honra objetiva), acarretando dano moral ou patrimonial, suscetível de reparação, mediante supressão de uso impróprio ou indevido do nome ou indenização pecuniária. Pelo art. 18 vedada está a utilização de nome alheio, sem a devida autorização, em propaganda comercial. "A publicidade que venha a divulgar, sem autorização, qualidades inerentes a determinada pessoa, ainda que sem mencionar seu nome, mas sendo capaz de identificá-la, constitui violação a direito da personalidade" (Enunciado n. 278 do CJF, aprovaC u r s o d e D ir e i t o C iv i l B r a s i l e ir o 145 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il do na IV Jornada de Direito Civil). Configurado está o dano moral se se usar nome de pessoa aprovada em I a lugar em vestibular como se fosse aluna de estabelecimento de ensino para fins de propaganda, com o escopo de captar novos alunos (TJRJ, Ap. 2006.001.00538, rei Des. Simone Gastesi Chevrand, j. 7-3-2006). Protege-se também o pseudônimo que é adotado por escritores (George Sand), pintores (Di Cavalcanti), artistas (Sílvio Santos) e não pode ser usado sem autorização de seu titular, sob pena de perdas e danos (CC, art. 19; RJTJSP, 232:234; RT, 823:190). O art. 19 também alcança a heteronimia, na lição de Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, quando se usam, para fins lícitos, alternadamente, nome e pseudônimo, como fazia Fernando Pessoa, que assinava seus poemas não só em seu nome mas também por meio de heterônimos, como Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis etc. O art. 20 e parágrafo único do Código Civil tutela o direito à imagem e os direitos a ele conexos, ao prescrever que: "salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes". Há proteção à imagem e à honra em vida ou post mortem, seja ela atingida por qualquer meio de comunicação. A esse respeito, na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, aprovou-se o Enunciado n. 5, que assim reza: "As disposições do art. 12 têm caráter geral e aplicam-se inclusive às situações previstas no art. 20, excepcionados os casos expressos de legitimidade para requerer as medidas nele estabelecidas; as disposições do art. 20 do novo Código Civil têm a finalidade específica de regrar a projeção dos bens personalíssimos nas situações nele enumeradas. Com exceção dos casos expressos de legitimação que se conformem com a tipificação preconizada nessa norma, a ela podem ser aplicadas subsidiariamente as regras instituídas no art. 12". E, na IV Jornada de Direito Civil, ficou, pelo Enunciado n. 279 do CJF, deliberado que: "A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, infor­ 146 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o mativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações". A esse respeito, já se decidiu que: "1. A responsabilidade civil decorrente de abusos perpetrados por meio da imprensa abrange a colisão de dois direitos fundamentais: a liberdade de informação e a tutela dos direitos da personalidade (honra, imagem e vida privada). A atividade jornalística deve ser livre para informar a sociedade acerca de fatos cotidianos de interesse público, em observância ao princípio constitucional do Estado Democrático de Direito; contudo, o direito de informação não é absoluto, vedando-se a divulgação de notícias falaciosas, que exponham indevidamente a intimidade ou acarretem danos à honra e à imagem dos indivíduos, em ofensa ao fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. 2. No que pertine à responsabilidade pelo dano cometido através da imprensa, o Tribunal a quo, ao apreciar as circunstâncias fático-probatórias, entendeu pela caracterização do dano moral, assentando que o recorrente abusou do direito de transmitir informações através da imprensa. Maiores digressões sobre o tema implicariam o reexame da matéria probatória, medida absolutamente vedada na via estreita do recurso especial, a teor da Súmula 07 desta Corte. Precedentes. 3. No que se refere à reparação por danos morais, tem-se que o valor arbitrado judicialmente não escapa ao controle do STJ, conforme remansosa jurisprudência desta Corte. Precedentes. 4. A lesão a direitos de natureza moral merece ser rechaçada mediante a fixação de indenização que repare efetivamente o dano sofrido, notadamente quando se trate de autoridade pública ocupante de cargo relevante na estrutura do Poder Judiciário Estadual, de modo que o patamar mantido pelo Tribunal a quo merece ser prestigiado. Precedentes" (STJ, REsp 818.764/ES, rei. Min. Jorge Scartezzini, Quarta Turma, j. 15-2-2007, DJ, 12-3-2007, p. 250). A imagem-retrato é a representação física da pessoa, como um todo ou em partes separadas do corpo (nariz, olhos, sorriso etc.) desde que identificáveis, implicando o reconhecimento de seu titular, por meio de fotografia, escultura, desenho, pintura, interpretação dramática, cinematografia, televisão, sites etc., que requer autorização do retratado (CF, art. 5a, X). A imagematributo é o conjunto de caracteres ou qualidades cultivados pela pessoa, reconhecidos socialmente (CF, art. 5S, V), como habilidade, competência, lealdade, pontualidade etc. A imagem abrange também a reprodução, romanceada em livro, filme, ou novela, da vida de pessoa de notoriedade. O direito à imagem é o de ninguém ver sua efígie exposta em público ou mercantilizada sem seu consenso e o de não ter sua personalidade altera­ T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il da material ou intelectualmente, causando dano à sua reputação. Abrange o direito: à própria imagem; ao uso ou à difusão da imagem; à imagem das coisas próprias e à imagem em coisas ou em publicações; de obter imagem ou de consentir em sua captação por qualquer meio tecnológico (RT, 464:226, 497:88, 522:262, 518:210, 519:83, 521:112, 536:98, 576:249, 600:69 e 623:61). O direito à imagem é autônomo, não precisando estar em conjunto com a intimidade, a identidade, a honra etc., embora possam estar, em certos casos, tais bens a ele conexos, mas isso não faz com que sejam partes integrantes um do outro. Deveras, pode-se ofender a imagem sem atingir a intimidade ou a honra. A imagem é a individualização figurativa da pessoa, autorizando qualquer oposição contra adulteração da identidade pessoal, divulgação indevida e vulgar indiscrição, gerando o dever de reparar dano moral e patrimonial que advier desse ato. Não se pode negar que o direito à privacidade ou à intimidade é um dos fundamentos basilares do direito à imagem, visto que seu titular pode escolher como, onde e quando pretende que sua representação externa (imagem-retrato) ou sua imagem-atributo seja difundida. Essa é a razão pela qual o art. 20 do Código Civil requer autorização não só para divulgar escrito ou transmitir opinião alheia, pois tais atos poderão atingir a imagem-atributo, a privacidade pode vir à tona e gerar sentimento de antipatia, influindo na consideração social da pessoa, causando gravame à sua reputação, bem como para -expor ou utilizar a imagem de alguém para fins comerciais, visto que pode a adaptação da sua imagem ao serviço de especulação comercial ou de propaganda direta ou indireta gerar redução da estima ou do prestígio. P. ex., na França, o presidente Pompidou acionou o semanário UExpress por ter divulgado uma foto sua a bordo de um barco, equipado com motor de marca Mercury, com a seguinte legenda: "Se durante 10 anos nos esforçamos em ganhar todas as competições, o fazemos por sua segurança, Sr. Presidente". C om o não houve anuência, acarretando exploração econômica a outrem, tutelado está o direito à imagem e autorizado está o seu titular a pleitear uma indenização. O art. 20 protege a transmissão da palavra e a divulgação de escritos e fatos, ante a liberdade de informação (RT, 783:421) e tutela a voz humana. A voz, modo de comunicação verbal e sonora, constitui expressão de emoções e de pensamentos no relacionamento humano, que indentifica a pessoa no meio social e é protegida constitucionalmente (CF, art. 52, XXVTII, a, 2- parte), sendo, portanto, um dos direitos da personalidade. Muitos usam da voz, profissionalmente, como locutores, atores, cantores, professores etc., 148 daí não ser permitido que terceiros façam utilização indevida da voz de outrem, atingindo-lhe direitos conexos como a honra, a imagem, a intimidade etc. A voz somente poderá, para servir como prova ilícita, ser captada mediante autorização judicial (CF, art. 5e, LVI, e Lei n. 9.296/96, art. 10). O direito de interpretação, ou seja, o do ator numa representação de certo personagem, pode estar conexo ao direito à imagem, à voz (Leis n. 9.610/98, arts. 89 e s. e 115, e 6.615/78) e ao direito autoral. O autor de obra intelectual pode divulgá-la por apresentação pública, quando a obra é representada dramaticamente, executada, exibida, projetada em fita cinematográfica, transmitida por radiodifusão etc., e é neste terreno que se situa o contrato de representação e execução, de conteúdo complexo por se referir não só ao desempenho pessoal, mas também à atuação por meios mecânicos e eletrônicos dos diferentes gêneros de produção intelectual, suscetíveis de comunicação audiovisual e regulados pelos arts. 29, VIII, a e b, 46, VI, 68 a 76 da Lei n. 9.610/98. Na representação pública há imagens transmitidas para difundir obra literária, musical ou artística, que deverão ser tuteladas juridicamente juntamente com os direitos do autor (RT, 550:190, 596:260). Os direitos dos artistas, intérpretes e executantes são conexos aos dos escritores, pintores, compositores, escultores etc. (Lei n. 9.610/98, art. 89); logo, podem impedir a utilização indevida de suas interpretações, bem como de suas imagens. A imagem é protegida pelo art. 5®, XXVIII, a, da CF, como direito autoral desde que ligada à criação intelectual de obra fotográfica, cinematográfica, publicitária etc. Fotógrafo tem resguardado seu direito autoral sobre obra que reproduz uma imagem, representando pessoa ou registrando tragédias, fatos históricos, sociais ou políticos. O fotorrepórter é porta-estandarte da notícia visual, acompanhada ou não, de palavras, podendo, portanto, usar da imagem como meio de expressão de suas aspirações artísticas ou pessoais ou como instrumento político, suscetível até mesmo para distorcer fatos por meio da imprensa. Se nas obras de criação intelectual houver intenção de se colocar pessoa em situação ridícula ou constrangedora, ou de se adaptar imagem ao serviço de especulação comercial ou de propaganda; alteração ou usurpação de fisionomia ou sendo sua divulgação indevida, ter-se-á lesão ao direito à imagem, por atingir a imagem-atributo, além da imagem-retrato, porque pode transmitir mensagem que provoca associação psíquica em quem a receber. Não se pode apresentar texto não declarado pela pessoa ou divulgar escritos ou declarações verbais sem autorização de seu autor. C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 149 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil Todavia há certas limitações do direito à imagem, com dispensa da anuência para sua divulgação quando: a) se tratar de pessoa notória, mas isso não constitui uma permissão para devassar sua privacidade, pois sua vida íntima deve ser preservada. A pessoa que se torna de interesse público pela fama ou significação intelectual, moral, artística ou política não poderá alegar ofensa ao seu direito à imagem se sua divulgação estiver ligada à ciência, às letras, à moral, à arte e à política. Isto é assim porque a difusão de sua imagem sem seu consenso deve estar relacionada com sua atividade ou com o direito à informação; b) se referir a exercício de cargo público, pois quem tiver função pública de destaque não pode impedir, que, no exercício de sua atividade, seja filmada ou fotografada, salvo na intimidade; c) se procura atender à administração ou serviço da justiça ou de polícia, desde què a pessoa não sofra dano à sua privacidade; ã) tiver de garantir a segurança pública, em que prevalece o interesse social sobre o particular, requerendo a divulgação da imagem, por exemplo, de um procurado pela polícia ou a manipulação de arquivos fotográficos de departamentos policiais para identificação de delinqüente. Urge não olvidar que o civilmente identificado não pode ser submetido à identificação criminal, salvo nos casos autorizados legalmente (CF, art. 52, LVTII); e) se busca atender ao interesse público, aos fins culturais, científicos e didáticos. Quem foi atingido por uma doença rara não pode impedir, para esclarecimento de cientistas, a divulgação de sua imagem em cirurgia, desde que preserve seu anonimato, evitando focalizar sua fisionomia; f) houver necessidade de resguardar a saúde pública. Assim, portador de moléstia grave e contagiosa não pode evitar que se noticie o fato; g) se obter imagem, em que a figura é tão somente parte do cenário (congresso, exposição de obras de arte, enchente, praia, tumulto, show, desfile, festa carnavalesca (RT, 556:178, 292:257 — em contrário: RJ, 10:89), restaurante etc.), sem que se a destaque, pois se pretende divulgar o acontecimento e não a pessoa que integra a cena; h) se tratar de identificação compulsória ou imprescindível a algum ato de direito público ou privado, deveras ninguém pode se opor a que se coloque sua fotografia em carteira de identidade ou em outro documento de identificação, nem que a polícia tire sua foto para serviço de identificação. Esses limites, delineados pelo art. 20, caput, do Código Civil, são impostos pelo direito à liberdade de informação, traduzido na forma peculiar da liberdade de pensamento e de expressão, contida no art. 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no art. 10 da Convenção Européia e adotada por quase todas as Constituições do mundo, desde que se atenda 150 ao interesse público da busca da verdade para a formação da opinião pública, sem contudo ferir a vida privada do retratado, que deve ser preservada. A proteção constitucional aos direitos da personalidade, ante o art. I a, III, da Constituição Federal, sobrepõe-se ao direito de imprensa, ao de informar, ao direito à informação ou ao de ser informado e ao da liberdade de expressão. O lesado pode pleitear a reparação pelo dano moral e patrimonial (Súmula 37 do STJ; RT, 531:230, 624:64) provocado por violação à sua imagem-retrato ou imagem-atributo e pela divulgação não autorizada de escritos ou de declarações feitas. Se a vítima vier a falecer ou for declarada ausente, são partes legítimas para requerer a tutela ao direito à imagem, na qualidade de lesados indiretos, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes (CC, art. 20, parágrafo único), e, também, em nosso entender, companheiro (Enunciado n. 275 do Conselho da Justiça Federal aprovado na IV Jornada de Direito Civil) e o parente colateral, visto terem interesse próprio, vinculado a dano patrimonial ou moral causado a bem jurídico alheio. O Código Civil tutela, também, o direito à privacidade, no art. 21 que reza: "A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma". O direito à privacidade da pessoa (CF, art. 5a, X) contém interesses jurídicos, por isso seu titular pode impedir invasão em sua esfera íntima (CF, art. 5a, XI). A privacidade não se confunde com a intimidade, mas esta pode incluir-se naquela. Por isso a tratamos de modo diverso, apesar de a privacidade voltar-se a aspectos externos da existência humana — como recolhimento na própria residência sem ser molestado, escolha do modo de viver, hábitos, comunicação via epistolar ou telefônica etc. — e a intimidade dizer respeito a aspectos internos do viver da pessoa, como segredo pessoal, relacionamento amoroso, situação de pudor etc. Há certos aspectos da vida da pessoa que precisam ser preservados de intromissões indevidas, mesmo que se trate de pessoa notória no que atina à vida familiar, à correspondência epistolar, ao sigilo bancário, ao valor do salário e do patrimônio, ao laudo médico, às faturas de cartão de crédito, aos hábitos de consumo etc. Mas, por outro lado, há algumas limitações a esse direito, impostas: a) pelo princípio da diferença, que considera as pessoas envolvidas e a natureza de uma situação peculiar. Deveras não se pode privar pessoa notória, ou pública, de sua intimidade revelando fato reserC u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 151 vado ao redigir sua biografia nem desconhecer o fascínio que ela exerce, nem exigências históricas culturais, científicas, artísticas, judiciais, policiais, tributárias e de saúde pública que requerem invasão à privacidade alheia. P. ex., uma ordem judicial pode levar alguém a sofrer constrangimento em seu domicílio; divulgação de fato de interesse científico (descoberta de um remédio) não pode ser impedida; revista pessoal em aeroporto ou em banco, ou por meio de aparelho de detectação de metais, para defesa de fronteira, para combate a assalto, contrabando, tráfico de drogas e seqüestro etc.; b) pelo princípio da exclusividade das opções pessoais, no âmbito da convivência social, das relações de amizade, de vínculo empregatício, de efetivação de negócios, de relacionamentos comerciais etc. A vida privada envolve forma exclusiva de convivência. E o direito a ela tem como conteúdo estrutural a permissão de resistir à devassa, gerando uma conduta negativa de todos, ou seja, o respeito à privacidade alheia. Constituem ofensas à privacidade e à intimidade: violação de domicílio alheio (RT, 152:63, 176:117, 188:575, 201:93, 208:398, 209:319; RF, 138:576) ou de correspondência e e-mails (CF, arts. 5a, XII, 1- alínea; 136, § ls, I; 139, III, 1- alínea; RT, 172:82, 201:566); uso de drogas ou de meios eletrônicos para obrigar alguém a revelar fatos de sua vida particular ou segredo profissional; emprego de binóculos para espiar o que ocorre no interior de uma casa; instalação de aparelhos (microfones, gravadores, fotocopiadores, filmadoras) para captar sub-repticiamente conversas ou imagens ou para copiar documentos, dentro de uma residência ou repartição; intrusão injustificada no retraimento ou isolamento de uma pessoa, observando-a, seguindo-a, chamando-a continuamente pelo telefone, escrevendo-lhe etc.; interceptação de conversas telefônicas (CF, arts. 5a, XII, 2- alínea, 136, § Ia, I, c; Lei n. 9.296/96); violação a diário íntimo; desrespeito à dor pela perda de entes queridos e à situação indevassável de pudor; divulgação de enfermidades, de segredo profissional, da vida amorosa etc. Em todos esses casos haverá dano, cujo ressarcimento não poderá ser colocado em dúvida. A proteção da vida privada manifesta-se no art. 5a da Lei Maior como: liberdade de expressão, inviolabilidade de domicílio, de correspondência e comunicação telefônica; liberdade de locomoção e associação e de exercício do trabalho; limitação do comportamento apenas imposta legalmente; relativa proibição da publicidade dos atos processuais; direito ao acesso do banco de dados etc. E pode-se usar para sua defesa: mandado de injunção, habeas data, habeas corpus, mandado de segurança, cautelares inominadas e ação popular, apenas por via reflexa e ação de responsabilidade civil por T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 152 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o dano moral e patrimonial. Repercute também no crime, visto que se pune: a inviolabilidade de domicílio e correspondência (CP, arts. 150, 151 e 152); a divulgação de segredo (CP, arts. 153 e 154); o atentado à liberdade de trabalho (CP, art. 198) e à liberdade de associação (CP, art. 199). A intimidade é a zona espiritual íntima e reservada de uma pessoa, constituindo um direito da personalidade, logo o autor da intrusão arbitrária à intimidade alheia deverá pagar uma indenização pecuniária, fixada pelo órgão judicante de acordo com as circunstâncias, para reparar dano moral ou patrimonial que causou. Além disso, deverá o magistrado, a requerimento do interessado, ordenar medidas que impeçam ou obriguem o ofensor a cessar suas ingerências na intimidade alheia; se estas ainda continuarem, e, se possível, deverá exigir o restabelecimento da situação anterior à violação, a expensas do lesante, como, por exemplo, a destruição da coisa produzida pelo atentado à intimidade. Como se vê, destinam-se os direitos da personalidade a resguardar a dignidade humana, mediante sanções, que devem ser suscitadas pelo ofendido17 ou pelo lesado indireto (art. 12 e parágrafo único do CC). Essa sanção deve ser feita por meio de pedido de antecipação de tutela (CPC, art. 17. Orlando Gomes, op. cit., v. 1, p. 139 e 148. Sobre o assunto, interessante é o trabalho de: Roxana C. B. Borges, Proibição de disposição e de limitação voluntária dos direitos de personalidade no Código Civil de 2002: crítica, in Introdução crítica ao Código Civil (org. Lucas Abreu Barroso), Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 15 a 30. Diante da tutela dos direitos da personalidade, como se poderia, p. ex., analisar o contrato entre a emissora de TV e os participantes do Big Brother ou da Casa dos Artistas, pessoas comuns, ou não, que, visando prestação pecuniária e fama, acabam expondo-se publicamente? Se o art. 11 do Código Civil veda renúncia aos direitos da personalidade, poderia haver fruição econômica do direito à privacidade e intimidade e a divulgação consentida (CC, art. 20) da imagem para fins comerciais em exibição televisiva da reserva pessoal, permitindo, diante do direito à liberdade, acesso temporário às informações sobre hábitos pessoais mais íntimos? Seria uma questão de disponibilidade relativa ou de renunciabilidade parcial? Haveria uma renúncia negocial àqueles direitos da personalidade, que, pelo art. 11 do Código Civil, seriam irrenunciáveis? Ter-se-ia validade daquele contrato ante os arts. 166, n, do Código Civil e 221, IV, e 220, § 32, I e II, da Constituição Federal? O exercício dos direitos da personalidade pode ser relativamente disponível, desde que o seu titular anua livremente, na exposição temporária — mediante a percepção de uma remuneração (CF, art. 5a, X) —• de sua imagem, voz, privacidade, intimidade etc., por serem importantes no exercício de suas atividades profissionais, de entretenimento, como a de representação, execução musical, dramatização, coreografias etc. (atores, cantores, músicos e bailarinos), de divulgação, de pensamento político (candidatos a cargos públicos), de produtos e serviços (modelos) para fins propagandísticos ou publicitários. 153 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 273) ou de medidas cautelares (CPC, arts. 796-889) que suspendam os atos que ameaçam ou desrespeitam a integridade física, intelectual e moral, movendo-se, em seguida, uma ação que irá declarar ou negar a existência de lesão, que poderá ser cumulada com ação ordinária de perdas e danos a fim de ressarcir danos morais e patrimoniais. A esse respeito dispõe o art. 12 e parágrafo único do Código Civil: "Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau". Melhorando a redação e visando acrescentar o companheiro na qualidade de lesado indireto, propõe o Projeto de Lei n. 699/2011 a seguinte alteração ao art. 12 e parágrafo único: "O ofendido pode exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar indenização, em ressarcimento de dano patrimonial e moral, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Em se tratando de morto ou ausente, terá legitimação para requerer as medidas previstas neste artigo o cônjuge ou companheiro, ou, ainda, qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau". O Parecer Vicente Arruda aprovou essa proposta contida no Projeto de Lei n. 6.960/2002 (substituído, hoje, pelo PL n. 699/2011), assim dispondo: "Art. 12. O ofendido pode exigir que cesse a ameaça ou a lesão a direiNesses casos, o titular poderá dispor temporária e relativamente daqueles direitos da personalidade, pois pode prever os seus efeitos jurídicos, recebendo remuneração para tanto e até indenização por dano moral e/ou patrimonial que vier a sofrer na divulgação, mesmo consentida, dos referidos direitos. Se assim é, como poderá ter licitude o contrato de reality shows se seu objeto é impossível juridicamente: renúncia a direito da personalidade (CC, arts. 11 e 166, II) e se os partícipes nem mesmo poderão saber a extensão das conseqüências, oriundas daquele ato renunciativo? Como salvaguardar a família de programas como estes, atentatórios aos bons costumes, sem horário fixo (CF, art. 221, IV; CC, art. 13, in fine, por analogia) para sua divulgação, afrontando o art. Ia, III, da Constituição Federal, por haver desrespeito à dignidade da pessoa humana? Por isso, pela Medida Provisória n. 195/2004 (ora rejeitada pelo Ato Declaratório do STF, de 10-11-2004), haveria obrigatoriedade de os novos aparelhos de TV conterem dispositivo para bloqueio temporário de recepção de programação inadequada, divulgada previamente com restrição etária. Vide Mário Luiz Delgado, BigBrother Brasil, reality show e direitos da personalidade, Consulex, 169:25-6; Jones Figueirêdo Alves, Limitação voluntária do exercício de direito da personalidade e o caso BigBrother, Consulex, 169:27; Gilberto H. Jabur, Consentimento para devassa da privacidade nos reality shows, Consulex, 169:28-29; Cláudia Rodrigues, A renúncia negocial dos direitos da personalidade e suas conseqüências e o caso BigBrother, Consulex, 169:30-1. 154 to da personalidade, e reclamar indenização, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou ausente, terá legitimação para requerer as medidas previstas neste artigo o cônjuge ou companheiro sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau". Entretanto, entendeu que a "menção expressa ao dano moral é desnecessária, já que sua reparação é, hoje, tema pacífico na doutrina e na jurisprudência, à luz de previsão constitucional expressa (art. 5a, inciso V)". Havendo ameaça ou lesão a direito da personalidade, o lesado direto (vítima), que sofreu gravame em sua pessoa, poderá pleitear judicialmente, mediante cautelar, a cessação da ameaça ou da lesão, e reclamar a indenização por perdas e danos, desde que comprove o liame de causalidade, o prejuízo, a culpabilidade do lesante, se, obviamente, não se tratar de culpa presumida ou de responsabilidade objetiva. Poderão apresentar-se, por meio de seu representante legal, na qualidade de lesado direto do dano moral ou patrimonial ao seu direito da personalidade, p. ex., os menores, ou os portadores de arteriosclerose, porque, apesar de carecerem de discernimento, o ressarcimento do prejuízo não é considerado como a reparação do sentimento, mas como uma indenização objetiva de um bem jurídico violado. Em regra, as pessoas jurídicas não teriam direito à reparação do dano moral subjetivo, que fere interesses espirituais, por não possuírem capacidade afetiva ou receptividade sensorial. Mas as pessoas jurídicas, públicas ou privadas, poderão sofrer dano moral objetivo, por terem atributos da personalidade reconhecidos jurídica e publicamente como um modo de ser, sujeito à valoração extrapatrimonial da comunidade em que atuam, p. ex., o prestígio, o bom nome, a confiança do público, a probidade comercial, a proteção ao segredo industrial e ao nome comercial etc. Esta sua boa reputação é uma manifestação particular da honra e transcende as considerações de índole patrimonial. Deveras, o agravo à honra objetiva pode ocorrer sem qualquer consideração a um dano patrimonial, daí o seu direito à reparação desse prejuízo. Assim sendo, a pessoa jurídica poderá propor ação de responsabilidade civil fundada em dano material e moral, advindo de lesão de direito da personalidade. Quanto aos lesados indiretos, é preciso verificar se houve dano patrimonial ou moral. Se se tratar de lesão a interesses econômicos, o lesado indireto será aquele que sofre um prejuízo em interesse patrimonial próprio, resultante de dano causado a um bem jurídico alheio. A indenização por morte de outrem é reclamada jure proprio, pois ainda que o dano, que recai soC u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o 155 bre a mulher e os filhos menores do finado, seja resultante de homicídio ou acidente, quando eles agem contra o responsável, procedem em nome próprio, reclamando contra prejuízo que sofreram e não contra o que foi irrogado ao marido e pai. P. ex.: a viúva e os filhos menores da pessoa assassinada são lesados indiretos, pois obtinham da vítima do homicídio o necessário para sua subsistência. A privação de alimentos é uma consequência do dano. O homicídio afeta-os indiretamente, observa Zannoni, uma vez que o dano sofrido está relacionado com uma situação jurídica objetiva (o fato de essas pessoas serem alimentandos e o morto alimentante) que liga o evento danoso ao prejuízo (perda do necessário para a subsistência). A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu ao sucessor de Lampião e Maria Bonita uma indenização pelo uso indevido da imagem do casal em propaganda comercial. Apesar da fama quase lendária de Lampião e sua mulher, não foi suficientemente demonstrado que a imagem de ambos tenha caído no domínio público, razão pela qual sua utilização sem o consentimento do sucessor foi considerada locupletamento indevido (Recurso Especial n. 86.109-SP, julgado em 28/06/2001, sendo Relator o Ministro Barros Monteiro). Como a ação ressarcitória do dano moral funda-se na lesão a bens jurídicos pessoais do lesado, portanto inerentes à sua personalidade, em regra, só deveria ser intentada pela própria vítima, impossibilitando a transmissibilidade sucessória e o exercício dessa ação por via sub-rogatória. Todavia, diante de forte tendência doutrinária e jurisprudencial no sentido de admitir que pessoas indiretamente atingidas pelo dano possam reclamar a sua reparação, o art. 12, parágrafo único, do Código Civil veio acatar que, estando morta a vítima, terá legitimação ativa para reclamar perdas e danos por lesão a direito da personalidade, consorte sobrevivente ou companheiro (Enunciado n. 275 do CJF, aprovado na IV Jornada de Direito Civil), parente em linha reta e colateral até o 42 grau (irmão, tio, sobrinho e primo). O Projeto de Lei n. 699/2011 acrescentará a esse rol o companheiro. No caso do dano moral, pontifica Zannoni, os lesados indiretos seriam aquelas pessoas que poderiam alegar um interesse vinculado a bens jurídicos extrapatrimoniais próprios, que se satisfaziam mediante a incolumidade do bem jurídico moral da vítima direta do fato lesivo. Ensina-nos De Cupis que os lesados indiretos são aqueles que têm um interesse moral relacionado com um valor de afeição que lhes representa o bem jurídico da vítima do evento danoso. P. ex.: o marido ou os pais poderiam pleitear indenização por injúrias feitas à mulher ou aos filhos, visto que estas afetaT e o r ia G e r a l o o D i r e i t o C i v il 156 riam também pessoalmente o esposo ou os pais, em razão da posição que eles ocupam dentro da unidade familiar. Haveria um dano próprio pela violação da honra da esposa ou dos filhos. Ter-se-á sempre uma presunção júris tantum de dano moral, em favor dos ascendentes, descendentes, cônjuges, irmãos, tios, sobrinhos e primos, em caso de ofensa a pessoas da família. Essas pessoas não precisariam provar o dano extrapatrimonial, ressalvando-se a terceiros o direito de elidirem aquela presunção. O convivente, ou concubino, noivo e amigos poderiam pleitear indenização por dano moral, mas terão maior ônus de prova, uma vez que deverão provar, convincentemente, o prejuízo e demonstrar que se ligavam à vítima por vínculos estreitos de amizade ou de insuspeita afeição. Nesse sentido já se tem decidido que: "Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem e a honra de quem falece, como se fossem coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto. Daí por que não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material" (STJ, REsp 521.697/RJ, rei. Min. César Asfor Rocha, Quarta Turma, j. 16-2-2006, DJ, 20-3-2006, p. 276). Como se vê, além do próprio ofendido, poderão reclamar a reparação do dano patrimonial ou moral seus herdeiros (CC, art. 943), seu cônjuge, os membros de sua família (RT, 515:69), seus dependentes econômicos e, em certas hipóteses, seu convivente, desde que a vítima não seja casada e as suas relações não sejam incestuosas. Todas essas pessoas têm direito de propor ação de indenização, ingressando em juízo jure proprio. Tal ação só poderá ser exercida pelo lesado direto ou indireto ou por seu representante, se absoluta ou relativamente incapaz, não podendo ser efetivada á sua revelia, e por intervenção espontânea do Ministério Público ou pelo juiz de ofício, pois só o prejudicado terá o direito de agir e apenas em seu proveito poderá ser decretado o ressarcimento do dano. Se houver dano que atinC u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e ir o 157 ja várias pessoas, cada uma terá direito de exigir a reparação. Concede-se, ainda, ação de reparação ao empregador, vítima de prejuízo oriundo de dano a seu empregado, ao sócio atingido pela lesão causada ao outro e ao credor pelo prejuízo que sofre com o dano material acarretado ao devedor, mas não poderá pleitear ressarcimento de dano moral. Ensina-nos José de Aguiar Dias que o falido terá ação de indenização relativamente aos prejuízos que o atingem em caráter pessoal, ou seja, os danos patrimoniais e morais experimentados pelo indivíduo como tal, porém à massa competirão as ações que têm por escopo obter reparação dos prejuízos causados aos bens que constituem a garantia dos credores. É preciso não olvidar que a ação de reparação comporta transmissibilidade aos sucessores do ofendido, desde que o prejuízo tenha sido causado em vida da vítima. Realmente, pelo Código Civil, art. 943, o direito de exigir a reparação transmite-se com a herança. Se houver ultraje à memória de um morto, os herdeiros poderão alegar e provar o prejuízo próprio, decorrente da difamação ou injúria ao membro da família desaparecido. Sofrem dano pessoal, daí a razão por não se lhes negar tal ação de indenização. O credor da indenização, mesmo na hipótese de culpa presumida, deverá, ao propor a ação, comprovar o dano sofrido, caracterizar o fato lesivo contra ele cometido e a ausência de qualquer causa excludente da responsabilidade18. T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 18. Fábio Maria de Mattia, Direitos da personalidade, cit., p. 163 e 164; Orlando Gomes, op. cit., v. 1, p. 168; Kayser, Les droits de la personnalité; aspectes théoriques et pratiques, Reme Trimestrielle de Droit Civil, 1971, p. 486; C. A. Bittar, Os direitos da personalidade, Forense Universitária, 1989; Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar F2, Tutela dos direitos da personalidade e dos direitos autorais nas atividades empresariais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002. Caio M. S. Pereira, Direitos da personalidade, Livro de Estudos Jurídicos, 9:55-75; Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 7, p. 141-215. Pelo Enunciado n. 140 do Conselho de Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil, em 2004: "A primeira parte do art. 12 do Código Civil refere-se às técnicas de tutela específica, aplicáveis de ofício, enunciadas no art. 461 do Código de Processo Civil, devendo ser interpretada com resultado extensivo". 158 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o Vide Lei n. 11.111/2005, art. 7a e parágrafo único. Consultar sobre o sujeito ativo da ação de reparação do dano: Zannoni, El dano en la responsabilidad civil, Buenos Aires, Astrea, 1982, p. 360-73; Wilson Melo da Silva, O dano moral e sua reparação, Rio de Janeiro, Forense, 1966, p. 501-9, 520-7; Aguiar Dias, Da responsabilidade civil, Rio de Janeiro, Forense, 1979, v. 2, p. 399-507; Orgaz, El dano, cit, p. 81, 241 e s.; Fuzier-Herman, Code Civil annoté, Paris, v. 4, n. 473; De Cupis, El dano, cit., p. 656; Risarcibilità dei danno morale, Rtvista Critica di Infortunistica, Milano, 1933; Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 142-44; Gardenat e Salmon-Ricci, De la responsabilité civile, 1927, p. 34, n. 119; Josserand, Les transports, Paris, 1910, p. 849; e Savatier (Le droit, l'amour et la liberté, Paris, .1937, p. 114), que escreve: "Par le seul fait qu'elle vit en concubinage, une femme acqiíiert, aux yeux de certains magistrats — non de tous, hâtons-nous de le dire — un droit à se voir dêdommagée du don qu'elle a fait d'elle même. Ainsiprévaut dans leurjugement Vidée de réparaticm, singulièrement fertile, puisque, non seulement elle prive irrémédiablement 1'homme de ce dont il s'est déjà dépouille, mais qu'elle le condamne encore à foumir ce qu'il a paru s'engager, même, vaguement, à donner". E acrescenta: "... c'estdéjà unesolution tendendeuse. Mais elle devient indéfendable quand le concubinage se double d'adultère"; Adrien Peytel, Lfunion libre devant la loi, Paris, 1905, p. 6 e 193; Mário Moacyr Porto, Ação de responsabilidade dvil e outros estudos, São Paulo, 1966, p. 11; Parmentier, Droits de la famille sur Vindemnité en cas d'acddent, 1904, p. 67. Sobre direito à imagem: Carlos Alberto Bittar, Os direitos da personalidade, São Paulo, Forense Universitária, 1989, p. 87 e s.; Luiz Alberto David Araújo, A proteção constituríonal da própria imagem, Belo Horizonte, Del Rey, 1996; Hermano Duval, Direito à imagem, São Paulo, Saraiva, 1988; José L. C. Rodriguez, Honor, intimidad e imagen, Barcelona, 1993; Kohler, Zur konstruktion des Urhberrecht, Archiv fürBürgerliches Rechts, n. 10, p. 274; Maria Helena Diniz, Tratado teórico e prático dos contratos, São Paulo, Saraiva, 1996, v. 3, p. 497 a 502; Direito à imagem e sua tutela, Estudos de direito de autor, direito da personalidade, direito do consumidor e danos morais (Eduardo C. B. Bittar e Silmara J. Chinelato — coord.), Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 79 a 106; Regina Sahm, Direito à imagem no direito dvil contemporâneo, São Paulo, Atlas, 2002; Oduvaldo Donnini e Rogério F. Donnini, Imprensa livre, dano moral, dano à imagem e sua quantificação à luz do novo Código Civil, São Paulo, Método, 2002; Alcides Leopoldo e Silva Jr., A pessoa pública e o seu dirdto à imagem, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2002; Ravanas, La protection des personnes contre la rêalisation et la publication de leur image, Paris, LGDJ, 1978; Milton Fernandes, Pressupostos do direito autoral de execução pública, Belo Horizonte, 1967, p. 56; Álvaro A. do C. N. Barbosa, Direito à própria imagem — aspectos fundamentais, São Paulo, Saraiva, 1989, p. 90 e 91; René Ariel Dotti, Proteção da vida privada e liberdade de informação, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980; Janice Helena Ferrari, Direito à própria imagem, Cadernos de direito constitudonal e dênda política, n. 4, p. 139; Maria Lígia C. M. Archanjo, Direito à própria imagem, dissertação de'mestrado apresentada na PUCSP; Paolo Vercellone, II diritto a sul proprio retratto, Torino, 1959; Sílvia Mendes Berti, Dirdto à própria imagem, Belo Horizonte, Del Rey, 1993; Gilberto Haddad Jabur, Limitações ao direito à própria imagem no novo Código Civil, Novo Código Civil — questões controvertidas (coord. Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves), São Paulo, Método, 2003, p. 11-44; Sidney C. S. Guerra, A liberdade de imprensa e o direito à imagem, Rio de Janeiro, Renovar, 2004; Alcides Leopoldo e Silva Jr., A pessoa pública e o seu direito de imagem, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2002. Vide: RT, 180:600, 629:106, 497:87, 505:230, 519:83, 534:92, 558:230, 578:215, 634:221; RSTJ, 104:326; Lex, 107:112; TJSP, Ap. Cível 463.999-5/3 - Santos, 159 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Ia Câm. de Dir. Público, rei. Renato Nalini, j. 29-8-2006; TJSP, Ap. Cív. 187.574-4/9- 00, São Paulo, 4a Câm. "A" de D. Priv., rei. Luís Scarabelli, j. 30-9-2005; TJSP, Ap. Cív. 262.643-4/0-00, Matão, 4a Câm. "A de D. Priv., rei. Luís Scarabelli, j. 30-9-2005; TJRJ, Ap. 2007.001.47462, rei. Des. Cristina Tereza Gaulia, j. 19-9-2007. Direito de imagem indígena constitui direitos morais e patrimoniais do indivíduo ou da coletividade retratados em fotos, filmes, estampas, pinturas, desenhos, esculturas e outras formas de reprodução de imagens que retratam aspectos e peculiaridades culturais indígenas. O direito sobre as imagens baseadas em manifestações culturais e sociais coletivas dos índios brasileiros pertence à coletividade, grupo ou etnia indígena representada. Quando o uso da imagem de pessoas afetar a moral, os costumes, a ordem social ou a ordem econômica da coletividade, extrapolando a esfera individual, tratar-se-á de direito de imagem coletivo. A captação, uso e reprodução de imagens indígenas dependem de autorização expressa dos titulares do direito de imagem indígena. As imagens indígenas poderão ser utilizadas para difusão cultural; nas atividades com fins comerciais; para informação pública; e em pesquisa. Qualquer contrato que regule a relação entre indígenas titulares do direito de imagem e demais interessados deve conter: a) expressa anuência dos titulares individuais e coletivos do direito sobre a imagem retratada; b) vontade dos titulares do direito quanto aos limites e às condições de autorização ou cessão do direito à imagem; c) garantia do princípio da repartição justa e equitativa dos benefícios econômicos advindos da exploração da imagem. Atividades de difusão cultural são as que visam a circulação e divulgação da cultura associada à imagem indígena, podendo ter finalidade comercial. Atividades com fins comerciais são as que utilizam a imagem indígena, individual ou coletiva, para agregar valor a um determinado produto, serviço, marca ou pessoa jurídica. A Fundação Nacional do índio — FUNAI participará das negociações de contratos e autorizações de captação, uso e reprodução de imagens indígenas, no âmbito de sua competência e atendendo aos interesses indígenas (Portaria FUNAI n. 177/2006, arts. 52 a 9a). Sobre o direito à privacidade: Miguel Urabayen, Vida privada e informaáón: un conflicto permanente, Pamplona, 1977, p. 77, 246 e 247; Eduardo Novoa Monreal, La vida privada como bien juridicamente protegido, Nuevo pensamiento penal, Revista de Derecho y Ciências Penales, p. 176; Pierre Kayser, La protection de la vieprivée, Paris, Dalloz, 1974,1 .1; Eduardo F. Mendilaharzu, La image de las personas y el derecho de privacldad, La Ley, 76:794; Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2001, v. 7, p. 125; Gilberto Haddad Jabur, Liberdade de pensamento e direito à vida privada, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 253-326; Sílvio H. V. Barbosa, Informação x privacidade — o dano moral resultante do abuso da liberdade de imprensa, RDC, 73:70; Jayme Weingartner Neto, Honra, privacidade e liberdade de imprensa, Porto Alegre, Ed. Livraria dos Advogados, 2002; José de Oliveira Ascensão, A reserva da intimidade da vida privada e família, O direito civil no século XXI (coord. M. H. Diniz e Roberto S. Lisboa), São Paulo, Saraiva, 2003, p. 317-330; Carla Bianca Bittar, A honra e a intimidade em face dos direitos da personalidade, Estudos de direito do autor, cit., p. 121-134; Cláudio L. Bueno de Godoy, Liberdade de imprensa e os direitos da personalidade, São Paulo, Atlas, 2001; Vera M. O. Nusdeo Lopes, Direito à informação e as concessões de rádio e televisão, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997; Edilson Farias, Liberdade de expressão e comunicação, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004; Iván Díaz Molina, El derecho a la vida privada (una urgente necesidad modema), La Ley, 126:981; Milton Fernandes, Proteção civil à intimidade, São Paulo, Saraiva, 1977; Julio C. Rivera, Derecho a la intimidad, La Ley, 1980, p. 931 e 932; Elimar Szaniawski, Considerações sobre o direito à intimidade das pessoas jurídicas, RT, 657:25-31; Ives Gandra da Silva Martins e Antonio Jorge Pereira Jr. (coords.), Direito à privacidade, Aparecida (São 160 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o Paulo), Ideias & Letras — Centro de Extensão Universitária, 2005; Sonia Aguiar do Amaral Vieira, Inviolabilidade da vida privada e da intimidade pelos meios eletrônicos, São Paulo, Ed. Juarez de Oliveira, 2002; Mario G. Losano, Dos direitos e dos deveres: também no direito à privacidade, Verba Juris, Rev. da Universidade Federal da Paraíba, 2:8 a 28. A Lei n. 11.767, de 7 de agosto de 2008, altera o art. 7a da Lei n. 8.906/94 para dispor sobre o direito à inviolabilidade do local e instrumentos de trabalho do advogado. Consulte: Lei n. 8.069/90, art. 100, V, acrescido pela Lei n. 12.010/2009. Relativamente ao dano ao nome da pessoa: R. Limongi França, Ação de responsabilidade fundada na ofensa ao nome civil, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 3, p. 91-7; Perveau, Le droit au nom en matière civile, Paris, 1910; Rivera, El nombre en los derechos civil y comercial, Buenos Aires, 19 77; Adriana C. de R. Freitas Dabus Maluf, Direito da personalidade, cit., p. 50-74; Adolfo Pliner, El nombre de las personas, Buenos Aires, 1966; Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 7, p. 126 e 127 e v. 1, p. 124 e s.; Zannoni, op. cit., p. 317-30. Sobre os demais direitos da personalidade não arrolados no Código Civil consulte: CC, arts. 944-54; Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 7, p. 116-40; O estado atual do biodireito, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 21-188, 200-41, 298-417, 452- 500, 563-718; Pontes de Miranda, Tratado, cit., t. 7, p. 23 e 25; Antonio Damasceno de Souza, O direito à objeção de consciência, cit., p. 22; M. H. Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 109 e s., e Conflito de normas, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 53 e s.; Vitorino Angelo Filipin, Transfusão de sangue não consentida, Atualidades Jurídicas, 2:491-6; Frederico A. d'Ávila Riani, O direito à vida e a negativa de transfusão de sangue baseada na liberdade de crença, Revista Imes, 1:8-14. Sobre o direito à voz: Antonio Carlos Morato, Direito à voz: reflexões sobre sua proteção no âmbito da sociedade da informação, in O direito na sociedade de informação (coord. Liliana M. Paesani), São Paulo, Atlas, 2007, p. 159-75. Sobre a defesa dos direitos da personalidade: Código Civil, art. 12; Constituição Federal, art. 5a, LXVIII, LXIX, LXX, LXXI, LXXII, LXXIII. Sílvio Romero Beltrão, Tutela jurídica dos direitos da personalidade, in Delgado e Alves (org.), Novo Código Civil — questões controvertidas, São Paulo, Método, 2004, v. 2, p. 449 e s. Urge lembrar que, pelo art. 7a da Lei n. 11.111/2005, "os documentos públicos que contenham informações relacionadas à intimidade, vida privada, honra e imagem de pessoas, e que sejam ou venham a ser de livre acesso, poderão ser franqueados por meio de certidão ou cópia do documento, que expurgue ou oculte a parte sobre a qual recai o disposto no inciso X do caput do art. 5a da Constituição Federal". Sendo que, pelo seu parágrafo único, "as informações sobre as quais recai o disposto no inciso X do caput do art. 5H da Constituição Federal terão o seu acesso restrito à pessoa diretamente interessada ou, em se tratando de morto ou ausente, ao seu cônjuge, ascendentes ou descendentes, no prazo de que trata o § 3a do art. 23 da Lei n. 8.159, de 8 de janeiro de 1991". Sobre direitos da personalidade da mulher: Lei n. 11.340/2006, arts. 2a e 32, e Projeto de Lei n. 3.343/2008 (ora apensado ao PL n. 4.247/2008), arts. 484 a 489. Sobre transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano: Projeto de Lei n. 3.343/2008, arts. 625 a 634. -r - % - £o -g o s g > u ro •» Z3 ro to O OJ in /-s o} .2 Q_ '2 QJ ~ o ■qi-3j ro T3 QJ j—> c O OOm ! 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Contudo, civilistas e legislações não chegam a um acordo para a denominação da pessoa humana como ente jurídico. O nosso Código Civil de 1916 e o atual adotaram a expressão "pessoa natural". Contra ela insurgiu-se Teixeira de Freitas porque tal denominação dá a entender que existem "pessoas não naturais", o que não corresponde à realidade, pois os entes criados pelo espírito humano também são naturais, por serem ideias personificadas; são, portanto, tão naturais quanto o espírito que os gerou. Propôs, então, que se usasse a expressão "ser de existência visível", para designar o homem, em contraposição aos entes coletivos, que denominou "seres de existência ideal", nomenclatura adotada pelo Código Civil argentino (arts. 31 e 32), que aceitou essa inovação. Entretanto, essa expressão não satisfaz, pois apenas atende à corporalidade do ser humano. "Pessoa física" é a designação na França e na Itália e usada na legislação brasileira para regulamentar imposto sobre a renda. Clara é a imprecisão dessa terminologia, porque desnatura o homem, ao 19. Serpa Lopes, Curso de direito civil, 2. ed., Freitas Bastos, 1962, p. 253; Roberto Senise Lisboa, Manual elementar de direito civil, São Paulo, Ed. Juarez de Oliveira, 1999, v. 1, p. 92-105; Sebastião José Roque, Teoria geral do direito civil, cit., p. 25-42; P. Stolze Gagliano e R. Pamplona F2, Novo curso, cit., p. 87-142; Renan Lotufo, Código Civil comentado, São Paulo, Saraiva, v. 1, 2003, p. 6-196; Rafael G. Rodrigues, A pessoa e o ser humano no novo Código Civil, A parte geral do novo Código Civil (coord. G. Tepedino), Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 1-34. 163 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il realçai o seu aspecto material, sem considerar suas qualidades morais e espirituais, que são elementos integrantes de sua personalidade. O termo "pessoa individual", por sua vez, é bastante impróprio, ante a existência de pessoas de existência ideal, que não são coletivas20. Seguindo a orientação de nossa legislação civil e dos civilistas nacionais, aderimos à denominação "pessoa natural", que designa o ser humano tal como ele é. B. C a p a c i d a d e j u r í d i c a Como pudemos apontar alhures, a personalidade tem sua medida na capacidade, que é reconhecida, num sentido de universalidade, no art. Ia do Código Civil, que, ao prescrever "toda pessoa é capaz de direitos e deveres", emprega o termo "pessoa" na acepção de todo ser humano, sem qualquer distinção de sexo (Lei n. 9.029/95), idade (Leis n. 8.069/90, 10.741/2003, art. 96, Lei n. 12.033/2009, art. Ia, e Lei n. 12.213/2010, com alteração do art. l s pela Resolução n. 27/2010), credo (Lei n. 12.033/2009, art. I a), raça21 (Leis n. 7.437/85; n. 7.716/89, com alteração da Lei n. 9.459/97 (que revo20. Teixeira de Freitas, Esboço, observações ao art. 17; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 199 e 200; Clóvis Beviláqua, op. cit., p. 70; Marco Aurélio S. Viana, Da pessoa natural, São Paulo, 1988. 21. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 201 e 202; Hédio Silva Jr., Antirracismo, São Paulo, Juarez de Oliveira, 1998; Direito de igualdade racial, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2002; Maria da Penha S. Lopes Guimarães, Racismo, questão mundial, Jornal do Advogado — OAB-SP, agosto de 2001, p. 34; Adelino Brandão, Direito racial brasileiro, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2002; Carlos Ayres Britto, O regime constitucional do racismo, Estudos de direito público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello, coord. Marcelo Figueiredo e Valmir Pontes Filho, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 145-63; Cristiano Alves, A representatividade negra na política brasileira, São Paulo, SRS, 2008. Vide Decreto legislativo n. 104/64, que ratifica a Convenção n. 111, da OIT, sobre a Discriminação Racial em Emprego e Profissão, sendo que tal Convenção foi promulgada pelo Decreto n. 62.150/68; Decreto legislativo n. 23/67, que ratifica a Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; Decreto de 10- 3-2003, que instituiu Grupo de Trabalho Intermimsterial para elaborar proposta para criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial; Portaria n. 18/2002 do Conselho Federal de Psicologia, que estabelece normas de atuação para psicólogos em relação a preconceitos e discriminação racial; Lei n. 10.678/2003, que cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; Portaria n. 31 da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, de 17 de março de 2011, que institui a Comissão de Validação da primeira edição do projeto Selo "Educação para Igualdade Racial"; Código Penal, art. 140, § 3a; Portaria n. 1.942/2003 do MEC, que institui Comissão Assessora de Diversidade para assuntos relacionados a afrodescendentes; Portaria n. 2.632, de 15-12-2004, do Ministério da Saúde, que aprova o Regimento Interno do Comitê 164 C u r so d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o Técnico de Saúde da População Negra; Leis n. 10.558/2002 (regulamentada pelos Decs.n. 4.876/2003 e 5.193/2004), que cria o Programa de Diversidade na Universidade, e 10.639/2003, que inclui a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-brasileira" no currículo oficial da Rede de Ensino; Lei n. 12.061/2009, que altera o inciso II do art. 4a e o inciso VI do art. 10 da Lei n. 9.394/96 para assegurar o acesso de todos os interessados ao ensino médio público; Lei n. 12.289/2010, que cria a Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira — UNILAB; Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008, que altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oácial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-brasileira e Indígena"; Decreto n. 4.886/2003, que institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR); Portaria n. 4.542/2005 do Ministério da Educação, que institui Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-brasileiros (CADARA); Decretos n. 4.885/2003, que dispõe sobre a composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR); e 4.919/2003 (ora revogado pelo Decreto n. 6.509/2008), que acresce e altera dispositivo do Decreto n. 4.885/2003, que dispõe sobre a composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR); a Portaria n. 74/2005 da Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial cria seu comitê de Coordenação de Programas; a Resolução do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial n. 7/2005 aprova o Regimento intemo do CNPIR; a Portaria n. 4.542, de 28 de dezembro de 2005, do Ministério da Educação, institui a Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-brasileiros — CADARA, com o objetivo de elaborar, acompanhar, analisar e avaliar políticas públicas educacionais, voltadas para o fiel cumprimento do disposto na Lei n. 10.639/2003, visando a valorização e o respeito à diversidade étnico-racial, bem como a promoção de igualdade étnico-racial no âmbito do Ministério da Educação — MEC; Resolução n. 14, de 28 de abril de 2008, do FNDE, que estabelece critérios para a assistência financeira com o objetivo de fomentar ações voltadas à formação inicial e continuada de professores de educação básica e a elaboração de material didático específico no âmbito do Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Federais e Estaduais de Educação Superior (UNIAFRO); Portaria n. 992, de 13 de maio de 2009, do Ministério da Saúde, que institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra; Portaria n. 3.300, de 27 de outubro de 2010, do Ministério da Saúde, altera e acresce dispositivos ao Anexo à Portaria n. 2.632/GM/MS, de 15 de dezembro de 2004, que aprovou o Regimento Intemo do Comitê Técnico de Saúde da População Negra; Decreto n. 6.872/2009, que aprovou o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PLANAPIR); Lei n. 8.069/90, art. 28, § 6a, I, II e III (acrescentado pela Lei n. 12.010/2009), que trata da colocação de criança ou adolescente, proveniente de comunidade remanescente de quilombo, em família substituta. Pelo Decreto n. 4.883/2003: "Art. Ia Fica transferida do Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário a competência relativa a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como a determinação de suas demarcações, estabelecida no inciso VI, alínea c, do art. 27 da Lei n. 10.683, de 28 de maio de 2003. Parágrafo único. Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário a expedição dos títulos das terras a que se refere o caput deste artigo. Art. 2a Compete ao Ministério da Cultura assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária — INCRA nas ações de regularização fundiária para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos". Vide Decreto n. 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos 165 T e o r ia G e r a i d o D i r e i t o C iv il quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Instrução Normativa n. 49, de 29-9-2008, do INCRA, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, e o Decreto n. 4.887, de 20-11-2003. Instrução Normativa n. 56, de 7 de outubro de 2009, do INCRA, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003. Educação escolar quilombola: Resolução n. 4/2010 do Conselho Nacional de Educação, art. 41. A Portaria n. 57/2008 da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial estatui Comitê de Gestão da Agenda Quilombola, instituído no âmbito do Programa Brasil Quilombola, que deverá elaborar relatório periódico das atividades desenvolvidas a ser apresentado aos titulares dos órgãos representados, bem como disponibilizar balanços das atividades da Agenda Social Quilombola no sítio da Internet da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Caberá ao Comitê de Gestão propor e articular ações intersetoriais para o desenvolvimento das ações que constituem a Agenda Social Quilombola. O Comitê de Gestão se reunirá periodicamente para discussão sobre a formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas implementadas nas comunidades da Agenda Social Quilombola. A Instrução Normativa n. 49, de 29 de setembro de 2008, do INCRA, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003. A Resolução n. 8, de 26 de março de 2009, do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, estabelece orientações e diretrizes para a execução de projetos educacionais de formação continuada de professores e elaboração de material didático específico para alunos e professores da educação básica nas áreas de remanescentes de quilombos. Pela Lei n. 12.188/2010, art. 52,1, os remanescentes de quilombos são beneficiários da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária (PNATER). Sobre homossexualidade: Lei estadual paulista n. 667/2001; Lei estadual mineira n. 14.170/2002; Lei municipal de Belo Horizonte n. 8.176/2001. Há Projeto de Lei Complementar n. 122/2006 que determina sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas, punindo como criminoso quem vier a criticar o homossexualismo, criando a figura penal da homofobia. A proposta pretende punir com 2 a 5 anos de reclusão aquele que ousar proibir ou impedir a prática pública de um ato obsceno ("manifestação de afeüvidade") por homossexuais (art. 7a). Na mesma pena incorrerá a dona de casa que dispensar a babá que cuida de suas crianças após descobrir que ela é lésbica (art. 4a). A conduta de um sacerdote que, em uma homilia, condenar o homossexualismo poderá ser enquadrada no art. 8° ("ação [...] constrangedora [...] de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica"). A punição para o reitor de um seminário que não admitir o ingresso de um aluno homossexual está prevista para 3 a 5 anos de reclusão (art. 52); Portaria n. 544/2011, da Secretaria de Direitos Humanos, estabelece Regimento Interno Provisório do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Vide: STF, ADI n. 4.277 e ADPF n. 132 — decisão com efeito vinculante admitindo união homoafetiva como entidade familiar. A Portaria n. 4/2006 da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República (art. I2) resolve: "alterar os incisos do Art. I2 da Portaria n. 54, de 5 166 C u r s o d e D i r e i t o C i v il B r a s i l e ir o gou a Lei n. 8.882/94) e n. 12.288/2010; Dec. de 8-9-2000; Lei n. 12.033/2009, art. I a; CP, art. 145, parágrafo único; Lei n. 10.778/2003, com a alteração da Lei n. 12.288/2010, art. I a, § l e; Decreto n. 7.261/2010) etc. Igualmente, a Constituição Federal (arts. Ia, III; 3a, IV; 5a, I, VI, XLI; 19, I) desconhece a discriminação racial (art. 5a, XLII), que é punida como crime, ou nacional no Brasil. E proclamando o princípio da igualdade civil, por razões de ordem pública e de interesse nacional, sem criar distinções entre brasileiros e estrangeiros, admite restrições e condições (Dec. n. 2.771/98, alterado pelo Dec. n. 4.400/2002) ao exercício por estes de certos direitos, vedando-lhes a exploração de minas e quedas-d'água (art. 176, § Ia, com alteração da EC n. 6/95), a função de corretor da Bolsa e leiloeiro público (CPC, art. 706), a propriedade de empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens (art. 222, §§ I a a 5a, com redação da EC n. 36/2002; Lei n. 10.610/2002) e de embarcações (art. 178 e parágrafo único, com alteração da EC n. 7/95) etc., e, no campo político, reservando o direito de voto aos brasileiros natos ou naturalizados (CF, art. 14, §§ 2a e 3a, I), e para adquirirem os estrangeiros propriedade rural podem depender de certas limitações legais (Lei n. 5.709/71, Decreto n. 74.965/74 e Decreto n. 5.311/2004, ora revogado pelo Dec. n. 5.978/2006, art. 15, II, in fine) ou de autorização do Congresso Nacional (CF, art. 190). Contudo tais restrições não implicam desigualdade jurídica entre nacional e estrangeiro22. de novembro de 2004, referentes aos objetivos setoriais, que passam a vigorar com a seguinte redação: I — combater todos os tipos de violência e de discriminação contra a mulher; II — sensibilizar a sociedade brasileira sobre os problemas enfrentados pelas mulheres, desconstruir os mitos e conceitos discriminatórios, e promover a difusão de novos valores relativos à igualdade de gênero; III — desenvolver ações visando aumentar o poder das mulheres em situação de vulnerabilidade; IV — combater a exploração e a violência sexual contra meninas, adolescentes e jovens; V — realizar ações de geração de emprego e renda garantindo o corte de gênero em programas de emprego e trabalho; VI — sensibilizar a sociedade para os novos valores sobre os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e promoção da paternidade responsável; VTI — estimular o desenvolvimento sustentável, com base no corte de gênero e no conceito de justiça ambiental; VIII — combater a discriminação contra as mulheres negras e indígenas; IX — combater os obstáculos sociais e econômicos ao desenvolvimento das trabalhadoras rurais; X — combater as discriminações no mundo do trabalho; XI — promover e apoiar o desenvolvimento de programas de educação e erradicação do analfabetismo; XII — apoiar ações que tratem da titulação da mulher chefe de família na aquisição da habitação; e XIII — promover e apoiar as ações que tratem sobre ciência, tecnologia e relações de gênero". A Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. 22. O termo "capacidade" advém do latim capere, isto é, agarrar, prender, tomar nas mãos, apoderar-se, apreender, adquirir, apanhar. Capax é aquele que tem essa aptidão, capa- 167 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Da análise do art. I a do Código Civil surge a noção de capacidade, que é a maior ou menor extensão dos direitos e dos deveres de uma pessoa. De modo que a esta aptidão, oriunda da personalidade, para adquirir direitos e contrair deveres na vida civil, dá-se o nome de capacidade de gozo ou de direito. A capacidade de direito não pode ser recusada ao indivíduo, sob pena de se negar sua qualidade de pessoa, despindo-o dos atributos da personalidade23. citas (Antônio Chaves, op. cit., p. 2). Vide Lei n. 10.835/2004, que instituiu renda básica de cidadania a todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população. O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias. Esse pagamento poderá ser feito em parcelas iguais e mensais. O benefício monetário será considerado como renda não tributável para fins de incidência do Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas. Caberá ao Poder Executivo definir o valor do benefício. Vide, também, Decreto n. 74.965/74, que regulamenta a Lei n. 5.709/71, que trata da aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país, e o Decreto n. 98.961/90, que dispõe sobre expulsão de estrangeiro condenado por tráfico de entorpecentes e drogas afins. Vide Decreto n. 740/93, que revoga dispositivos do Decreto n. 86.715/81, que regulamenta a Lei n. 6.815/80; Lei n. 9.029/95, que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e de outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho; Lei n. 10.610/2002, sobre participação de capital estrangeiro nas empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens; Decreto n. 4.400/2002 sobre registro provisório para estrangeiro em situação irregular no Brasil; Resolução administrativa do Conselho Nacional de Imigração n. 6/2004, que disciplina procedimentos para autorização de trabalho a estrangeiro; Decreto n. 5.311, de 15-12-2004 (ora revogado pelo Decreto n. 5.978/2006), alterou os arts. 96 e 97 do Decreto n. 86.715, de 10-12-1981, e o artigo 30 do Decreto n. 1.983, de 14-8-1996, para estabelecer o prazo de validade do passaporte para estrangeiros e do laissez-passer, conceder validade para múltiplas viagens ao laissez-passer e dispor sobre o recolhimento desses documentos. 23. Orgaz, Personas individuales, Buenos Aires, 1961; Roger Raupp Rios, O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003. O novel Código Civil preferiu empregar o termo deveres, alerta Fiuza, no relatório geral, por existirem deveres jurídicos diferentes da obrigação, como a sujeição, nos direitos de vizinhança, o dever genérico de abstenção, os poderes-deveres e os deveres do direito de família. A esse respeito: Jones Figueiredo Alves e Mário Luiz Delgado, Código Civil anotado, São Paulo, Método, 2005, p. 1-2. A Lei n. 10.048/2000, art. Ia (com a redação da Lei n. 10.741/2003), reza que pessoa portadora de deficiência, idoso com idade igual ou superior a 60 anos, gestante, lactante e pessoa acompanhada por criança de colo terão atendimento prioritário. Lei Municipal de São Paulo n. 11.248/92, sobre atendimento preferencial de gestantes, mães com crianças de colo, idosos e deficientes em estabelecimento comercial, de serviço e similares. 168 Entretanto, tal capacidade pode sofrer restrições legais quanto ao seu exercício pela intercorrência de um fator genérico como tempo (maioridade ou menoridade), de tuna insuficiência somática (deficiência mental)24. Aos que assim são tratados por lei, o direito denomina "incapazes". Logo, a capacidade de fato ou de exercício é a aptidão de exercer por si os atos da vida civil dependendo, portanto, do discernimento que é critério, prudência, juízo, tino, inteligência, e, sob o prisma jurídico, a aptidão que tem a pessoa de distinguir o lícito do ilícito, o conveniente do prejudicial25. Assim, temos, graficamente: C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o CAPACIDADE | O O i k : de fato i A capacidade jurídica da pessoa natural é limitada, pois uma pessoa pode ter o gozo de um direito, sem ter o seu exercício por ser incapaz, logo, seu representante legal é que o exerce em seu nome26. A capacidade de exercício pressupõe a de gozo, mas esta pode subsistir sem a de fato ou de exercício27. C . I n c a p a c i d a d e c .l. Noção A incapacidade é a restrição legal ao exercício dos atos da vida civil, devendo ser sempre encarada estritamente, considerando-se o princípio de que "a capacidade é a regra e a incapacidade a exceção". 24. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 224. 25. Antônio Chaves, Capacidade civil, cit., p. 2. 26. Antônio Chaves, Capacidade civil, cit., p. 7; Luciano Campos de Albuquerque, A capa- • cidade da pessoa física no direito civil, Revista de Direito Privado, 18:84-103. 27. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 63; Marcos Bemardes de Mello, Achegas para uma teoria das capacidades em direito, Revista de Direito Privado, n. 3, p. 9-34; Guilherme C. Nogueira da Gama e Bruno Paiva Bartholo, Personalidade e capacidade jurídicas no Código Civil de 2002, Revista Brasileira de Direito de Família, 37:27-41. Pde direito 169 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Como toda incapacidade advém de lei, consequentemente não constituem incapacidade quaisquer limitações ao exercício dos direitos provenientes de ato jurídico inter vivos ou causa mortis. Exemplificativamente: se o doador grava o bem doado de inalienabilidade, o donatário não poderá dele dispor; se o testador institui uma substituição fideicomissária, o fiduciário não terá a disponibilidade da coisa recebida28. Não se confunde também com a incapacidade a proibição legal de efetivar determinados negócios jurídicos com certas pessoas ou em atenção a bens a elas pertencentes, p. ex., a que proíbe o tutor de adquirir bens do tutelado; o ascendente de vender bens ao descendente sem o consentimento dos demais descendentes e do seu cônjuge (CC, art. 496; STF, Súmula 494); o casado, exceto no regime de separação absoluta de bens, de alienar imóveis sem a outorga do outro cônjuge (CC, art. 1.647,1); o indigno de herdar (CC, art. 1.814); os tutores ou curadores de dar em comodato os bens confiados a sua guarda sem autorização especial (CC, art. 580); o credor do herdeiro de aceitar,;por este, quando renunciante, a herança com autorização judicial (CC, art. 1.813). Trata-se de impedimentos para a prática de certos atos jurídicos, não traduzindo incapacidade do tutor, do curador, do ascendente, da pessoa casada, do indigno e do credor do herdeiro, que conservam o pleno exercício de seus direitos civis29. Referem-se à legitimação que é "a posição das partes, num ato jurídico, negocial ou não, concreto e determinado, em virtude da qual elas têm competência para praticá-lo"30. Eis por que, modernamente, se distingue a capacidade de gozo da legitimação. Mesmo que o indivíduo tenha capacidade de gozo, pode estar impedido de praticar certo ato jurídico, em razão de sua posição especial em relação a certos bens, pessoas e interesses. Logo, a legitimação consiste em saber se uma pessoa tem ou não competência para estabelecer determinada relação jurídica, sendo, portanto, um pressuposto subjetivo-obje28. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 229; Planiol, Ripert e Boulanger, Traité êlémentaire de droit civil, v. 1, n. 2.156; Colin e Capitant, Cours élémentaire de droit civil, v. 1, n. 71. 29. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 229 e 230; Antônio Chaves, Capacidade civil, cit., p. 7 e 8. 30. Mário Salles Penteado, A legitimação dos atos jurídicos, RT, 454:28,1973. Legitimação é uma forma especial de capacidade exigida a quem se encontrar em determinada situação, para certos atos da vida civil, p. ex., o art. 496 do Código Civil exige que ascendente só venda a descendente com anuência dos demais descendentes e com a do seu cônjuge. 170 C u r s o d e D ir e i t o C iv il B r a s i l e ir o tivo, enquanto a capacidade de gozo é pressuposto subjetivo do negócio jurídico. Deveras, como nos ensina Camelutti, a capacidade de gozo é relativa ao modo de ser da pessoa, e a legitimação, à sua posição em relação às outras31. O instituto da incapacidade visa proteger os que são portadores de uma deficiência jurídica apreciável, graduando a forma de proteção que para os absolutamente incapazes (CC, art. 3°) assume a feição de representação, uma vez que estão completamente privados de agir juridicamente, e para os relativamente incapazes (CC, art. 4a) o aspecto de assistência, já que têm o poder de atuar na vida civil, desde que autorizados32. Por meio da representação e da assistência, supre-se a incapacidade, e os negócios jurídicos realizam-se regularmente. Graficamente temos: INCA PA CIDAD E A b s o lu ta (C C , a r t. 3 a) R e p re s e n ta ç ã o R elativ a (C C y a r t. 4 a) A ssistê n cia Os arts. 3a e 4a do Código Civil são de imperatividade absoluta ou impositiva, pois determinam o estado das pessoas com a convicção de que certas relações e determinados estados da vida social não podem ser deixados 31. Antônio Chaves (Capacidade civil, cit., p. 8 e 9) expõe a doutrina de Camelutti. A propósito vide Emilio Betti, Teoria general dei negocio jurídico, Madrid, p. 177; Cariota Ferrara, Negozio giuridico, n. 432, p. 592. 32. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 230 e 231; Planiol, Ripert e Boulanger, op. cit., v. 1, n. 2.175. 171 ao arbítrio individual, o que acarretaria graves prejuízos para a ordem social. Daí serem essas disposições normativas de ordem pública. c.2. Incapacidade absoluta A incapacidade será absoluta quando houver proibição total do exercício do direito pelo incapaz, acarretando, em caso de violação do preceito, a nulidade do ato (CC, art. 166, I). Logo, os absolutamente incapazes têm direitos, porém não poderão exercê-los direta ou pessoalmente, devendo ser representados33. São absolutamente incapazes (CC, art. 3fi): 1) Os menores de 16 anos (CC, art. 3a, I), porque devido à idade não atingiram o discernimento para distinguir o que podem ou não fazer, o que lhes é conveniente ou prejudicial. Dado seu desenvolvimento mental incompleto carecem de auto-orientação, sendo facilmente influenciáveis por outrem34. As Ordenações do Reino, tendo em vista a aptidão para procriar, estabeleciam que o varão de menos de 14 anos e a mulher de menos de 12 deveriam ser representados por seus tutores35. Clóvis Beviláqua ao elaborar nosso Código Civil de 1916 considerou o desenvolvimento intelectual e o poder de adaptação às condições da vida em sociedade36, fixando a incapacidade absoluta até que se atinjam 16 anos de idade. O atual Código Civil, no art. 3e, I, manteve o mesmo limite de idade; todavia, tal limite deveria ser repensado, ante a mentalidade dos jovens aos 14 anos, que, hodiemamente, é bem mais desenvolvida do que na ocasião da promulgação do Código de 1916. T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 33. Antônio Chaves, Capacidade civil, cit., p. 9. 34. Silvio Rodrigues, Direito civil, 3. ed., Max Limonad, 1967, p. 72; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 232. Mas aos maiores de 14 anos é assegurado o direito trabalhista, sendo proibido qualquer trabalho a menor de 14 anos, salvo na condição de aprendiz (Lei n. 8.069/90, art. 60; Decreto n. 5.598/2005; Instrução Normativa n. 75/2009, da Secretaria de Inspeção do Trabalho; CLT, art. 428; CF, art. 7a, XXXIII). 35. Ordenações, L. 3, tít. 41, § 8a; L. 3, tít. 63, § 52; L. 4, tít. 81, princ. 36. Clóvis Beviláqua, op. cit., p. 80; Silvio Rodrigues, op. cit., p. 72; Paulo de Lacerda, Manual de Código Civil Brasileiro, Rio de Janeiro, 1925, v. 6, p. 507-12. Vide: Lei n. 8.069/90, arts. 36 e 37, com a alteração da Lei n. 12.010/2009; CC, art. 1.734, com a redação da Lei n. 12.010/2009. 172 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o No direito comparado diversa é a maneira com que é tratada a incapacidade decorrente de idade. Alguns Códigos, como o argentino (art. 127), distinguem os menores impúberes dos púberes, com total abstenção dos atos da vida civil até 14 anos. O alemão (art. 104) considera absolutamente incapaz o que não atingiu 7 anos e acima dessa idade confere-lhe o exercício do direito com limitações (art. 106), necessitando do consentimento de seus representantes até atingir 18 anos (lei alemã de reforma da maioridade, de 31-7-1974) para praticar atos na vida civil. O Código francês não faz qualquer distinção entre capacidade absoluta e relativa dos menores, deixando que o juiz verifique se já chegaram ou não à idade do discernimento. O italiano de 1865 seguia a esteira do francês, mas o atual (de 1942) faz cessar a incapacidade absoluta aos 18 anos, salvo em casos especiais de leis que estabelecem uma idade superior, ou seja, a de 21 anos (arts. 2- e 3a)37. 2) Os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil (CC, art. 3a, II; RJTJSP, 82:51, 25;78; JSTJ, 75:185; RT, 625:166 e 468:112). Aqui inserem-se os que, por motivo de ordem patológica ou acidental, congênita ou adquirida, não estão em condições de reger sua pessoa ou administrar seus bens. Determinadas pessoas, por não terem, por falta de discernimento, a livre disposição de vontade para cuidar dos próprios interesses, são consideradas absolutamente incapazes devendo ser representadas por um curador (CC, art. 1.767, I), tais como: a) portadores de enfermidades físico-psíquicas que impedem o discernimento como: demência ou fraqueza mental senil {RJ, 190:98); demência afásica; degeneração; psicastenia; psicose tóxica; psicose autotóxica (depressão, uremia etc.); psicose infectuosa (delírio pós-infeccioso etc.); paranóia; demência arteriosclerótica; demência sifilítica; mal de Parkinson senil, apresentando tremores, sensíveis sinais de depressão evolutiva, rigidez muscular, instabilidade emocional e demência progressiva; doença neurológica degenerativa progressiva etc.; b) deficiência mental ou anomalia psíquica, incluindo alienados mentais, psicopatas mentecaptos, maníacos, imbecis, dementes e loucos furiosos, ou não. O termo loucos abrange toda es37. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 234 e 235; Sílvio Venosa; op. cit., p. 127; Pasquale Stanzione, Personalità, capacita e situazione giuridiche dei menore, RTDCiv., 1:113-, RT, 503:90. Mas, pelo Enunciado n. 138 do Conselho de Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil: "A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inciso I do art. 32, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante paia tanto". 173 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il pécie de desequilíbrio mental, ainda que seja interrompido por intervalos de lucidez38 e desde que haja um processo de interdição (CPC, arts. 1.177 a 1.186; R T 447:63, 485:70, 503:93, 506:75) comprovando que não têm qualquer equilíbrio mental para efetivar atos ou negócios jurídicos; só podendo, se interditados, atuar juridicamente quando representados pelo curador. Urge lembrar que, outrora, com o Decreto n. 24.559/34, revogado pelo Decreto n. 99.678/90 (também ora revogado), passou-se a distinguir o psicopata em absoluta e relativamente incapaz, permitindo-se, assim, que o juiz fixasse na sentença, tendo em vista a gravidade da moléstia, se sua incapacidade é absoluta ou relativa; conforme o caso, deverá ser representado ou assistido pelo curador. Diante da ocorrência desse fato o novo Código Civil, no art. 3a, II, utiliza expressão mais abrangente ao mencionar a falta de necessário discernimento para a prática de atos da vida civil, mas gradua a debilidade mental no art. 4a, II e III, enquadrando no rol dos relativamente incapazes os ébrios habituais, os toxicômanos, os fracos de mente e os excepcionais com desenvolvimento mental incompleto. O que, sem dúvida, revela prudência legislativa, pois há hipóteses de deficiência mental que acarretam apenas uma capacidade limitada. Há diversas variantes de manifestações psicopáticas, ante o polimorfismo da insanidade. Por isso, entendemos, andou bem a legislação civil em não enumerar as formas de alienação mental, pois obrigaria o intérprete e o aplicador a exigir da perícia a dificílima diagnose de cada caso. Ora, o direito deve contentar-se com um critério prático: a simples afirmação de um estado de enfermidade ou deficiência mental, que reclame intervenção protetora, visto que a pessoa tomou-se absolutamente incapaz de prover aos próprios interesses, de dirigir sua vida, de exercer seus direitos, com discernimento, por ser doente ou por sofrer qualquer perturbação das faculdades mentais. 38. Fez bem nosso atual Código Civil em abandonar a expressão loucos de todo o gênero por ser anacrônica, e por pecar pela falta de técnica, dando ensejo a confusões, pelo seu conteúdo amplíssimo, alcançando toda e qualquer pessoa com distúrbio mental ou portadora de alguma anomalia psíquica. Clóvis Beviláqua (op. cit., p. 82) acrescenta que alienados ou loucos são aqueles que, por organização cerebral incompleta, por moléstia localizada no encéfalo, lesão somática ou vício de organização, não gozam de equilíbrio mental e clareza de razão suficientes para se conduzirem socialmente nas várias relações da vida. Vide, ainda, Sá Freixe, Manual do Código Civil brasileiro, v. 12, p. 49; Guido Arturo Palomba, Os Códigos Civil e Penal e os estados intermediários de loucura, Tribuna do Direito, n. 39, p. 14. Urge lembrar que a Lei n. 10.741/2003, Estatuto do Idoso, modifica dispositivos (art. 18, III) da Lei de Tóxicos (Lei n. 6.368/76 ora revogada pela Lei n. 11.343/2006). Vide CF, art. 227, § l2, II, com a redação da EC n. 65/2010; Lei n. 10.216/2001 (Lei Antimanicomial). 174 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o A anomalia psíquica é, portanto, qualquer doença que compreende não só o estado fronteiriço entre a sanidade e a insanidade mental como também a loucura. Intervalos de lucidez, interrupções regulares, ou não, do estado de perturbação mental não obstam a interdição, como já dissemos. Todavia, é preciso esclarecer que imprescindível será que se tenha um estado duradouro, que justifique a interdição, não podendo ser um estado fugaz de falta de percepção. A alteração das faculdades mentais determinantes da interdição, nos casos do art. 3e, II, do Código Civil, não consiste em manifestações passageiras, deve ser permanente, podendo não ser contínua. Nem há que se perquirir se há ou não validade jurídica de ato praticado em intervalo lúcido. Além disso, é preciso esclarecer, ainda, que, em direito, não se cogita em saber se a enfermidade mental parcial exerce influência sobre todos os atos do paciente e sim, se anomalia psíquica apurada, embora parcial, torna a pessoa incapaz para reger-se e administrar seus bens. Segundo Pedro Nunes (Dicionário de tecnologia jurídica), a interdição "é o ato judicial que declara a incapacidade real e efetiva de determinada pessoa maior, para a prática de certos atos da vida civil, na regência de si mesma e de seus bens, privada de discernimento". O processo de interdição inicia-se com um requerimento dirigido ao magistrado, feito pelos pais, tutor, cônjuge, qualquer parente ou, ainda, pelo Ministério Público (CPC, art. 1.177; CC, art. 1.768). O juiz manda citar o interditando, a fim de que ele tenha conhecimento do pedido e para convocá-lo a uma inspeção pessoal. A audiência efetiva-se em segredo de justiça, sendo que o juiz, assistido por especialistas, o "examinará pessoalmente, interrogando-o minuciosamente acerca de sua vida, negócios, bens e sobre o que lhe parecer necessário para ajuizar do seu estado mental" (CPC, art. 1.181; CC, art. 1.771). Após o que começa a correr prazo de 5 dias para o interditando impugnar o pedido. Passado tal lapso de tempo, o órgão judicante nomeia perito para proceder ao exame médico-legal do interditando. Com a apresentação do laudo médico, havendo prova oral a ser produzida, o magistrado designará audiência de instrução e julgamento, após o que pronuncia o decreto judicial de interdição, que deverá ser assentado (Lei n. 6.015/73, art. 92; CC, art. 9a, III) no Registro das Pessoas Naturais e publicado pela imprensa local e pelo órgão oficial três vezes, com intervalo de 10 dias, constando do edital os nomes do interdito e do curador que o representará nos atos da vida civil, a causa da interdição e os limites da curatela (CPC, art. 1.184). 175 O assento da sentença no registro de pessoas naturais e a publicação editalícia, ensina-nos Pontes de Miranda, são indispensáveis para lhe assegurar eficácia erga omnes39 (CC, art. 9-, III). Em regra, só depois de decretada a interdição é que se recusa a capacidade de exercício, sendo nulo qualquer ato praticado (RT, 468:112, 652:166; RJTJSP, 82:51, 25:78) pelo doente ou deficiente mental, embora seja possível tornar nula a venda de imóvel realizada por amental, mesmo antes da decretação judicial de sua interdição, desde que se prove sua insanidade (RT, 224:137, 352:352; JSTF, 75:185)40. Daí a afirmação de Lafayette de que a sentença de interdição é meramente declaratória e não constitutiva, uma vez que não cria a incapacidade, pois esta advém da alienação mental41. Os processualistas entendem que, quanto ao momento da eficácia da sentença, ela é constitutiva porque seus efeitos são ex nunc, começando a atuar a partir de sua prolatação, mesmo antes do trânsito em julgado (CPC, art. 1.184). Eis por que alguns autores entendem que é declaratória no sentido de reconhecer a moléstia mental como causa da interdição, e constitutiva, em seus efeitos. Os primeiros atêm-se ao reconhecimento de uma situação fática, enquanto os segundos, aos efeitos da sentença. A senilidade, por si só, não é causa de restrição da capacidade de fato (RT, 714:120, 427:92, 275:391, 305:265, 441:105; RF, 214:155; BAASP, 2710: T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 39. Nada obsta que em ação que não a de interdição se alegue, comprovadamente, que a pessoa é portadora de anomalia psíquica. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, v. 16, p. 391-3, Tratato de direito privado, v. 9, p. 347; Carvalho Santos, Código Civil brasileiro, v. 1, p. 263; Chemeaux e Bonnecarrière apud Baudry-Lacantinerie, Traité de droit civil, personnes, v. IV, n. 777; Sílvio de S. Venosa, Curso de direito civil, v. 1, p. 350; Débora Gozzo, O procedimento de interdição, Coleção Saraiva de Prática de Direito, São Paulo, Saraiva, 1986, n. 19, p. 26-8 e 70; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 236, v. 5, p. 266; Nelson G. B. Dower, Curso moderno de direito civil, Ed. Nelpa, v. 1,1976, p. 57-9; Luiz Gonzaga de Carvalho, Dos insanos mentais, São Paulo, Ed. Juarez de Oliveira, 2005; RT, 467:163, 447:63, 455:68, 455:100; RTJ, 102:359, 119:204; RSTJ, 97:246. 40. O Código Civil francês contém artigo expresso a esse respeito: "Os atos anteriores à interdição poderão ser anulados, se a causa da interdição existia notoriamente à época em que tais fatos foram praticados" (art. 503) (RT, 436:74, 415:358). Os negócios jurídicos praticados pelos interditados são nulos, se posteriores à interdição; se forem anteriores a ela, serão anuláveis e só poderão ser invalidados se comprovada a insanidade no momento de celebrados (STJ, 4a T., REsp 9.077, rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 25-2-1992). 41. Lafayette Rodrigues Pereira, Direito de família, §§ 165 e 169; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 236; Bassil Dower, op. cit., p. 59; Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, v. 5, p. 312 e 313; RT, 539:149 e 182, 537:74. 176 C u r s o d e D ir e i t o C iv il B r a s i l e ir o 1935-15), porque não pode ser considerada equivalente a um estado psicopático. Poderá haver interdição se a senectude originar um estado patológico, como a arteriosclerose, que afete a faculdade mental, retirando do idoso o necessário discernimento ou a clareza de razão para praticar atos negociais, hipótese em que a incapacidade absoluta resulta do estado psíquico e não da velhice42(RJ, 190:98; RT, 714:120). 42. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 238; Clóvis Beviláqua, op. cit., p. 95 e 96; Marcus Vinicius de V. Dias, Lei n. 10.741/03 — Estatuto do Idoso — aspectos penais precípuos, Síntese, 80:3; Alexandre de Moraes, Cidadania das pessoas idosas e o novo estatuto, in Questões de direito civil e o novo Código, Ministério Público de São Paulo, 2004, p. 76-95; Oswaldo Peregrina Rodrigues, Estatuto do Idoso: aspectos teóricos, práticos e polêmicos e o direito de família, in Família e dignidade humana, Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família (coord. R. Cunha Pereira), São Paulo, IOB Thomson, 2006, p. 771-93. Interessantes sãó os artigos de Leonardo de Faria Beraldo, Apontamentos gerais sobre o Estatuto do Idoso, Síntese, Porto Alegre, 81:3-4; Alexandre de Moraes, Cidadania das pessoas idosas e o novo estatuto, in Questões de direito civil e o novo Código (coord. Selma N. P. Reis), São Paulo, Imprensa Oficial, Ministério Público, 2004, p. 76-95, e de Eneida G. de M. Haddad, Direitos humanos: dignidade na velhice, Revista da Faculdade de Direito da FAAP, v. 1, p. 101-8; Xisto T. de Medeiros Neto, A proteção jurídica ao trabalho do idoso, Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8S Região, v. 41, n. 81, p. 207-232. A atual Constituição Federal, art. 230, §§ Ia e 22, protege os idosos. A Lei n. 8.842/94 cria o Conselho Nacional do Idoso e o Decreto n. 1.948/96 dispõe sobre a política nacional do idoso. O Ato n. 125/97 da PGJ disciplina a atuação do Ministério Público do Estado de São Paulo em defesa da pessoa idosa. A lei estadual paulista de n. 9.802/97 dispõe sobre o Conselho Estadual do Idoso. Há normas que protegem o idoso, como: Lei n. 12.008/2009, que altera não só o art. 1.211-A do Código de Processo Civil para dar prioridade de tramitação em todas as instâncias aos procedimentos judiciais em que pessoa com idade igual ou superior a 60 anos figure como parte, como também o art. 1.211-B e § Ia desse mesmo diploma legal, obrigando o interessado na obtenção do benefício, juntando prova de sua condição, a requerê-lo à autoridade judiciária competente para decidir o feito, que determinará ao cartório do juízo as providências a serem cumpridas. Com o deferimento da prioridade, os autos receberão identificação própria que evidencie o regime de tramitação prioritária. Essa Lei altera a redação do Código de Processo Civil estabelecendo, ainda, que tal prioridade não cessará com a morte do beneficiado, estendendo-se em favor do cônjuge sobrevivente ou companheiro. A Lei n. 9.784/99 passa, por força da Lei n. 12.008/2009, a ser acrescida do art. 69-A, I, que dá ao idoso prioridade em procedimento administrativo em que figure como parte ou interessado. O STJ (REsp 1052244) reconheceu direito à prioridade do idoso na tramitação de ação na qual pleiteia indenização por defeito de fabricação, do automóvel (Corsa Wind) que provocou morte de seu filho. Consulte: Decreto n. 4.227/2002 (alterado pelo Dec. n. 4.287/2002), que criou o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI); Resolução do CNDI n. 15/2008, que aprovou o Regimento Interno do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso; Decreto n. 4.360/2002 (ora revogado pelo Decreto n. 4.712/2003, que perdeu vigência com o Decreto n. 6.214/2007), que alterou o art. 36 do Decreto n. 1.744/95, sobre benefício de prestação continuada devido a idoso, que é intransferível, não gerando direito à pensão. O valor não recebido em vida pelo beneficiário será pago aos seus herdeiros, diretamente, pelo INSS. Vide Lei n. 10.471/2003 (Estatuto do Idoso), com as alterações das 177 T e o r i a G e ra i, d o D i r e i t o C iv il Não é raro o pedido de interdição de pessoa idosa. Visto que a velhice acarreta diversos males, mas só quando assume caráter psicopático, com estado de involução senil em desenvolvimento e tendência de se agravar, pode sujeitar a pessoa à curatela. Assim, apesar de a idade avançada e o estado de deLeis n. 11.765/2008,11.737/2008,12.419/2011 e 12.461/2011; Decreto n. 5.109/2004, que dispõe sobre a composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso — CNDI; Lei n. 11.551/2007, que institui o Programa Disque Idoso; Resolução — RDC da ANVISA n. 283/2005, que aprovou Regulamento Técnico para o funcionamento das instituições de longa permanência para idosos e Resolução n. 4, de 18 de abril de 2007, do Fundo Nacional de Assistência Social, que pactua os procedimentos a serem adotados para a emissão da Carteira do Idoso. A Lei n. 11.765, de 5 de agosto de 2008, acrescenta inciso IX ao parágrafo único do art. 3S da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) para dar prioridade ao idoso no recebimento do Imposto de Renda; a Lei n. 11.737/2008 alterou o art. 13 da Lei n. 10.741/2003 para atribuir aos Defensores Públicos o poder de referendar transações relativas a alimentos; a Lei n. 12.419/2011 alterou o art. 38 da Lei n. 10.741/2003 para garantir prioridade dos idosos na aquisição de unidades residenciais térreas nós programas nele mencionados; a Lei n. 12.461/2011 modificou o art. 19 da Lei n. 10.741/2003 para estabelecer notificação compulsória dos atos de violência praticados contra idoso atendido em serviço de saúde; a Resolução n. 12, de 11 de abril de 2008, do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, estabelece parâmetros e diretrizes para a regulamentação do art. 35 da Lei n. 10.741/2003, que dispõe sobre o contrato de prestação de serviços das entidades com a pessoa idosa abrigada. A Lei n. 12.213/2010 instituiu o Fundo Nacional do Idoso e autoriza deduzir do imposto de renda devido por pessoa física ou jurídica as doações efetuadas aos Fundos Municipais, Estaduais e Nacional do Idoso. A Portaria n. 288, de 2 de setembro de 2009, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, dispõe sobre a oferta de serviços de proteção social básica do Sistema Único de Assistência Social com os recursos originários do Piso Básico de Transição — PBT e estabelece o cofinanciamento dos serviços de proteção básica para idosos e/ou crianças de até seis anos e suas famílias por meio do Piso Básico Variável — PBV. A Resolução n. 303, de 18 de dezembro de 2008, do CONTRAN, dispõe sobre as vagas de estacionamento de veículos destinadas exclusivamente às pessoas idosas. Idosos, na cidade de São Paulo, prestam orientação, durante 4 horas diárias, a usuários do metrô, relativamente ao uso correto de elevadores e escadas e à sugestão de itinerários (Destak, 4-11-2008, p. 02). A Resolução n. 6, de Ia de outubro de 2010, do CNDI, dispõe sobre reserva de 3% das unidades residenciais em programas habitacionais públicos para atendimento aos idosos. A Resolução n. 8, de le de outubro de 2010, do CNDI, dispõe sobre ações básicas e elaboração de diretrizes para aprimorar o processo de comunicação social do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso — CNDI. A Lei n. 12.033/2009 toma pública e condicionada a ação penal em razão de injúria consistente na utilização de elementos alusivos à condição de pessoa idosa. Já se decidiu que: "1. A concessão do amparo assistencial é devida ao idoso com 65 anos ou mais que não exerça atividade remunerada e ao portador de deficiência incapacitado para a vida independente e para o trabalho, desde que a renda mensal familiar per capita seja inferior a 1/4 do salário-mínimo, não podendo ser acumulada com qualquer outro beneficio da Seguridade Social ou outro regime. 2. Para fins de cálculo da renda' familiar per capita, objetivando a concessão de benefício da Lei n. 8.742/1993, conforme indica a previsão do art. 34, parágrafo único, da Lei n. 10.741/2003, não deverá ser computado o benefício de aposentadoria percebido pelo cônjuge da impetrante, pois idoso. No caso, o que pretendeu o legislador foi direcionar que o idoso, pelas próprias 178 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o cadência orgânica não serem motivos legais para a interdição, esta não poderá deixar de ser decretada quando a pessoa não consegue, pela palavra escrita ou falada, manifestar seu pensamento, cuidar de seus negócios, reger a si própria e administrar seus haveres (RT, 224:189, 325:165; CC, art. 3a, II e III). 3) Os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade (art. 3a, III). Expressão abrangente, que alarga a incapacidade absoluta, pois como se vê o Código Civil não alude, expressamente, à surdo-mudez como causa de incapacidade, mas ela poderá conforme o caso enquadrar-se no art. 3S, III, que considera absolutamente incapaz o que não puder exprimir sua vontade; no art. 32, II, que dá como absolutamente incapaz o que, por enfermidade, não tiver desenvolvimento mental completo, nem tiver o necessário discernimento para a prática dos atos na vida civil; e no art. 4a, III, que enquadra como relativamente incapaz o excepcional com desenvolvimento mental incompleto. Essa solução já poderia ser obtida pela interpretação decorrente do art. 1.772 do Código Civil, que reza: "Pronunciada a interdição das pessoas a que se referem os incisos III e IV do art. 1.767, o juiz assinará, segundo o estado ou o desenvolvimento mental do interdito, os limites da curatela, que poderão circunscrever-se às restrições constantes do art. 1.782". Os surdos-mudos que não possam manifestar sua vontade, por não terem recebido educação adequada ou por sofrerem de lesão no sistema nervoso central, que lhes retira o discernimento, são absolutamente incapazes. Se puderem exprimir sua vontade, ante o avanço das ciências médica e eletrônica e a educação apropriada recebida, passam a ser capazes, embora impedidos de praticar atos que dependam da audição, como ser testemunhas quando o conhecimento do fato que se pretende provar depender do sentido que lhes falta e, principalmente, ser testemunhas em testamento43. Todas as pessoas que, por doença que acarrete deficiência física, estado de coma, perda de memória, paralisia mental ou surdo-mudez, por hipnose, por contusão cerebral, por falta de controle emocional em razão de trauma provocado, p. ex., por acidente; por uso de entorpecente ou de drogas alucinógenas etc., não puderem, ainda que por razão transitória, exprimir sua vonpeculiaridades inerentes à idade, faz por necessitar maiores recursos. 3. Não há de falar em perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, tendo em vista a natureza social e protetiva do direito que se quer garantir, além do caráter provisório da medida, que poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo no curso do processo, a teor do disposto no art. 273, § 4S, do CPC" (BAA SP, 2.617:1647-10; TRF, 4a Região, 5a T., AI 2008.04.00.024394-1-SC, rei. Juiz Federal Alcides Vettorazzi, j. 7-10-2008, v.u.). 43. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 239. Vide Sílvio Venosa, op. cit., p. 130; RJTJSP, 146:121. Vide Lei n. 12.319/2010, que regulamenta a profissão de tradutor e intérprete da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). 179 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il tade, para a prática dos atos da vida civil, deverão estar representadas por um curador, apesar de não se decretar sua interdição, pois esta exige causa duradoura (CC, art. 1.767, II, combinado com o art. 1.780). Percebe-se que pelo novo Código não se pode estender a incapacidade: a) ao deficiente físico, ao surdo-mudo ou ao cego, que, apesar da falta da locomoção, da audição ou da visão que lhe dificulta o contato perfeito com o ambiente em que vive, se adapta à sociedade com grande facilidade, devido a uma compensação fisiológica, que lhe desenvolve outros sentidos, possibilitando trabalho e vida social. Entretanto, a norma jurídica, ante a ausência de locomoção, audição ou visão, não permite sua intervenção em atos que dependem desse sentido, de forma que não poderá servir de testemunha, quando a ciência do fato que se quer provar depende da visão ou audição, nem poderá o cego fazer testamento por outra forma que não seja a pública (CC, art. 1.872) e o surdo-mudo só poderá, por sua vez, fazer o cerrado (CC, art. 1.873), nem poderá, ainda, o cego ser testemunha em testamentos44. Mas o deficiente físico ou sensorial, se quiser, poderá requerer curador para gerir seus bens e negócios (CC, art. 1.780); ou b) aos ausentes declarados como tais por sentença. Pode pedir a declaração de ausência qualquer interessado (parentes sucessíveis, cônjuge, credores, os que tiverem ações para propor contra o ausente). O registro da sentença declaratória de ausência, que nomear curador, deverá ser feito no cartório do domicílio anterior do ausente (Lei n. 6.015/73, art. 94; CC, art. 9a, IV). A ausência é o instrumento jurídico pelo qual se protegem os interesses daquele que se afastou de seu domicílio, sem deixar procurador ou representante e do qual não há notícias (CPC, arts. 1.159 a 1.169, e CC, art. 22), instituindo-se uma curatela (CC, arts. 23 a 25). A fim de evitar o perecimento do seu patrimônio, procura-se transmiti-lo aos herdeiros, promovendo sua utilidade coletiva. A curadoria é dos bens do ausente e não da pessoa do ausente. Isso é assim, porque tem-se considerado como um erro técnico a inserção do ausente na categoria dos absolutamente incapazes, pois logo que aparecer poderá exercer todos os atos da vida civil, assumindo a direção de seus negócios e readquirindo a administração de seu patrimônio na forma prevista em 44. É o que escreve Caio M. S. Pereira (Instituições, cit., v. 1, p. 248); Clóvis Beviláqua, op. cit., p. 95. Há quem ache, acertadamente, não se tratar de ausência o desaparecimento de alguém num acidente aéreo, rodoviário, ferroviário etc. em que, pelos indícios, a sua morte parece óbvia, apesar de não ter sido encontrado seu cadáver, já que não há incerteza de seu paradeiro. Por isso o Código Civil no art. 7Q tratou da morte presumida sem decretação de ausência, como mais adiante veremos. 180 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o lei. Não há, portanto, incapacidade por ausência, mas tão somente uma necessidade de proteger os interesses do desaparecido, devido a sua impossibilidade material de cuidar de seus bens e interesses e a impraticabilidade jurídica de se conciliar o abandono domiciliar com a conservação dos direitos. Por esta razão o novo Código Civil retirou a ausência do rol das incapacidades, tratando desse instituto, autonomamente, na Parte Geral, arts. 22 a 39. Tem-se a ausência quando alguém desaparece de seu domicílio, sem dar notícias de seu paradeiro e sem deixar representante ou procurador (CC, art. 22). Sendo declarado como ausente pelo magistrado, institui-se sua curatela. A nomeação do curador dar-se-á, assevera Caio M. S. Pereira, mesmo que ele tenha deixado procurador (CC, arts. 115, 2a parte, e 653) que se recuse a administrar seu patrimônio (CC, art. 6 8 2 ,1) ou que não queira continuar o mandato (CC, art. 682, II e III), seja por ter ocorrido o término da representação a termo (CC, art. 682, IV), seja por renúncia do mandatário, seja por sua morte ou incapacidade, seja por insuficiência de poderes (CC, art. 23). O mesmo se diga se os poderes outorgados ao procurador forem insuficientes para a gestão dos bens do ausente. Com isso, o ausente ficará sem representante que venha a gerir seu patrimônio, urgindo, pois, que se nomeie curador. Apresentam-se na ausência três fases bem distintas, que são: 1) A curatela do ausente, em que se dá a caracterização da ausência por sentença declaratória, que deverá ser registrada no cartório do domicílio anterior do ausente (Lei n. 6.015/73, art. 94). Verificado o desaparecimento de uma pessoa do seu domicílio, sem dar qualquer notícia e sem deixar procurador para administrar seus bens ou que tenha deixado mandatário que não quer ou não pode exercer o mandato, ou se seus poderes forem insuficientes para gerir os bens móveis ou imóveis do ausente (CC, arts. 22, 23, 115, 2- parte, 653, 682, I a IV; CPC, art. 1.159), o juiz, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, certificando-se da veracidade do fato, arrecadará os bens do ausente (CPC, art. 1.160), especificando-os minuciosamente e entregando-os a um curador que nomeará (CC, art. 22). O cônjuge do ausente, desde que não esteja separado judicialmente ou de fato por mais de 2 anos antes da declaração da ausência, será seu legítimo curador (CC, art. 25); tal direito estender-se-á ao companheiro (CC, art. 1.775; Enunciado n. 97 do STJ, aprovado nas Jornadas de Direito Civil de 2002), desde que com ele esteja convivendo, em razão de sua condição de herdeiro (CC, art. 1.790); na falta de cônjuge ou companheiro, nomear-se-á os pais do desaparecido e, na ausência destes, os descendentes, desde que idôneos 181 a exercer o cargo (CC, art. 25, § I a), preferindo-se os mais próximos aos mais remotos; na falta dessas pessoas, competirá ao juiz a escolha do curador (CC, art. 25, §§ 2a e 32), procurando averiguar quem pela melhor idoneidade atenderia aos interesses da pessoa desaparecida. Na falta de cônjuge, ascendente ou descendente (curadores legítimos) do ausente competirá ao juiz a escolha do curador dativo, desde que idôneo a exercer o cargo. Esse curador nomeado terá seus poderes e deveres fixados pelo órgão judicante, de acordo com as circunstâncias do caso, observando-se, no que for aplicável, o disposto a respeito dos tutores e curadores (CC, arts. 24, 1.728 a 1.783). É, portanto, o órgão judicante que, baseado nos fatos, ditará as normas segundo as quais o curador, por ele nomeado, deverá exercer suas funções administrativas relativamente aos bens do ausente. Consequentemente, na averiguação da legitimidade dos atos praticados pelo curador, dever-se-á buscar fundamento no ato judicial de sua nomeação e de estipulação de seus poderes e deveres. O curador, sob compromisso, inventariará os bens do desaparecido e administrá-los-á, percebendo todos os rendimentos que, porventura, produzirem, para entregá-los ao ausente quando voltar, ou aos seus herdeiros, se não retornar. O intuito da lei foi preservar os bens do ausente, impedindo seu perecimento. A curatela dos bens do ausente perdura, em regra, por um ano, durante o qual o magistrado ordenará a publicação de editais, de 2 em 2 meses, convocando o ausente a reaparecer para retomar a posse de seus haveres (CPC, art. 1.161). Com sua volta, opera-se a cessação da curatela, o mesmo ocorrendo se houver notícia de seu óbito (CPC, art. 1.162, I e II), averbando-se o fato no livro das ausências (Lei n. 6.015/73, art. 104). Pelo art. 26 do Código Civil, passado.um ano da arrecadação dos bens do ausente ou, se deixou algum representante ou procurador, em se passando 3 anos, poderão os interessados requerer que se abra, provisoriamente, a sucessão, cessando a curatela (CPC, arts. 1.162, III, e 1.163). Ter-se-á, primeiramente, uma sucessão provisória, ante a possibilidade de: a) não ter havido morte do desaparecido, pois poderá ele retomar ou ocorrer a descoberta de que se encontra vivo em algum lugar (CC, art. 36), alterando a situação dos sucessores, que, então, não terão direitos absolutos sobre os bens recebidos; b) delimitação do exato momento da morte da pessoa desaparecida, desfazendo-se os direitos daqueles sucessores, se, na data da abertura da sucessão, outros forem os herdeiros. P. ex., se uma pessoa no instante de seu desaparecimento deixou marido e filhos, que por isso foram declarados sucessores provisórios, e ficar constatado que faleceu dois anos depois, resT e o r ia G e r a i , d o D i r e i t o C ivil 182 C o r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o tando-lhe apenas os filhos, que serão seus únicos herdeiros, pois o óbito de seu cônjuge ocorreu antes do seu, logo ele nada poderá herdar. 2) A sucessão provisória apoia-se nos arts. 26 a 36 do Código Civil e 1.163 a 1.167 do Código de Processo Civil. Pode ser requerida por qualquer interessado (CC, art. 27, I a IV): cônjuge não separado judicial ou extrajudicialmente; herdeiros presumidos, legítimos ou testamentários (CC, arts. 1.829 e 1.799); pessoas que tiverem sobre os bens do ausente direito dependente de sua morte, p. ex.: usufruto vitalício condicionado à morte do usufrutuário (ausente) para que o nu-proprietário livre o bem onerado do ônus real; cláusula que preveja repasse de quotas do falecido aos sobreviventes, fideicomisso (CC, art. 1.951), legado (CC, art. 1.923), apólice de seguro de vida e doação com cláusula de reversão (CC, art. 547); credores de obrigações vencidas e não pagas (CPC, art. 1.163, § Ia; CC, art. 27). E se não houver interessados na sucessão provisória, findo o prazo legal, compete ao Ministério Público requerê-la (CPC, art. 1.163, § 2a; CC, art. 28, § Ia); logo, sua legitimidade é, portanto, subsidiária. Aquele que promover a abertura da sucessão provisória pedirá a citação pessoal dos herdeiros presentes e do curador e, por edital, a dos ausentes paxa oferecerem artigos de habilitação (CPC, art. 1.164). A sentença que determinar a abertura da sucessão provisória produzirá efeitos somente 180 dias depois de sua publicação pela imprensa. A sentença de abertura da sucessão provisória será averbada, no assento de ausência, após o trânsito em julgado (Lei n. 6.015/73, art. 104, parágrafo único). Assim que transitar em julgado, ter-se-á a abertura do testamento, se houver, e proceder-se-á ao inventário e partilha dos bens como se fosse o ausente falecido (CPC, art. 1.165, e CC, art. 28, caput). A herança do ausente passa a seus herdeiros, que são sucessores provisórios e condicionais, devendo guardar os bens, para serem devolvidos quando reclamados pelo desaparecido, por ocasião de sua volta. Logo, tem o efeito de imissão de posse, pois não há transferência da propriedade dos bens do desaparecido aos seus herdeiros provisórios. Para assegurar ao ausente a devolução dos seus bens, a) o juiz determina, se julgar conveniente, valendo-se se for preciso de laudo pericial, a conversão, por meio de hasta pública, dos bens móveis, sujeitos a deterioração ou a extravio, em imóveis ou em títulos (públicos ou privados) garantidos pela União (CC, art. 29). A conversão dos bens suscetíveis de deterioração não mais será obrigatória, sendo mera permissão ao órgão judicante; b) os herdeiros imitidos na posse desses bens darão, ante a precariedade de seu direito, garantias de sua res­ 183 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il tituição mediante penhores, hipotecas, equivalentes aos quinhões respectivos (CPC, art. 1.166; CC, art. 30). Se não puderem dar tais garantias não entrarão na posse dos bens, que ficarão sob a administração de um curador, ou de outro herdeiro designado pelo juiz, que preste as mencionadas garantias (CC, art. 30, § l 2). Mas os ascendentes, os descendentes e o cônjuge, se for provada sua qualidade de herdeiros necessários, poderão, independentemente de garantia, entrar na posse dos bens do ausente (CC, art. 30, § 2fi), pois há presunção legal de que zelarão pelos quinhões recebidos a título provisório; c) os imóveis do ausente, não só os arrecadados, mas também os convertidos por venda dos móveis (CC, art. 29), não poderão ser alienados, exceto em caso de desapropriação, ou hipotecados, salvo por ordem judicial, para lhes evitar ruína ou por ser mais conveniente convertê-los em títulos garantidos pela União (CC, arts. 31 e 29), antè a necessidade de preservar o patrimônio do ausente, já que há possibilidade de seu retomo; ã) os sucessores provisórios, empossados nos bens, ficarão representando ativa e passivamente o ausente, de modo que contra eles correrão as ações pendentes e as que de futuro àquele forem movidas (CC, art. 32), aplicando-se-lhes a norma do art. 1.792 do Código Civil, portanto não terão responsabilidade por encargos superiores às forças da herança recebida provisoriamente; e) o descendente, ascendente ou cônjuge, que for sucessor provisório do ausente, fará seus todos os frutos e rendimentos dos bens que a este couberem por serem herdeiros necessários (CC, arts. 1.829, I, II e III, e 1.845). Os outros sucessores (parentes colaterais), porém, deverão capitalizar metade desses frutos e rendimentos, conforme o art. 29 do Código Civil, de acordo com o representante do Ministério Público, e prestar anualmente contas ao juiz competente (CC, art. 33); f) o excluído da posse provisória (CC, art. 30, § l fl) por não ter oferecido a garantia real, poderá, se justificar falta de meios, requerer lhe seja entregue metade dos rendimentos do quinhão que lhe tocaria (CC, art. 34) para poder fazer frente a sua subsistência. O sucessor provisório que não pôde entrar na posse de seu quinhão, por não ter oferecido a garantia legal, poderá justificar-se provando a falta de recursos, requerendo, judicialmente, que lhe seja entregue metade dos frutos e rendimentos produzidos pela parte que lhe caberia, e que foi retida, para poder fazer frente à sua subsistência. Interessante é a seguinte observação de Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes: "Se o herdeiro excluído da posse recebe metade dos rendimentos do quinhão que lhe tocaria, resta a indagação sobre o destino da outra metade. Será ela capitalizada para o ausente ou será atribuída ao herdeiro que ficou imitido na posse de tais bens? Não parece razoá­ 184 vel que ao herdeiro exclúído sejam atribuídos rendimentos, enquanto aquele que o substituiu na gestão dos bens nada recebe. Parece mais coerente sustentar que é o ausente quem deixa de receber rendimentos por aquele quinhão, uma vez que, fosse um curador gerindo os bens, seria ele a arcar com a remuneração". Se se provar, cabalmente, durante a sucessão provisória a data certa da morte do ausente, considerar-se-á, nessa data, aberta a sucessão em prol dos herdeiros, que, legal e comprovadamente, o eram àquele tempo (CC, arts. 35 e 1.784); converte-se, então, a sucessão provisória em definitiva (CPC, art. 1.167, I). Retomando o ausente ou enviando notícias suas ou, ainda, comprovando-se judicialmente sua existência por estar vivo, cessarão para os sucessores provisórios todas as vantagens, ficando obrigados a tomar medidas assecuratórias ou conservatórias até a devolução dos bens a seu dono (CC, art. 36). Daí serem os sucessores provisórios herdeiros presuntivos, uma vez que gerem patrimônio supostamente seu; o verdadeiro proprietário é o ausente, cabendo-lhe, também, a posse dos bens, bem como os seus frutos e rendimentos, se o sucessor provisório não for o cônjuge, descendente ou ascendente. Logo, o sucessor provisório, com o retomo do ausente, deverá dar contas dos bens e de seus acrescidos. Mas se o ausente aparecer, e ficar provado que sua ausência foi voluntária e injustificada (p. ex., inexistência de perigo de vida ou de qualquer motivo plausível), perderá ele, em favor dos sucessores provisórios, sua parte nos frutos e rendimentos, compensando-os pela administração feita (CC, art. 33, parágrafo único), recebendo, como sanção, apenas de volta o patrimônio original. Portanto, o ausente, com seu regresso, deverá demonstrar que sua ausência se deu involuntária e justificadamente, sob pena de perder para os sucessores provisórios os frutos e rendas produzidos pelos seus bens móveis ou imóveis. Se dentro de 30 dias do trânsito em julgado da sentença que manda abrir a sucessão provisória não aparecer nenhum interessado, ou herdeiro, que requeira o inventário, o Ministério Público provocará o juiz a ordenar a arrecadação dos bens e a herança será, então, considerada jacente (CPC, art. 1.165, parágrafo único; CC, arts. 28, § 2°, e 1.819 a 1.823). 3) A sucessão definitiva e o levantamento das cauções prestadas poderão ser requeridos pelos interessados (CC, art. 27) 10 anos depois de passada em julgado a sentença que concedeu abertura de sucessão provisória (CPC, art. 1.167, II; CC, art. 37) ou se se provar que o ausente conta 80 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 185 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil anos de idade e que de 5 anos datam as últimas notícias suas (CPC, art. 1.167, III; CC, art. 38; RT, 572:98). Os sucessores deixarão de ser provisórios, adquirindo, então, o domínio e a disposição dos bens recebidos, porém, sua propriedade será resolúvel se o ausente regressar nos 10 anos seguintes à abertura da sucessão definitiva, caso em que só poderá requerer ao juiz a entrega dos bens existentes no estado em que se encontrarem, os sub-rogados em seu lugar ou o preço que os herdeiros houverem recebido pelos alienados depois daquele tempo (CC, art. 39; CPC, art. 1.168), respeitando-se, assim, direitos de terceiros, uma vez que não se desfazem aquisições por eles realizadas. Daí afirmar-se que tal sucessão é quase-definitiva. Poderão perceber os frutos e rendimentos dos bens herdados, podendo utilizá-los como quiserem, e alienálos, onerosa ou gratuitamente e, ainda, requerer o levantamento das cauções (garantias hipotecárias ou pignoratícias) prestadas. Se, entretanto, o ausente regressar depois de passados os 10 anos de abertura da sucessão definitiva não terá direito a nada, não mais podendo recuperar seus bens. Se, nos 10 anos a que se referem os arts. 39 do Código Civil e 1.168 do Código de Processo Civil, o ausente não retomar, e nenhum interessado promover a sucessão definitiva, os bens serão arrecadados como vagos passando à propriedade do município ou do Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da União, quando situados em território federal (CC, art. 39, parágrafo único), que ficarão obrigados a aplicá-los em fundações destinadas ao ensino (Dec.-lei n. 8.207/45, art. 3a). A presunção de morte por ausência tem o poder de pôr fim ao vínculo conjugal, por mais prolongada que seja. Há no direito brasileiro ação direta para a declaração de dissolução do vínculo matrimonial por ausência do cônjuge, que declarada judicialmente tem o condão de produzir ipsó iitre a dissolução do casamento (CC, art. 1.571, § I a). No regime anterior, a ausência não terminava com o casamento, mas o desaparecimento do cônjuge sem deixar notícia podia ser causa de separação judicial, por importar em conduta desonrosa ou grave violação dos deveres do casamento, tomando impossível a vida em comum; ou em ruptura da vida em comum por mais de 5 anos consecutivos impossibilitando a sua reconstituição (Lei n. 6.515/77, art. 5a, § Ia). Silvio Rodrigues, a esse respeito, distinguia duas situações, ante a Lei do Divórcio, conforme o ausente tenha desaparecido antes ou depois de 28 de junho de 1977, escrevendo que, se o desaparecimento ocorreu antes de 186 C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o 28-6-77 e já perdurava por mais de 5 anos, poderia o cônjuge do desaparecido, independentemente de sentença declaratória de ausência, promover ação de divórcio contra o seu consorte, com base no art. 40 da Lei n. 6.515/77; provada a separação de fato por mais de 5 anos, podia obter sentença favorável, que ensejava seu novo matrimônio. Era óbvio que a hipótese era transitória, porque na longa duração não haveria pessoas desaparecidas anteriormente a 28 de junho de 1977. Se o desaparecimento ocorresse após esta data, dever-se-ia propor a ação de separação, com base no art. 5a, § Ia, da mesma Lei do Divórcio, que seria alcançável se provado que a separação, derivada de ausência, durasse pelo menos 5 anos. Após a obtenção da separação judicial, o cônjuge do ausente aguardaria 3 anos e então obtinha a conversão de sua separação judicial em divórcio. Nesse momento poderia contrair novo matrimônio. Todavia, como já dissemos alhures, houve julgados que entendiam que havia uma permanente possibilidade jurídica de divórcio direto aos separados de fato há mais de 5 anos (Adcoas, 1979, n. 73.143, TJRJ). Pelo art. 226, § 6a, da Constituição Federal de 1988, bastaria para o divórcio direto consensual a comprovada separação de fato por mais de 2 anos, mas na hipótese de ausência, antes do advento do novo Código Civil, ter-se-ia, ante a impossibilidade de acordo para solucionar eventuais pendências, primeiro que obter a separação judicial litigiosa, convertendo-a depois de 1 ano em divórcio. Com o advento da EC n. 66/2010, que deu nova redação ao art. 226, § 6a, da CF, não há mais, hoje, necessidade de pleitear separação judicial e de prazos de carência de um ano daquela separação ou de dois da separação de fato para requerer o divórcio. Com o disposto no § I a do art. 1.571 a morte presumida extingue a sociedade e o vínculo conjugal, liberando o ex-cônjuge para convolar novas núpcias, sem precisar requerer antes o divórcio. Se, realizado o novo casamento, o morto presumido vier a reaparecer, o segundo matrimônio nulo será, mas produzirá por analogia (LINDB, art. 4a) os efeitos do casamento putativo. Mas há quem ache que, ante a constituição da nova família, o segundo casamento prevalecerá, exceto se os novos esposos, juntos ou separadamente, deliberarem anulá-lo. Se o ausente tiver deixado filhos menores e o outro consorte já for falecido ou incapaz para exercer o poder familiar, nomear-se-á tutor a essas crianças (CC, art. 1.728, I e II)45. 45. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 239, 240 e 314; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 59 e 60. Vide Súmula 331 do STF. Sobre os efeitos no direito de família: M. H. Diniz, 187 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Não há outras pessoas sujeitas à curatela, por serem consideradas absolutamente incapazes, além das arroladas pelo art. 3S do Código Civil. Logo, deficiência física, cegueira, analfabetismo, idade provecta (Lei n. 10.741/2003, com alteração da Lei n. 12.461/2011), por si sós, não constituem motivo bastante para a interdição, se a pessoa tiver condições psíquicas normais. c.3. Incapacidade relativa A incapacidade relativa diz respeito àqueles que podem praticar por si os atos da vida civil desde que assistidos por quem o direito positivo encarrega deste ofício, em razão de parentesco, de relação de ordem civil ou de designação judicial. O efeito da violação desta norma é gerar a anulabilidade do ato jurídico (CC, art. 1 7 1 ,1), dependendo de iniciativa do lesado, havendo até hipóteses em que poderá ser confirmado ou ratificado tal ato praticado por relativamente incapaz sem a assistência de seu representante46. Por outro lado, há atos que podem praticar, livremente, sem autorização. Eis por que se diz que os relativamente incapazes ocupam uma zona inCurso, cit., v. 5, n. 7, item B do cap. U. Vide: STJ, REsp 249.823 (200000201766) PR-3a T., rei. Min. Eduardo Ribeiro, DJU, 26-6-2000; W. Barros Monteiro, op. cit., p. 334- 7; Silvio Rodrigues, op. cit., p. 417; Sebastião José Roque, Direito de família, cit., p. 207-14; José Antonio de Paula Santos Neto, Da ausência, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2001; sobre curadoria do ausente: Silvio Rodrigues, op. cit., p. 419 e 422; Hugo Nigro Mazzilli, Curadoria de ausentes e incapazes, São Paulo, 1988; Jones E Alves e Mário L. Delgado, Código, cit., p. 38; Barbara A. de Araújo, A ausência: análise do instituto sob a perspectiva civil e constitucional, A parte geral, cit., p. 59-82; Lei n. 6.015/73, art. 29, VI; Caio M. S. Pereira, Instituições, v. 5, cit., p. 315 e 317; Gustavo Tepedino e outros. Código, cit., v. 1, p. 93; Moacir Adiers, A ausência da pessoa natural no novo Código Civil, Revista do Direito Privado, 18:189 a 217; Tarcisa A. Marques Porto, A ausêticia no novo Código Civil, São Paulo, SRS, 2008. Sobre morte presumida de tripulantes de navios e aeronaves (Dec.-lei n. 3.577/41, arts. I2, § l2, 32 e 12), de militares, servidores públicos e militares de aeronáutica (Decs.-leis n. 4.819/42, 5.782/43 e 6.239/44, respectivamente). Vide Lei n. 9.140, de 4-12-1995, com alteração da Lei n. 10.536/2002, que reconhece como mortos os desaparecidos em razão de participação em atividades políticas no período de 2-9-1971 a 5-10-1988 — Decreto de 16-12-2004 (DOU de 17-12-2004 e republicado no DOU de 20-12-2004), concede indenização a famílias de pessoas desaparecidas ou mortas em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas, no período de 2-9-1961 a 5-10-1988; STF, Súmulas 331 e 445; Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, § 220; Decreto n. 3.048/99; RJTJSP, 360:363, 221:181, 136:297, 116:49, 90:350, 35:63; RT, 794:382, 535:241. 46. Antônio Chaves, Capacidade civil, cit., p. 9; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 240 e 241. 188 termediária entre a capacidade plena e a incapacidade total, uma vez que podem participar da vida jurídica47. Dentre os que se enquadram nessa categoria (CC, art. 4a) temos: 1) Os maiores âe 16 e menores de 18 anos (CC, art. 42, I), pois a sua pouca experiência e insuficiente desenvolvimento intelectual não possibilitam sua plena participação na vida civil, de modo que os atos jurídicos que praticarem só serão reputados válidos se assistidos pelo seu representante. Caso contrário serão anuláveis. Entretanto, o menor, entre 16 e 18 anos, não poderá, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte ou se, no ato de obrigar-se, espontaneamente se declarou maior (CC, art. 180)48. "A incapacidade relativa de uma das partes não pode ser invocada pela outra em benefício próprio, nem aproveita aos cointeressados capazes, salvo se, neste caso, for indivisível o objeto do direito ou da obrigação comum" (CC, art. 105). Se não houve malícia por parte do menor, tem-se a anulação de seu ato, porém, pelo art. 181 do Código Civil, "ninguém poderá reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não provar que reverteu em proveito dele a importância paga". Pelo art. 116 do Estatuto da Criança e do Adolescente, havendo ato infracional, com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma compense o prejuízo da vítima. E acrescenta, ainda, no parágrafo único que "havendo manifesta impossibilidade, a medida poderá ser substituída por outra adequada". "O incapaz responde pelos prejuízos que causar de maneira subsidiária ou excepcionalmente, como devedor principal, na hipótese do ressarcimento devido pelos adolescentes que praticarem atos infracionais, nos termos do art. 116 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no âmbito das medidas socioeducativas ali previstas" (Enunciado n. 40 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal). C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o 47. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 240; Mazeaud e Mazeaud, Traité, cit., p. 36; Lei n. 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad); prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes. 48. Silvio Rodrigues, Dos defeitos dos atos jurídicos, São Paulo, 1959, n. 100 e s. e n. 131; RT, 465:86, 518:96. 189 T e o r ia G er a l d o D i r e i t o C iv il Em alguns casos, o menor relativamente incapaz procede independentemente da presença de um assistente. P. ex.: aceitar mandato (CC, art. 666); fazer testamento (CC, art. 1.860, parágrafo único); ser testemunha em atos jurídicos (CC, art. 228, I); exercer empregos públicos para os quais não for exigida a maioridade. Precedendo autorização pode ser empresário (CC, art. 52, parágrafo único, V; Lei de Falências, art. I 2); casar-se o homem e a mulher de 16 anos (CC, art. 1.517). Em regra, poderá: celebrar contrato de trabalho (CLT, art. 446; CF, arts. 72, XXXIII, e 227, § 3a, III, com a redação da EC n. 65/2010; Dec. n. 95.730/88, ora revogado pelo Dec. de 10-5-1991; Lei n. 8.069/90, arts. 60 a 69, 54, VI, 208, VIII; Lei n. 10.097/2000, que altera os arts. 402 e 403 da CLT, e Decreto n. 4.134/2002) se tiver mais de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos (Dec. n. 5.598/2005, art. 2a; CLT, art. 428; Dec. n. 4.134/2002; Dec. n. 6.481/2008, art. 3a; Instrução Normativa n. 75/2009 da Secretaria de Inspeção do Trabalho; Súmula 24 da Advocacia-Geral da União); ser eleitor (Código Eleitoral, art. 4a; CF, art. 14, § Ia, I, mas acrescenta o II, c, que será esse direito facultativo para os maiores de 16 e menores de 18 anos). Se tiver 18 anos, por ser maior, poderá: requerer registro de seu nascimento (Lei n. 6.015/73, art. 50, § 3fl, com alteração da Lei n. 9.053/95); pleitear perante a justiça trabalhista (CLT, art. 792); participar de cooperativas de trabalho, consumo ou crédito (Dec. n. 22.239/32 e Dec.-Lei n. 581/38, revogado pelo Dec.-Lei n. 59/66, que, por sua vez, perdeu vigência por força da Lei n. 5.764/71); exercer na justiça criminal o direito de queixa, renúncia e perdão (CPP, arts. 34, 50, parágrafo único, e 52); firmar recibos relativos a salários e férias se for trabalhador rural (como dispunha a Lei n. 4.214/63, art. 58, ora revogada pelo art. 21 da Lei n. 5.889/73, que nada prevê a respeito; CLT, art. 439); firmar recibo de pagamento de INSS (Dec. n. 77.077/76, revogado pelo Dec. n. 89.312/84, hoje prejudicado pelos arts. 111 da Lei n. 8.213/91 e 163 do Decreto n. 3.048/99, que dispõem sobre o assunto) e previdenciários (Dec. n. 35.448/54) etc.49. 2) Os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tiverem o discernimento reduzido (CC, art. 4a, II; CF, art. 227, § 32, VII, com a redação da EC n. 65/2010). Baseado em posição fundada em subsí49. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 66 e 67; Clóvis Beviláqua, op. cit., p. 88 e 89; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 242; Jones F. Alves e Mário Luiz Delgado, Código, cit., p. 9. Portaria n. 6/2001 da Secretaria de Inspeção do Trabalho proíbe trabalho de menor de 18 anos em local perigoso e insalubre. Decreto n. 4.134/2002 promulga a Convenção n. 138. Recomendação n. 146 da OIT sobre idade mínima de admissão em emprego. Pelo Decreto n. 5.598/2005, aprendiz é o maior de 14 anos e menor de 24, mas essa idade máxima não se aplica a aprendizes portadores de deficiência (art. 2-, parágrafo único). A Resolução n. 69/2011, do Conselho Nacional do Ministério Público, "dispõe sobre a atuação dos membros do Ministério Público como órgão interveniente nos processos judiciais em que se requer autorização para trabalho de crianças e adolescentes menores de 16 anos". 190 C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s il e ir o dios mais recentes da ciência médico-psiquiátrica, o novo Código Civil alarga os casos de incapacidade relativa decorrente de causa permanente ou transitória. Assim sendo, alcoólatras ou dipsômanos (os que têm impulsão irresistível para beber ou os dependentes do álcool), toxicômanos, ou melhor, toxicodependentes (opiômanos, usuários de psicotrópicos, crack, heroína e maconha, cocainômanos, morfinômanos) ou portadores de deficiência mental adquirida, em razão, p. ex., de moléstia superveniente (p. ex., psicose, mal de Alzheimer), que sofram uma redução na sua capacidade de entendimento, não poderão praticar atos na vida civil sem assistência de curador (CC, art. 1.767, III), desde que interditos. São, portanto, considerados, também, relativamente incapazes os toxicômanos, após processo de interdição (CPC, art. 1.185), pois os entorpecentes, tóxicos, substâncias naturais ou sintéticas, como morfina, cocaína, heroína, crack, maconha etc., introduzidos no organismo, podem levar os viciados à ruína econômica pela alteração de sua saúde mental. Os toxicômanos, pela Lei n. 4.294/21, foram equiparados aos psicopatas, criando o Decreto- -lei n. 891/38, no art. 30, § 5a, duas espécies de interdição, conforme o grau de intoxicação: a limitada, que é similar à interdição dos relativamente incapazes, e a plena, semelhante à dos absolutamente incapazes. Caracterizando-se incapacidade de maior ou menor extensão, dá-se ao toxicômano curador com poderes mais ou menos extensos (v. Leis n. 6.368/76 e 10.409/2002 ora revogadas pela Lei n. 11.343/2006). Se se averiguar, no processo de interdição, que o toxicômano encontra-se em situação tal que o impede de exprimir sua vontade, enquadrar- -se-á no art. 3a, III, do Código Civil, passando a ser tido como absolutamente incapaz. 3) Os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo (CC, art. 4a, III; CF, art. 227, § Ia, II, com a redação da EC n. 65/2010). Abrangendo os fracos de mente, os surdos-müdos sem educação apropriada e os portadores de anomalia psíquica genética ou congênita (p. ex., a de síndrome de Down), que apresentem sinais de desenvolvimento mental incompleto, comprovados e declarados em sentença de interdição, que os tomam incapazes de praticar atos na vida civil, sem assistência de um curador (CC, art. 1.767, IV). 4) Os pródigos (CC, art. 4a, IV; JTJ, 200:110), pois até nosso direito anterior já restringia a capacidade daquele que, desordenadamente, dilapidava os seus bens ou patrimônio, fazendo gastos excessivos e anormais50, man50. Aubry e Rau (Cours de droit civil, v. 1, § 138) assim definem o pródigo: "celui qui, par dêrèglement d'esprit ou des moeurs, dissipe sa fortune en excessives et folies dépenses"; Clóvis, op. cit., p. 111; Clóvis F. C. Becalho e Osmar B. Corrêa Lima, Loucura e prodigalidade à luz do direito e da psicanálise, RIL, 118:363. 191 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il dando que fosse apregoado o seu estado, para que ninguém fizesse qualquer negócio com ele, qualificando a prodigalidade como uma espécie de alienação mental51 em razão de manifestação de ação perdulária. Observa Roberto Senise Lisboa que a prodigalidade pode dar-se por: a) oniomania, perturbação mental que provoca o portador a adquirir descontroladamente tudo o que tiver vontade; b) cibomania, psicose conducente à dilapidação patrimonial em jogos de azar; c) imoralidade que leva a gasto excessivo para satisfação de impulsos sexuais. E esclarece, ainda, que "não se constitui prodigalidade o eventual gasto excessivo, na expectativa de obtenção futura de lucro ou da consolidação de um patrimônio que mantenha a qualidade de vida do indivíduo como aceitável, dentro dos parâmetros da razoabilidade". Pelo Código Civil, arts. 1.768 e 1.769: O pródigo só incorrerá em interdição, havendo cônjuge, ascendente, descendente, qualquer parente ou órgão do Ministério Público, que a promovam. "Quando o curador for o cônjuge e o regime de bens do casamento for de comunhão universal, não será obrigado à prestação de contas, salvo determinação judicial" (CC, art. 1.783). O nosso Código Civil mantém linha intermediária, enquadrando o pródigo entre os relativamente incapazes, privando-o, exclusivamente, dos atos que possam comprometer seu patrimônio, não podendo, sem a assistência de seu curador (CC, art. 1.767, V), alienar, emprestar, dar quitação, transigir, hipotecar, agir em juízo e praticar, em geral, atos que não sejam de mera administração (CC, art. 1.782). Todos os demais atos da vida civil poderão ser, por ele, validamente praticados, como: o casamento, a fixação do domicílio do casal, a autorização para que seus filhos menores contraiam matrimônio etc.52. O pródigo, enquanto não declarado tal, é capaz para todos os atos, pois só com sua interdição passa a ser relativamente incapaz. Portanto, quanto ao pródigo, a lei não lhe impõe a abstenção total dos atos jurídicos nem lhe confere a liberdade de ação que lhe possibilite a perdulariedade. Entretanto, até mesmo a prodigalidade poderia estar incluída no termo enfermidade mental do art. 3a, II, do Código Civil, porque quem tem juízo não dissipa bens, com o intuito de proteger o seu portador de vir a abster-se totalmente dos bens imprescindíveis para a sua sobrevivência. Deveras, se a prodigalidade resultar de desordem das faculdades mentais, que lhe retira o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil, 51. Ordenações, L. 4, tít. 103, § 6a; RT, 477:149. 52. Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 82; Roberto Senise Lisboa, Manual elementar de direito dvil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, v. 1, p. 219. 192 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o sua interdição deverá ser requerida com fulcro no art. 32, II, do Código Civil, para declará-lo absolutamente incapaz53. A mulher casada, por ocasião da promulgação do Código Civil de 1916, em razão do matrimônio e não do sexo, devido à necessidade de ter a sociedade conjugal uma chefia, e como esta competia ao marido, passou a ser tida como incapaz, incapacidade esta que se cobria pela autorização e não pela assistência54. Na verdade, tratava-se de falta de legitimação e não de incapacidade, pois as restrições que lhe eram feitas eram as mesmas que pesavam sobre o marido, que não podia praticar atos sem sua anuência, tais como: alienar e gravar de ônus reais os bens imóveis (CC de 1916, art. 235); pleitear esses bens como autor ou réu; fazer doações, não sendo estas remuneratórias ou módicas; prestar fiança. Por outro lado, a mulher casada, como dirigente do lar, supunha-se autorizada a praticar os atos necessários ao exercício de suas funções domésticas (CC de 1916, art. 247), e, para a segurança dos direitos, que a norma, especialmente, lhe conferia, dispensava a autorização marital (CC de 1916, art. 248)55. Logo, a mulher casada não devia ter sido incluída entre os incapazes; faltava-lhe, na época, apenas legitimação para realizar certos negócios jurí53. W. de Barros Monteiro, Curso, cit., v. 2., p. 325; José Olympio Castro Filho, Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1983, v. 10, p. 207; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 247. "O juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos (artigo 438, CPC). Assim é que, indicados os motivos que formaram o convencimento a respeito da prodigalidade determinante da interdição, não há cogitar de negativa de vigência ao artigo 131 do Código de Processo Civil. Perfeitamente dispensável, no caso, referir a anomalia psíquica, mostrando-se suficiente a indicação dos fatos que revelam o comprometimento da capacidade de administrar o patrimônio. A prodigalidade é uma situação que tem mais a ver com a objetividade de um comportamento na administração do patrimônio do que com o subjetivismo da insanidade mental invalidante da capacidade para os atos da vida civil. Negativa de vigência ao artigo 1.180 do CPC não configurada. Recurso Especial não conhecido (STJ)" (Boi. AASP, 1.882:8). Vide: Decreto n. 4.262, de 10 de junho de 2002, que regulamenta a Lei n. 10.357, de 27 de dezembro de 2001, que estabelece normas de controle e fiscalização sobre produtos químicos que direta ou indiretamente possam ser destinados à elaboração ilícita de substâncias entorpecentes, psicotrópicas ou que determinem dependência física ou psíquica; Lei n. 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad); prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes. 54. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 244; De Page, Traité êlémentaire de droit civil, v. 1, n. 78, p. 85; Clóvis Beviláqua, op. cit., p. 89. 55. Serpa Lopes, Curso de direito civil, Freitas Bastos, 1962, v. 1, p. 288; Clóvis Beviláqua, op. dt., v. 1, p. 89 e 90. Vide Lei n. 9.799/99, que insere na CLT normas sobre acesso da mulher ao mercado de trabalho (arts. 373-A, I a VI, parágrafo único, 390-B, 390-C, 193 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il dicos, sem a anuência marital, de maneira que, com o consentimento de seu marido, ela adquiria essa legitimação e estava apta a praticar tais atos. A Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962, aboliu a incapacidade relativa da mulher casada, instituindo a igualdade jurídica dos cônjugesSB; o mesmo se diga da Constituição Federal, art. 226, § 5a, e do novo Código Civil, art. 1.567, pelo qual a esposa tem poder decisório, p. ex., no que se refere ao domicílio que deve ser fixado pelo casal e não mais unilateralmente pelo marido. Tem, ainda, direito de ausentar-se, livremente, do lar para o trabalho ou para fins culturais, cabendo-lhe a exclusiva administração dos bens que lhe são próprios. Nos casos excepcionais de caber a decisão a ambos os cônjuges, tem sempre a esposa o direito de recorrer ao juiz para fazer prevalecer a sua vontade, em caso de divergência, desde que as questões sejam essenciais e não se tratando de matéria personalíssima. Dá-se, assim, à esposa um "poder de decisão" e não simples "função de colaboradora do marido" (arts. 1.567 e parágrafo único, 1.642, II, e 1.569). Assim, com a queda da ideologia patriarcal, a legislação retira a mulher casada da sujeição marital. Quanto aos silvícolas ou índios, pela sua gradativa assimilação à civilização, a questão de sua capacidade deverá ser regida por leis especiais (CC, art. 4a, parágrafo único; CF, arts. 210, § 2a, 215, § I a, e 231; Lei n. 6.001/73, art. Ia, parágrafo único). Nossos índios sofreram um processo de dizimação, principalmente no período colonial, sendo que os poucos que ainda restam, nos dias atuais, nos Estados centrais e nas regiões que aos poucos sofrem o impacto da civilização, podem ser equiparados a crianças. Devido a sua educação ser lenta e difícil, o legislador criou um sistema de proteção que os defende de pessoas sem escrúpulos57. O Código Civil de 1916 considerou-os re390-E e 392, § 4a, I e II); Lei n. 10.244/2001, que revoga o art. 376 da CLT para permitir realização de horas extras por mulheres; e Decreto n. 4.377, de 13 de setembro de 2002, que promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto n. 89.460, de 20 de março de 1984. Decreto n. 5.446, de 20-5-2005, acrescenta inciso ao art. 4a do Decreto n. 5.390, de 8-3-2005, que aprova o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (Pnpm) e institui o Comitê de Articulação e Monitoramento. O Decreto n. 6.269, de 22 de novembro de 2007, altera e acresce dispositivos ao mencionado Decreto n. 5.390/2005. Lei n. 11.340/2006 cria mecanismos para coibir violência doméstica e familiar contra a mulher. 56. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 245; Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, v. 5. 57. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 247; Hugo N. Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, Saraiva, 1995, p. 226; Antonio Chaves, A condição jurídica do índio, RDC, 9:27; Ismael Marinho Falcão, Regime tutelar indígena, RDC, 33:58; Carla G. A. Barbosa, João M. A. Barbosa e Marco Antonio Barbosa, Direito a diferença na sociedade de informação: os direitos indígenas na Constituição brasileira, Revista do IASP, 20:43-65. 194 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o lativamente incapazes, sujeitando-os ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país (CC de 1916, art. 6a, parágrafo único). Assim sendo a determinação de sua incapacidade por legislação especial é uma proteção e não uma restrição. Os índios têm direito à posse de suas terras, reconhecido pela Constituição Federal, art. 231, direito de ir para onde quiserem, direito de reunião, direito de se defenderem, constituindo advogado, pois têm responsabilidade penal. O Serviço de Proteção aos índios, que instituiu normas regulamentares com o escopo de tutelar seus interesses, foi extinto em 1967; criou-se, então, a Fundação Nacional do índio, que seguiu a mesma linha58 (Lei n. 5.371/67; Portaria n. 542/93 do Ministério da Justiça — apro58. Sobre os índios, consulte-se a título de remissão histórica: Decreto n. 5.484/28; Decreto n. 10.652/42 (ora revogado pelo Decreto n. 11, de 1991); Lei n. 5.371/67; Lei n. 6.001/73 (Estatuto do índio); Decreto n. 88.118/83 (ora revogado pelo Decreto n. 94.945/87); Constituição do Estado de São Paulo, 1989, arts. 282, §§ Ia a 3a, e 283. Pelo art. 50, § 2a, da Lei n. 6.015/77, enquanto não integrados os índios não estão obrigados à Inscrição do nascimento. Este poderá ser feito em livro próprio do órgão federal de assistência ao índio. Vide art. 246 da Lei n. 6.015/77, com a redação da Lei n. 10.267, de 28-8-2001, alusivo ao registro de terras indígenas. Os Decretos de 21-5-1992 e 25- 5-1992 e o Decreto n. 608/92 (ora revogado pelo Decreto n. 1.775/96) tratam da homologação e processo da demarcação da área indígena. Os Decretos n. 22 (ora revogado pelo Decreto n. 1.775/96), 23, 24, 25, 26, 27/91, 1.141/94 (que no art. 23 revogou os Decs. n. 23, 24 e 25/91) e a Instrução Normativa n. 2/94 referem-se à preservação da cultura indígena. A Resolução n. 45, de 29 de agosto de 2011, do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), estabelece diretrizes para a educação escolar indígena. A Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008, altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena". A Instrução Normativa n. 1/94 é relativa ao ingresso na área indígena. Pelo Decreto n. 1.141/94, com a alteração do Decreto n. 1.479/95 (ora revogado pelo Decreto n. 3.156/99), as ações de proteção ambientál, saúde e apoio às atividades produtivas voltadas às comunidades indígenas constituíam encargos da União. Vide: Portaria n. 928/95 da FUNAI, sobre projeto integrado de proteção às terras e populações indígenas da Amazônia Legal; Decreto n. 1.775, de 8 de janeiro de 1996; Decreto de 15 de fevereiro de 1996; Despachos n. 39/96, 40/96 e 41/96 da FUNAI, sobre identificação e delimitação de terras indígenas; Portaria n. 14/96 do Ministério da Justiça; Decreto n. 1.775/96, sobre procedimento administrativo de demarcação de terra indígena; Decreto s/n., de 17 de setembro de 2004, que cria Grupo Operacional para coibir exploração mineral em terras indígenas; Resolução n. 3/99 do Conselho Nacional de Educação, que fixa diretrizes para o funcionamento de escolas indígenas; Resolução n. 4/2010 do Conselho Nacional de Educação, art. 37, sobre educação escolar indígena; Portaria n. 479/2001 da Fundação Nacional de Saúde, que estabelece as diretrizes para elaboração de projetos de estabelecimentos de saúde, de abastecimento de água, melhorias sanitárias e esgotamento sanitário, em áreas indígenas; Portaria n. 543/2001 do Ministério da Saúde, sobre normas e procedimentos operacionais para concessão e aplicação de suprimento de fundos especial, para atender às es- 195 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il pedfiddades decorrentes da assistência à saúde indígena; Portaria n. 1.098/2002 do Ministério da Justiça, que aprova o Regimento Interno do Conselho Indigenista da FUNAI; Decreto n. 5.051/2004, que promulga a Convenção n. 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais; Decreto n. 4.906/2003, que dispõe sobre o remanejamento de funções comissionadas técnicas — FCT para a Fundação Nacional do índio — FUNAI; Lei n. 11.907/2009, arts. 109 a 116, sobre quadro de pessoal da FUNAI; Portaria n. 69/2004 do Ministério da Saúde, que dispõe sobre a criação do Comitê Consultivo da Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, vinculado à Funasa; Portaria n. 70/2004 do Ministério da Saúde, que aprova as diretrizes da gestão da política nacional de atenção à saúde indígena; Portaria conjunta n. 1/2004 da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos e da Funasa, que cria grupo de trabalho para formulação de uma política de assistência farmacêutica para os povos indígenas; Portaria n. 747/2004 do Ministério da Saúde, que estabelece normas e procedimentos para concessão e aplicação de suprimento de fundos especial, para atender às especificidades decorrentes da assistência à saúde indígena; Portaria n. 1.062/2005, do Ministério da Saúde, que institui a Criação do Selo Hospital Amigo do índio e do Comitê de Certificação e Avaliação do Selo Hospital Amigo do índio; Portaria n. 52/2004, da Secretaria de Educação Superior, que institui Comissão Especial, no âmbito da Secretaria de Educação Superior — SESu, para elaborar políticas de educação superior indígena; Lei n. 11.102/2005, que autoriza a Caixa Econômica Federal, em caráter excepcional e por tempo determinado, a arrecadar e alienar os diamantes brutos em poder dos indígenas Cintas-Largas habitantes das Terras Indígenas Roosevelt, Parque Indígena Aripuanã, Serra Morena e Aripuanã; Resolução n. 12/2005, do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que estabelece as orientações e diretrizes para assistência financeira suplementar aos projetos educacionais, no âmbito da educação escolar indígena; Portaria n. 90/2009 da CAPES, que dispõe sobre o Observatório da Educação Escolar Indígena; Portaria n. 13/2005, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, que institui a Comissão Nacional de Apoio à Produção do Material Didático Indígena; Portaria n. 177/2006, da FUNAI, sobre proteção do patrimônio material e imaterial relacionado à imagem, criação artística e cultural do povo indígena, e regulamenta o procedimento administrativo de autorização pela FUNAI de entrada de pessoas em terras indígenas interessadas no uso, aquisição ou cessão de direitos autorais e de direitos de imagem indígena e orienta procedimentos afins, com o propósito de respeitar os valores, criações artísticas e outros meios de expressão cultural indígena, bem como proteger sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições; Portaria n. 984, de 6 de julho de 2006, da Fundação Nacional de Saúde, que institui o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (SISVAN-Indígena); Portaria n. 135, de 28-2-2007, da FUNAI, que estabelece diretrizes e critérios técnicos para a definição de priorização das obras de saneamento em áreas indígenas que deverão ser considerados no planejamento das Coordenações Regionais e dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas; Portaria n. 52, de 8-10-2007, do Ministro da Cultura, que dispõe sobre a criação do Programa de Fomento e Valorização das Expressões Culturais e de Identidade dos Povos Indígenas; Portaria n. 2.656, de 17- 10-2007, do Ministro da Saúde, que dispõe sobre as responsabilidades na prestação da atenção à saúde dos povos indígenas, no Ministério da Saúde e regulamentação dos Incentivos de Atenção Básica e Especializada aos Povos Indígenas; Portaria n. 2.759, de 25-10-2007, do Ministro da Saúde, que estabelece diretrizes gerais para a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas e cria o Comitê Gestor; Lei n. 11.696, de 12 de junho de 2008, que institui o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, celebrado no dia 7 de fevereiro; Portaria n. 126, de 14 de fevereiro de 2008, da FUNASA, que regulamenta o acompanhamento da execução física e financeira pela Coordenação Regional e Distrito Sanitário Especial Indígena, com a participação do 196 C o r s o d f . D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o Controle Social Indígena, na Celebração e Execução dos Convênios de Saúde Indígena; Portaria n, 293, de 7 de abril de 2008, da Fundação Nacional de Saúde, que estabelece critérios para celebração de convênios com entidades governamentais e não governamentais para a execução das ações de atenção à saúde dos povos indígenas; Portaria n. 1.235, de 19 de junho de 2008, do Ministério da Saúde, que cria a Comissão de Estudo para elaboração de uma Política de Recursos Humanos para o Subsistema de Saúde Indígena; Decreto n. 6.513/2008, que altera o Decreto n. 4.412/2002, sobre atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas Terras Indígenas; Portaria n. 1.922/2008 do Ministério da Saúde, que criou Grupo de Trabalho para discutir e propor medidas a serem implantadas relativas à gestão de serviços de saúde oferecidos a povos indígenas; Portaria n. 3.841, de 7 de dezembro de 2010, do Ministério da Saúde, que autoriza os Superintendentes Estaduais da Fundação Nacional de Saúde e os Chefes dos Distritos Especiais de Saúde Indígena, perante as Superintendências Estaduais da Fundação Nacional de Saúde, a praticar atos referentes à saúde indígena; Portaria n. 883, de 8 de agosto de 2008, da Fundação Nacional da Saúde, que institui as Comissões Nacional e Distrital de Investigação e Prevenção do Óbito Infantil e Fetal Indígena. Sobre colocação de criança e adolescente indígena em família substituta: Lei n. 8.069/90, art. 28, § 6a, I, II e m, acrescido pela Lei n. 12.010/2009. Sobre perda e suspensão do poder familiar de pais oriundos de comunidades indígenas: Lei n. 8.069/90, art. 161, § 2a (acrescentado pela Lei n. 12.010/2009). Pela Lei n. 12.188/2010, art. 5a, I, os povos indígenas são beneficiários da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária (PRONATER). A Portaria n. 159, de 11 de março de 2010, da Subprocuradoria Geral Federal, atribui à Procuradoria Federal no Estado do Amazonas a representação judicial e as atividades de consultoria e assessoramento jurídicos da Fundação Nacional do índio — FUNAI, bem como a defesa judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos dos indígenas e de suas comunidades no Estado do Amazonas. A Portaria n. 203, de 23 de março de 2010, da Subprocuradoria Geral Federal, atribui à Procuradoria Federal no Estado do Maranhão a representação extrajudicial e as atividades de consultoria e assessoramento jurídicos da Fundação Nacional do índio — FUNAI, bem como a defesa judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos dos indígenas e de suas comunidades; a Portaria n. 215, de 9 de fevereiro de 2011, do Ministério da Saúde, institui o Grupo de Trabalho com o objetivo de coordenar as ações relativas à transferência dos bens permanentes ativos da Fundação Nacional de Saúde — FUNASA para o Ministério da Saúde, compreendendo os bens móveis, imóveis, intangíveis e semoventes, acervo documental e equipamentos destinados à promoção, proteção e recuperação da saúde dos povos indígenas, incluindo os relacionados às ações de saneamento ambiental em terras indígenas; vide também o Decreto n. 7.461/2011 (ora revogado pelo Decreto n. 7.530/2011), sobre prorrogação de prazo de efetivação da transição da gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, da Fundação Nacional de Saúde para o Ministério da Saúde. Já se decidiu que: "Ação direta de inconstitucionalidade. Inciso X do art. 7a da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Bens do Estado. Terras dos extintos aldeamentos indígenas. Violação dos arts. 2 0 ,1 e XI, 22, caput e inciso I, e 231 da Constituição Federal. Interpretação conforme. Extinção ocorrida antes do advento da Constituição de 1891. ADI julgada parcialmente procedente. I — A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, reconheceu que as terras dos aldeamentos indígenas que se extinguiram antes da Constituição de 1891, por haverem perdido o caráter de bens destinados a uso especial, passaram à categoria de terras devolutas. II — Uma vez reconhecidos como terras devolutas, por força do artigo 64 da Constituição de 1891, os aldeamentos extintos transferiram-se ao domínio dos Estados, m — ADI julgada procedente em parte, para conferir interpretação conforme à Constituição ao dispositivo impugnado, a fim de que a sua aplicação fique adstrita aos aldeamentos indíge- 197 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il va o Regimento Interno da FUNAI), atuando na defesa dos direitos e interesses indígenas, atendendo às suas atribuições legais (Portaria da FUNAI, 177/2006, art. Ia, § 2a). Pode até haver registro facultativo do índio em livro da FUNAI, que é o órgão federal que deve assisti-lo. Isto é assim porque a Lei n. 6.015/73, art. 50, § 2a, prescreve que: "os índios, enquanto não integrados, não estão obrigados a inscrição do nascimento. Este poderá ser feito em livro próprio do órgão federal dè assistência aos índios". Pela Constituição Federal de 1988 competirá à União legislar sobre índios (art. 22, XIV); ao Congresso Nacional autorizar, em terras indígenas, a alienação ou concessão de terras públicas com área superior a 2.500 hectares (art. 49, XVI); ao Ministério Público, defender judicialmente os direitos e interesses dos índios (art. 129, V), pois, pelo art. 232 da Constituição Federal, os indígenas, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo, em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos processuais, julgados pelos juizes federais (art. 109, XI). A nova Carta (art. 231, §§ I a a 7a) reconhece aos índios sua organização social, costumes, língua, crença, tradições, direito originário sobre as terras ocupadas por eles, que sobre elas terão posse permanente e usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, competindo, todavia, à União sua demarcação, dentro de 5 anos da promulgação da Carta de 1988 (art. 67 das Disp. Transit.), e sua proteção. O processo da demarcação de terras indígenas está previsto no Decreto n. 1.775/96. nas extintos antes da edição da primeira Constituição Republicana" (ADI 255, STF, Min. ümar Galvão (relator)). Sobre silvícola: RT, 600:392. Sobre área indígena: RSTJ, 46:81.Vide: Marcelo Dolzany da Costa, Anotações sobre direitos indígenas, in JEncontro de Juizes Federais da Região Amazônica, 1995, p. 133 e s.; A. Gursen de Miranda, O direito e o índio, Belém, Cejup, 1994; Juliana Santílli, Os direitos indígenas e a Constituição, Porto Alegre, Sérgio A. Fabris, 2002; Orlando Villas Bôas Filho, Os direitos indígenas no Brasil contemporâneo, in História do direito brasileiro, Eduardo C. B. Bittar (org.), São Paulo, Atlas, 2003, p. 279-90; limar Galvão, Terras indígenas, Doutrina — STJ — edição comemorativa — 15 anos, Brasília, STJ, 2005, p. 473-92; José Fábio R. Maciel, Direito indígena — um direito ou uma concessão do direito estatal?, Carta Forense, março, 2007, p. 50; Roberto Lemos dos Santos Filho, Responsabilidade civil da União por dano ambiental em terra indígena, Revista do TKF-33 Região, 83:143-63; Ana Maria Viola de Sousa e Carlos Marquette de Sousa, Tutela jurídica dos povos indígenas e a preservação do meio ambiente, Direito Sc Paz, 15:47-76 (UNISAL); Hilário Rosa e Tales Castelo Branco, Direito dos índios à terra no passado e na atualidade brasileira, Revista do IASP, 21:170-85; Walter C. Rothenburg, índios e seus direitos constitucionais na democracia brasileira, Revista de Direita Constitucional e Internacional, 60:281-97; Luiz de Lima Stefanni, Código indígena no direito brasileiro, separata da Revista do TRF-33 Região, n. 105 (2011); Rafael Ruiz, A legislação sobre o trabalho indígena no Brasil durante a União Ibérica, Revista de Direito Privado, 2:17-29. 198 C o r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o Além disso, só será permitida a exploração e pesquisa de riquezas minerais contidas nessas terras com autorização do Congresso Nacional, ressalvando-se aos índios o direito de participarem, na forma legal, dos resultados da lavra. Proíbe também a remoção dos indígenas dessas terras, salvo autorização do Congresso Nacional em caso de interesse de Soberania Nacional, de catástrofe ou epidemia que os ponha em risco, sendo-lhes garantido o direito de retomo, em qualquer hipótese, assim que a circunstância excepcional cessar. Os atos que objetivarem a ocupação dessas terras ou a exploração de suas riquezas são nulos. Tal nulidade não acarretará direito de pleitear indenização contra a União, salvo na forma da lei, quanto às benfeitorias oriundas de ocupação de boa-fé. A Lei n. 6.001/73 (Estatuto do índio) coloca o silvícola, habitante da floresta, e sua comunidade, enquanto não integrados à comunhão nacional, sob regime tutelar. Pelo elenco das pessoas incapazes percebe-se que nossa legislação não incluiu os falidos, porque a abertura da falência só se restringe aos direitos e obrigações da massa falida, impondo aos falidos limitações à atividade mercantil, ou seja, não poderão votar nem ser votados nas eleições das juntas comerciais, exercer funções de corretor, leiloeiro, avaliador, perito ou arbitrador em questões comerciais. Garantida está sua capacidade civil em relação a todos os atos que não forem atinentes à massa falida59. Da mesma forma a condenação criminal não acarreta incapacidade civil. Como pena restritiva de direito poderá sofrer a perda da função pública ou do direito à investidura em função pública, do poder familiar, da tutela, da curatela, da autoridade na sociedade conjugal, dos direitos políticos (CP, arts. 43 a 48)60. c.4. Proteção aos incapazes A proteção jurídica dos incapazes realiza-se por meio da representação ou assistência, o que lhes dá segurança, quer em relação a sua pessoa, quer em relação ao seu patrimônio, possibilitando o exercício de seus direitos (CC, arts. 115 a 120, 1.634, V, 1.690, 1.734, com a redação da Lei n. 12.010/2009, 1.747, I, 1.767)61. 59. Clóvis Beviláqua, op. cit., p. 97; Carvalho de Mendonça, Tratado de direito comercial, v. 7, n. 429 a 435. 60. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 248. 61. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 290; Clóvis, op. cit., p. 98; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 82; Luiz Alberto David Araújo, A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência, 1994; Mairan G. Maria Jr., A representação no negócio jurídico, São Pau- 199 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il lo, Revista dos Tribunais, 2001; Hugo N. Mazzilli, A defesa dos interesses difusos em juízo, Saraiva, 1995, p. 517-23, Curadoria de ausentes e incapazes, 1988, e O deficiente e o Ministério Público, RT, (529:64; Antonio Rulü Neto, Direitos do portador de necessidades especiais, São Paulo, Fiuza, 2002; Reparação do dano moral sofrido pelo incapaz, Estudos em homenagem ao Acadêmico Min. Sidney Sanches, São Paulo, Fiuza, APM, 2003, p. 85-94; Selma Negrão P. dos Reis, Saúde Mental e atuação do Ministério Público — notas sobre a inclusão das pessoas portadoras de transtorno mental e a defesa de seus direitos, in Questões de direito civil e o novo Código Civil, Ministério Público de São Paulo, 2004, p. 438-77; Roberto Bolonhini Júnior, Portadores de necessidades especiais, São Paulo, Arx, 2004; Anderson Schreiber, A representação no novo Código Civil, A parte geral, cit., p. 225 e s.; Cavalcante e Jorge Neto, O conteúdo jurídico da proteção ao portador de deficiência física prevista no art. 93 da Lei n. 8.213/91, Synthesis — direito do trabalho material e processual do TRT da 2a Região, 41:11-4; Mallet, Princípio Constitucional da igualdade e cotas para trabalhadores deficientes, Synthesis, cit., 41:15-17; Targa e Avelino, Políticas públicas afirmativas, sistema de cotas e garantia de emprego para o portador de necessidades especiais, Synthesis, cit., 41:18 a 22; Flávia Piva Almeida Leite, O município acessível à pessoa portadora de deficiência, São Paulo, RCS, 2007, Lydia N. B. Telles Nunes, Incapacidade: uma questão de proteção à pessoa humana, Revista IASP, n. 18, p. 170-86; Luciana T. T. Niess e Pedro H. T. Niess, Pessoas portadoras de deficiências no direito brasileiro, São Paulo, Ed. Juarez de Oliveira, 2003. Interessantes são: Revista do MPD — Dialógico, n. 11, por tratar da Inclusão das pessoas com deficiência e a Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de discriminação contra pessoas portadoras de deficiência, realizada em 1999 na Guatemala, sendo o Brasil um dos seus signatários. A Lei n. 7.853/89, alterada pela Lei n. 8.028/90 e regulamentada pelo Decreto n. 3.298/99, e o Decreto n. 914/93 referem-se à integração social de pessoas portadoras de deficiência, e o mesmo se diga da Lei n. 8.069/90, arts. 11, § Ia, 66, 112, § 3a, e 208, II. "Menor com 16 anos de idade e perfeita capacidade mental pode ser objeto de tutela, porque precisaria ser apenas assistido nos atos da vida civil. Todavia, tendo a capacidade mental obliterada e sendo, ainda, surdo-mudo, precisa ser curatelado por inteiro para que possa ter seus bens dirigidos e administrados por outrem e, assim, sobreviver" (RT, 613:95). A Lei n. 8.686/93 dispõe sobre o reajustamento da pensão especial aos deficientes físicos portadores da síndrome de Talidomida, instituída pela Lei n. 7.070/82. A Lei n. 7.070/82, por sua vez, sofreu alteração pela Lei n. 10.877/2004, dispondo que deficiente físico beneficiário de pensão especial fará jus a mais um adicional de 35% sobre o valor do benefício, desde que comprove pelo menos vinte e cinco anos, se homem, e vinte anos, se mulher, de contribuição para a Previdência Social; ou cinqüenta e cinco anos de idade, se homem, ou cinqüenta anos de idade, se mulher, e contar pelo menos quinze anos de contribuição para a Previdência Social. Vide Leis n. 8.242/91 e 8.899/94, sobre passe livre a deficientes no sistema de transporte coletivo interestadual. As Leis n. 8.989/95 (com alterações do art. 29 da Lei n. 9.317/96 e das Leis n. 10.182/2001, 10.754/2003 e 12.113/2009), 9.144/95 e a Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal n. 988/2009 dispõem sobre isenção de imposto sobre produtos industrializados na aquisição de automóveis por pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas o Convênio ICMS n. 3/2007, alterado pelo Convênio ICMS 39/2007 do CONFAZ, isenta do ICMS as saídas de veículos destinados a deficientes físicos; a Instrução Normativa da Secretaria da Fazenda Nacional n. 607/2006 trata da aquisição de automóveis com isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) por pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas. Vide Instruções Normativas da Secretaria da Receita Federal n. 367/2003 e 375/2003; Decreto n. 3.298/99, sobre competência, composição e funcionamento do Conselho Consultivo da Coordenadoria Nacional para Integração 200 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde); Decreto n. 1.744/95 (ora revogado pelo Decreto n. 6.214/2007), que regulamentava o benefício da prestação continuada devido ao deficiente e ao idoso, de que trata â Lei n. 8.742/93 — tal benefício, pelo art. 36, parágrafo único, daquele decreto, é intransferível, não gerando direito à pensão, e o valor do resíduo não recebido em vida pelo beneficiário será pago aos herdeiros ou sucessores, na forma da lei civil; e Ordem de Serviço n. 577/97 da Diretoria do Seguro Social do INSS, que aprova o Manual de Procedimentos para Operacionalização do Benefício Assistencial a Idosos e Deficientes. Vide, ainda, Decretos municipais paulistas n. 36.999/97, sobre cardápios em braile, 37.030/97, que regulamenta a Lei n. 12.365/97, sobre atendimento preferencial a deficientes, idosos e gestantes em estabelecimentos de saúde municipais, e 37.031/97, que regulamenta a Lei n. 12.117/96, sobre rebaixamento de guias e sarjetas para possibilitar a travessia de pedestres portadores de deficiência; Lei n. 9.867/99, que dispõe sobre criação e funcionamento de Cooperativa Social (art. 3a, I e II), visando a integração social de portadores de deficiências físicas, psíquicas e sensoriais; Portarias n. 1.679/99 do Ministério da Educação sobre requisitos de acessibilidade de pessoas portadoras de deficiências, paia instruir os processos de autorização e de reconhecimento de cursos e de credenciamento de instituições, e 772/99 do Ministério do Trabalho e Emprego, que dispõe sobre reabilitação e emprego de deficientes; Lei n. 10.050/2000, que acresceu o § 3a ao art. 1.611 do CC de 1916; Lei n. 10.048/2000, que lhes dá prioridade de atendimento; Lei n. 10.098/2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência, sendo que a Lei n. 11.982/2009 acrescentou-lhe parágrafo único ao art. 4a para determinar a adaptação de parte dos brinquedos e equipamentos dos parques de diversões às necessidades das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida; Decreto n. 5.296/2004, que regulamenta as Leis n. 10.048/2000 e 10.098/2000; Decreto n. 5.645/2005, que dá nova redação ao art. 53 do Decreto n. 5.296/2004; Lei n. 10.216/2001, que dispõe sobre proteção e direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental; Decreto n. 3.956/2001, que promulga a Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência; Resolução n. 2/2000, que aprova o Regimento Interno do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (CONADE); Portaria n. 154/2002 (com alteração da Portaria n. 36/2004, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, sobre composição e funcionamento do CONADE); Portaria n. 100/2005, que altera a redação dos arts. 14 e 16 da Portaria n. 36/2004, sobre o CONADE; Resolução n. 35/2005 sobre Regimento Interno do CONADE; Resolução n. 45/2006 sobre composição das Comissões Permanentes do CONADE; Portaria n. 119/2005 da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, que aprova Regimento Interno da I Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência; Resolução n. 4/2000, que normatiza a inclusão do portador de deficiência no mercado de trabalho; Resolução n. 8/2000, sobre medidas para incluir deficiente no sistema regular de ensino; Resolução n. 9/2000, que institui critérios para implantação de Conselhos Estaduais ou Municipais de Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência; Resolução n. 32/2005 do CONADE sobre solicitação ao Ministério da Saúde de estudo para revisão, adequação de procedimentos de reabilitação da pessoa portadora de deficiência; Resolução n. 28, de 14 de julho de 2006, do FNDE, que dispõe sobre os processos de adesão e habilitação e as formas de execução e prestação de contas, referentes ao Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado às Pessoas Portadoras de Deficiência (PAED); Decreto n. 4.360/2002 (ora revogado pelo Decreto n. 4.712/2003), que alterou o art. 36 do Decreto n. 1.744/95, sobre benefício de prestação continuada devido a pessoa portadora de deficiência, que é intransferível, não gerando direito à pensão. O valor não recebido em vida pelo be- 201 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il nefidário deverá ser pago aos seus herdeiros diretamente pelo INSS; Portaria n. 146/2003 da Procuradoria Geral Federal, sobre lotação de portador de deficiência no seu âmbito; Lei n. 10.845/2004, que institui o Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado às Pessoas Portadoras de Deficiência; Resolução n. 11/2004 do FND, que dispõe sobre os critérios e as formas de transferência e de prestação de contas dos recursos destinados à execução do Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado às Pessoas Portadoras de Deficiência (PAED); Lei n. 10.877/2004, que altera a Lei n. 7.070, de 20 de dezembro de 1982, que dispõe sobre pensão especial para os deficientes físicos; Lei n. 11.126/2005 (regulamentada pelo Decreto n. 5.904, de 21-9-2006) sobre direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambiente de uso coletivo acompanhado de cão guia; Lei n. 11.129/2005, art. 22, § 2a, assegura ao jovem portador de deficiência a participação no Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem) e o atendimento de sua necessidade especial. Decreto n. 5.626/2005, que regulamenta a Lei n. 10.436/2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras) usada por surdos e o art. 18 da Lei n. 10.098/2000; Decreto n. 5.645/2005 dá a seguinte redação ao art. 53 do Decreto n. 5.296/2004: "Art. 53. Os procedimentos a serem observados para implementação do plano de medidas técnicas previstos no art. 19 da Lei n. 10.098, de 2000, serão regulamentados, em norma complementar, pelo Ministério das Comunicações. (...)§ 3a A Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência — CORDE da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República assistirá o Ministério das Comunicações no procedimento de que trata o § Ia"; Decreto n. 6.039/2007 aprova o plano de metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo comutado em instituições de assistência às pessoas com deficiência auditiva; Consulta Pública n. 846, de 28 de novembro de 2007, da ANATEL, sobre proposta de Regulamento da Central de Intermediação de Comunicação telefônica a ser utilizada por pessoas portadoras de deficiência auditiva ou da fala. A Resolução n. 11/2007 do FNDE dispõe sobre processos de adesão e habilitação e as formas de execução e prestação de contas, referentes ao Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado às Pessoas Portadoras de Deficiência (PAED). O Decreto legislativo n. 186/2008 aprova texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. A Portaria n. 3.128, de 24 de dezembro de 2008, do Ministério da Saúde, define que as Redes Estaduais de Atenção à Pessoa com Deficiência Visual sejam compostas por ações na atenção básica e Serviços de Reabilitação Visual. A Resolução n. 304/2008 do Conselho Nacional de Trânsito dispõe sobre vagas de estacionamento de veículos que transportem pessoas portadoras de deficiência, com dificuldade de locomoção. Sobre prioridade de tramitação em todas as instâncias nos procedimentos judiciais em que portador de doença grave é parte: CPC, arts. 1.211- A, 1.211-B e 1.211-C (com a redação da Lei n. 12.008/2009). Sobre prioridade na tramitação, em qualquer órgão ou instância, em procedimentos administrativos em que pessoa portadora de deficiência física ou mental figure como parte ou interessada: art. 69-A, n, IV, e §§ Ia e 2a, da Lei n. 9.784/99, acrescido pela Lei n. 12.008/2009. A Lei n. 12.033/2009 toma pública e condicionada a ação penal em razão de injúria consistente no uso de elementos referentes à condição de pessoa portadora de deficiência. A Lei n. 12.190/2010 concede indenização por dano moral às pessoas com deficiência física decorrente do uso da talidomida. O Decreto n. 7.612/2011 institui o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência — Plano Viver Sem Limite. A Súmula n. 45/2009 da Advocacia Geral da União dispõe: "Os benefícios inerentes à Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência devem ser estendidos ao portador de visão monocular, que possui direito de concorrer, em concurso público, à vaga reservada aos deficientes". 202 Os pais, detentores de poder familiar, irão representar os filhos menores de 16 anos, ou assisti-los se maiores de 16 e menores de 18 anos (CC, arts. 1.634, V, e 1.690). Se se tratar de menor, que não esteja sob o poder familiar, competirá ao tutor representá-lo até os 16 anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo após essa idade, até que atinja a maioridade ou seja emancipado, nos atos em que for parte (CC, art. 1.747, I). E, em se tratando de maior declarado interdito por deficiência mental, por incapacidade de exprimir sua vontade por alcoolismo, toxicomania por desenvolvimento mental incompleto ou por prodigalidade, o seu curador, se for declarado absolutamente incapaz, irá representá-lo nos atos da vida civil, e se considerado relativamente incapaz, assisti-lo-á. Fácil é perceber que a curatela é um instituto de interesse público, ou melhor, é um munus público, cometido por lei a alguém para reger a pessoa e administrar bens de maior que, por si só, não está em condições de fazê-lo, em razão de enfermidade mental ou de prodigalidade62. C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o Aprendiz é o maior de quatorze anos e menor de vinte e quatro anos, mas esta idade máxima não se aplica a aprendiz portador de deficiência (Decreto n. 5.598/2005, art. 2S, parágrafo único). Deverão assistir ou representar os incapazes os pais (Lei n. 8.069/90, arts. 19 a 24, 155 a 163 e 169), os tutores (Lei n. 8.069/90, arts. 36 a 38, 24, 164 a 166, 169, 170 e 238) e os curadores (CC, art. 1.767). Vide v. 5 do nosso Curso, capítulo V. Competirá ao Ministério Público promover, de ofício ou por solicitação dos interessados, a especialização e inscrição de hipoteca legal e a prestação de contas dos tutores, curadores e administradores de bens de menor nas hipóteses do art. 98 (Lei n. 8.069/90, art. 201, IV). Vide ainda Lei n. 10.708, de 31 de julho de 2003, que instituiu o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações. Incapacidade não é o mesmo que vulnerabilidade, apesar de ambas indicarem posição desvantajosa em razão da falta de algum atributo. P. ex., o consumidor (pessoa capaz ou incapaz) é vulnerável perante o fornecedor, por não dispor dos mesmos recursos ou informações para contratar em pé de igualdade, daí a lei lhe fornecer alguns direitos, como, p. ex., o da inversão do ônus da prova (CDC, art. 6a, VIII) para neutralizar sua vulnerabilidade. Sobre o assunto: Fábio Ulhoa Coelho, Curso, cit., v. 1, p. 162. Súmula n. 45/2009, da Advocacia-Geral da União: "os benefícios inerentes à Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência devem ser estendidos ao portador de visão monocular, que possui direito de concorrer, em concurso público, à vaga reservada aos deficientes". 62. Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, v. 2, p. 321; Cahali, Curatela, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 22, p. 143; Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 5, p. 449. 203 O pressuposto fático da curatela é a incapacidade, de modo que estão sujeitos a ela os adultos que, por causas patológicas, congênitas ou adquiridas, são incapazes para reger sua própria pessoa e administrar seu patrimônio63. O M ero desse instituto é um só: a proteção da pessoa incapaz e de seu patrimônio de eventuais prejuízos. Isto é assim porque o doente, cedo ou tarde, poderá causar a si mesmo algum mal irreparável (RT, 160:187). A curatela visa constituir um poder assistencial ao incapaz maior, completando ou substituindo a sua vontade, protegendo essencialmente seus bens, auxiliando em sua manutenção e impedindo sua dissipação. Nesse sentido fica realçado o interesse público não só em não permitir que o incapaz seja levado à miséria, tomando-se um ônus para seus parentes, que, então, terão o dever de prestar-lhe alimentos (CC, arts. 1.694 e 1.697; RT, 546:103, 537:105 e 665:74 e RJTJSP, 62:34), provendo suas necessidades, visto que não teria meios de adquirir recursos materiais, que lhe possibilitem prover sua mantença, como também em resguardar direitos eventuais de seus herdeiros64. O pressuposto jurídico da curatela é uma decisão judicial, uma vez que gera uma capitis deminutio, pois o capaz passa a ser incapaz. A curatela é sempre deferida pelo juiz em processo de interdição, que visa apurar os fatos que justificam a nomeação de curador, averiguando não só se é necessária a interdição e se ela aproveitaria ao arguido da incapacidade, mas também a razão legal da curatela, ou seja, se o indivíduo é, ou não, incapaz de reger sua pessoa e seu patrimônio65. A interdição (Entmuendigung) atinge os que, em consequência de uma doença do espírito (Geisteskrankheit), não estão em condições de gerir seus negócios e sua pessoa66. O interdito perde o seu direito de própria atuação na vida jurídica, visto que a interdição é a desconstituição, total ou parcial, da capacidade negocial em virtude de sentença judicial, prolatada por constatar insanidade mental. T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 63. Consulte: Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, Rio de Janeiro, Forense, v. 5, p. 309, e Cahali, Curatela, in Enciclopédia, cit., p. 144-5. 64. Vide Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil, São Paulo, Atlas, 2000, v. 5, p. 346-8. 65. Vide Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 5, p. 405; Código Civil anotado, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 392. 66. Palandt, Bürgerliches Gesetzbuch, München, 1971, p. 12. 204 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o A interdição visa a curatela, que é imprescindível para a proteção e amparo do interditando (suposto incapaz no procedimento de apuração de sua incapacidade), resguardando a segurança social ameaçada ou perturbada pelos seus atos. Trata-se de intervenção que atende aos imperativos de ordem social. Daí a relevância ético-jurídica da interdição, protetora dos bens e da pessoa maior considerada incapaz67. A interdição é uma medida de proteção consistente em declarar, o poder judiciário, que em determinada pessoa não se verifica o pressuposto da plena capacidade para prover seus próprios negócios, falha que a inibe da prática de atos da vida civil68. Interdição é, portanto, o procedimento especial de jurisdição voluntária, mediante o qual se apura a capacidade ou incapacidade de pessoa maior de 18 anos. Constatada a incapacidade, decretar-se-á a proibição, absoluta ou relativa, para que o interditado pratique, por si, ato jurídico, bem como ser-lhe-á nomeado curador, que deverá representá-lo ou assisti-lo69. Ter-se-á uma tutela administrativa de interesses privados realizada pelo órgão jurisdicional, visto não ter por pressuposto uma situação contenciosa. Deveras, não havendo lide, não há partes, mas interessados que buscam o resguardo do patrimônio e da pessoa de quem se pede que seja decretada a interdição. Tanto isso é verdade que o estado curatelar pode ser permanente ou temporário, pois cessada a incapacidade, levanta-se a interdição e o curatelado readquire a sua plena capacidade70. É preciso ressaltar que a existência de relatório médico não suprirá a necessidade de se realizar prova pericial (RT, 675:174), pois quando o requerimento da interdição tiver como fundamento a alienação mental do interditando sempre haverá obrigatoriedade de exame pericial médico-psiquiátrico (CC, art. 1.771; RT, 725:133, 718:212; RJTJSP, 126:165), que avalie seu estado mental, apresentando laudo completo e circunstanciado da situação físico-psíquica do interditando, concluindo, ou não, pela existência de sua real incapacidade, sob pena de anulação do processo71. 67. Carvalho Santos, Código Civil comentado, 6. ed., v. VI, p. 363 e 389. 68. Vide Paulo de Lacerda, Manual de direito civil, coment. ao art. 447, II, p. 513. 69. Consulte: Débora Gozzo, O procedimento de interdição, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 3 (Coleção Saraiva de Prática do Direito, n. 19); RT, 418:120, 507:72; RJTJSP, 14:320. 70. Consulte: Débora Gozzo, O procedimento, cit., p. 13. 71. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria A. Nery, Código de Processo Civil comentado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 1422. 205 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il É preciso a realização desse exame pericial (CPC, arts. 1.181 e 1.183), visto que o juiz não é um expert, apesar de a audiência de interrogatório muito auxiliar na formação de seu convencimento ao indagar pessoalmente o interditando sobre fatos triviais como valor de dinheiro, conhecimento de fatos atuais, nomes de pessoas da família, dados sobre depósitos bancários, aquisição e venda de bens, situação de suas propriedades etc. O laudo pericial e o interrogatório judicial nada mais farão do que confirmar aquele relatório do médico neurologista72. O diagnóstico importa ao médico e ao juiz, pois o que lhes interessa é a preservação da vida social, que pode ser perturbada pela ação de alienados73. Embora, no âmbito do processo de interdição, por ser de jurisdição voluntária, não se possa falar em ação, nem em partes, aquelas noções deverão ser aplicadas supletivamente. Assim sendo, o titular do interesse é o legitimado ativamente para requerer a interdição (CC, art. 1.768) e o interditando (CC, art. 1.767) é o sujeito passivo desse pedido (CPC, arts. 1.177 e 1.178). São legitimados ativos para propor procedimento de interdição os genitores, o tutor, o cônjuge, ou qualquer parente e o Ministério Público (CC, art. 1,768, I, II e III). Essa enumeração é taxativa, mas não há obrigatoriedade de se seguir a ordem estabelecida legalmente. A grande dificuldade hermenêutica é delinear conceitualmente, quando se tratar da questão dá legitimidade ativa na interdição, as locuções "qualquer parente" (CC, art. 1.768, II) e "parente próximo" (CPC, art. 1.177, II),visto que, pela sua falta de técnica, levantam dúvidas74. Quais seriam os parentes que poderiam incluir-se nesta categoria? Pontes de Miranda75 censura a locução parente próximo e o mesmo se diga de "qualquer parente", por impossibilitarem que se perceba, legalmente, o seu significado e seu alcance. Há quem nelas inclua colaterais e afins sem qualquer restrição76; outros limitam sua abrangência, entendendo que a legitimidade para agir se estenderia apenas aos ascendentes, descendentes e irmãos. Por parente próximo ou por qualquer parente, na falta de critério seguro, não se deve entender que todos os parentes possam promover a interdição; a proxi72. Consulte: Débora Gozzo, O procedimento, cit., p. 43; Silvio de Salvo Venosa, Curso, cit., p. 356. 73. Clóvis Beviláqua, Código Civil comentado, v. 1, p. 148. 74. Pontes de Miranda, Direito de família, Rio de Janeiro, 1917, p. 434, nota 37. 75. Tratado, cit, v. IX, p. 339. 76. P. ex., Espínola Filho, Repertório enciclopédico do direito brasileiro, v. 14, p. 136. 206 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o midade deverá ser compreendida restritivamente. Por essa razão, a posição intermediária, mais aceitável, é que nela se incluem os parentes sucessíveis, abrangendo até o limite da ordem de vocação hereditária, ou seja, os colaterais até o 4a grau (CC, arts. 1.591, 1.592, 1.829, IV, e 1.839) sendo que os mais próximos excluem os mais remotos (CC, art. 1.840, I a parte). Excluídos estão, portanto, os afins (RT, 169:797; RF, 114:165). Deveras, em relação aos parentes afins, pondera Clóvis Beviláqua77 que "não há relação alguma de ordem jurídica, ainda que, na sociedade, haja aproximação entre as famílias, e, na linguagem comum, se encontrem expressões traduzindo este fato". Mas há quem ache que quando houver justificativa plausível, o genro poderia promover a interdição de sogro e cunhado a de cunhado78. Parece-nos que a lei (CC, art. 1.768, II, e CPC, art. 1.177, II) exige que, além de ser parente, este tenha para com o interditando laços de afetividade e proximidade, que o tornem capaz de saber dos motivos justificadores da medida pleiteada e de compreender sua conveniência79. Se assim é, apenas os que podem concorrer à sucessão do interditando teriam legitimidade ativa para promover sua interdição (RT, 539:149), visto que têm um vínculo de parentesco estreito e interesse moral, econômico e afetivo para requerer tal medida80. Parente próximo, ou qualquer parente, eqüivaleria a parente sucessível (EJTJRJ, 7:66), que seria o que por morte do interditando teria direito, parcial ou total, à sua herança, logo descendente, ascendente, em qualquer grau, e colaterais até o 42 grau poderão requerer a interdição. A locução parente próximo ou qualquer parente retira a possibilidade de estender o parentesco além dos limites estatuídos para a sucessão por força do disposto no Código Civil, arts. 1.768, II, 1.829, IV, e 1.839, e CPC, arts. 1.177, H, e 1.182, § 3a. O art. 1.182, § 3a, do Código de Processo Civil fala em parente sucessível e o art. 1.177, II, desse mesmo diploma legal em parente próximo, mas, na verdade, trata-se, tão somente, de uma mudança de nomenclatura, pois aquelas pessoas são as mesmas, ou seja, as incluídas nos arts. 1.829, IV, e 1.839 do Código Civil81. Logo, a interdição pode ser promovida pelo pai, mãe, tutor, 77. Clóvis Beviláqua, Código Civil comentado, 1951, v. 2, p. 297. 78. Sílvio de Salvo Venosa, Curso, cit., p. 354. 79. Nelson Nery e Rosa Maria A. Nery, Código de Processo Civil comentado, cit., p. 1418. 80. RJTJSP, 56:226, 50:119. Consulte, ainda: José Olympio de Castro Filho, Comentários, cit., v. 10, p. 208; Elio Fazzalari, La giurisdizione volontaria, Padova, CEDAM, 1953, p. 192; Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., v. 2, p. 325; Carvalho Santos, Repertório enciclopédico do direito brasileiro, v. 27, p. 342. 81. Vide Débora Gozzo, O procedimento, cit., p. 40. cônjuge, desde que não esteja separado judicial ou extrajudicialmente, ou, ainda, de fato há mais de dois anos, salvo prova de que essa convivência se tomara impossível sem culpa sua (CC, art. 1.830; RT, 176:743), faltando legitimação ao companheiro {RT, 494:187; em contrário: TJSP-Ac, 168326-1, j. 11-8-1992), por parente próximo sucessível, ou seja, colateral até o 4e grau, excluídos os afins (RT, 489:317, 524:98) e, ainda, pelo Ministério Público. Isto é assim porque tais pessoas têm interesse na interdição para a defesa do patrimônio do interditando, com o escopo de evitar sua dilapidação82. Qualquer parente próximo sucessível (descendente, ascendente ou colateral até o 4a grau) está legitimado a agir. No pleito requerido por um, poderá o outro intervir. Nã.o há hierarquia, pois, se a lei tivesse tal intentio, não teria sido preciso estabelecer que o Ministério Público só promoverá a interdição se não existir, não puder por incapacidade ou não promovê-la nenhuma das pessoas designadas nos incisos I e II do art. 1.768 do Código Civil (CC, art. 1.769, II e III). Estabelecidas essas premissas fundamentais inafastável é a conclusão de que, por exemplo, irmão, com plena capacidade civil (CPC, arts. 1.177, II, e 1.178, m), por ser parente próximo sucessível (colateral de 2- grau), pode, em busca da verdade real, postular a interdição de sua irmã, com progressivos distúrbios mentais, para que possa dirigir sua pessoa e cuidar de seus bens, poupando-lhe a desgraça de se ver, um dia, sem meios para a sua sobrevivência, provocada por sua atitude irresponsável, em razão de perturbação mental e de manipulação de certas pessoas, que abusam de sua confiança. Um irmão saberia, pelos laços afetivos e de estreito parentesco, mais do que ninguém, da necessidade ou conveniência da interdição, e como parente próximo sucessível está legitimado a promovê-la, e assim procederá por altruísmo, buscando amparar sua irmã solitária, em poder de empregados, doente física e psiquicamente e sem capacidade de raciocinar, querer e manifestar ideias. Exclui-se, portanto, o parente mais remoto, isto é, o que tem à frente um parente mais próximo da interditanda, em "virtude do grau de parentesco, no caso seu irmão (colateral de 2a grau). É a lição de José Olympio de Castro Filho83. Mas, entendemos que até mesmo o sobrinho (colateral de 3e 82. Vide Débora Gozzo, O procedimento, cit., p. 40 e s.; Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., v. 5, p. 309-11; Orlando Gomes, Direito de família, p. 449-50; Lacerda de Almeida, Direito de família, cit., p. 516; Eduardo S. C. Sarmento, A interdição no direito brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 1981. 83. José Olympio de Castro Filho, Comentários, cit., v. X, p. 208. 208 grau), se quisesse, poderia movê-la, pois, como nos ensina Alcides de Mendonça Lima84, "não nos parece haver inconveniente que, em face da inércia do parente sucessível mais próximo, outro, mesmo inferior, possa promover a interdição, em benefício do próprio interditando". A iniciativa da interdição é, para os parentes próximos sucessíveis, um direito fundado no interesse pessoal; é, principalmente, um dever moral de afeição e solidariedade familiar. Dever esse que, muitas vezes, se pode tornar sancionado, interpretando-se a abstenção como um ato de ingratidão, caracterizado pela falta de cuidados85. Para postular interdição de parente, basta comprovar pela certidão do termo de nascimento o grau de parentesco com o interditando. Como se vê, a interdição não é um ato contra o interditando, mas em seu próprio benefício, visto que, se decretada, os bens do curatelado apenas poderão ser alienados em hasta pública, desde que haja vantagem na venda ou arrendamento e sempre mediante autorização judicial (CC, arts. 1.750 e 1.774; RF, 240:200; RJTJSP, 11:117 e 80:36; RT, 550:155). O pronunciamento judicial na jurisdição voluntária não tem o caráter de sentença, embora o usus fori e a lei assim a denominem. Na verdade seria uma decisão administrativa, pois a sentença é ato jurisdicional, pressupondo, por isso, uma situação litigiosa a ser resolvida, mediante julgamento da pretensão deduzida com a ação proposta86. Já Edson Prata87 entende que no procedimento de interdição há sentença como no de jurisdição contenciosa, uma vez que a lei (CPC, art. 1.184) utiliza o termo sentença para exprimir a decisão final tanto em jurisdição contenciosa como em voluntária. Empregamos, aqui, o vocábulo sentença para decisão que decretar a interdição. A sentença áeclaratória é a que declara a existência ou a inexistência de uma relação jurídica, produzindo efeito ex tiinc, isto é, retroage à época em C u r s o d e D ír e i t o C iv il B r a s i l e ir o 84. Mendonça Lima, Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. XII, p. 435. 85. Pandettes belges, v. 54, p. 164, apud Paulo de Lacerda, Manual, cit., p. 514. 86. É o que nos ensina José Frederico Marques, Ensaio sobre jurisdição voluntária, São Paulo, Saraiva, 1959, p. 305. No mesmo teor de ideias: Alfredo de Araújo Lopes da Costa, A administração pública e a ordem jurídica privada, Belo Horizonte, Ed. B. Alvares, 1961, p. 120, e Débora Gozzo, O procedimento, cit., p. 52. 87. Edson Prata, Jurisdição voluntária, São Paulo, Leud, 1979, p. 310 e 311. 209 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil que se formou aquela relação88. A sentença constitutiva é a que declara a existência de uma relação ou situação jurídica preexistente, criando, modificando ou extinguindo-a, tendo efeito ex nunc (RT, 163:656; RF, 112:458), e, excepcionalmente, pode produzir efeito ex tunc nos casos previstos em lei. A sentença conáenatória declara um direito e comina uma sanção89. Qual seria a natureza jurídica da sentença em processo de interdição? E qüais seriam seus efeitos? Essa sentença, sob o ângulo do direito substantivo, é âeclaratória, uma vez que não faz mais do que confirmar a suposição de incapacidade, contendo o reconhecimento judicial de uma situação fática, que dá causa à anomalia psíquica, sem aqui mencionar a questão processual alusiva ao momento da eficácia da sentença de interdição, pois assim que prolatada produz efeito desde logo (ex nunc), apesar de sujeita a recurso, que tem efeito apenas devolutivo (CC, art. 1.773; CPC, art. 1.184; RT, 310:748; RF, 149:313). Os efeitos imediatos à prolação da sentença não se suspendem com a interposição, dentro de 15 dias da sua publicação, de recurso de apelação (CPC, art. 1.184 c/c o art. 513), pois o interesse público e privado que tutela não poderiam ser resguardados, se houvesse suspensão de seus efeitos até nova decisão. A sentença de interdição tem execução provisória e, se for reformada em instância superior, os atos praticados entre curador e terceiro, durante a pendência do recurso interposto, são válidos, pois se deram na vigência da interdição90. Deveras, sob o prisma processual, o efeito da sentença de interdição é, em regra, ex nunc, por inserir-se na categoria das sentenças constitutivas (CPC, art. 1.184), por submeter o insano ao regime curatelar, modificando sua esfera jurídica, pois, a partir dela, ficará impossibilitado de reger sua pessoa e de administrar seus bens91. 88. Moacyx Amaral Santos, Primeiras linhas, cit., v. 3, p. 30 e 31. 89. Moacyr Amaral Santos, Primeiras linhas, cit., v. 3, p. 32. 90. Consulte: Débora Gozzo, O procedimento, cit., p. 60; Vicente Greco Filho, Direito processual civil brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1985, v. 2, p. 273. 91. Produz efeitos após a prolação e inscrição no Registro de Pessoas Naturais (Lei n. 6.015/73, arts. 104 e s.) e publicada por três vezes pela imprensa local e pelo órgão oficial, com intervalo de 10 dias (CPC, art. 1.184, 2- parte). Tais medidas servem para que tenha eficácia erga omnes. Consulte: Pontes de Miranda, Comentários ao Código áe Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1979, t. 16, p. 393; Konrad Hellwig, Lehrbuch des deutschen Zivilprozessrecht, Leipzig, 1903, v. 1, p. 52, §§ 9 e 8, "b"; Goldschmidt, Zivilprozessrecht, Berlin, 1932, p. 262, § 75; Moacyr Amaral Santos, Primeiras linhas, cit., v. 3, p. 34; Edson Prata, Jurisdição voluntária, cit., p. 317; Lopes da Costa, A administração, cit., p. 121; Giuseppe Chiovenda, Principii di diritto processuale civile, Napoli, Jovene, 1965, p. 186 e 1262, e Débora Gozzo, O procedimento, cit., p. 55. 210 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o Mas, apesar disso, pode-se também afirmar que sua natureza é declaratória, porque não cria, convém repetir, a incapacidade, decorrente de fato apurado no processo92. Por isso, a sentença de interdição tem natureza mista, sendo, concomitantemente, constitutiva e declaratória. Temos constitutividade do regime curatelar e declaratividade da existência do pressuposto que o justifica. Realmente, não cria ela a incapacidade do insano, esta nasce da demência ((quaestio facti), confirma tão somente a suposição de quem a promoveu, acautelando interesses de terceiros, interditando o incapaz e providenciando sobre sua pessoa e bens. Logo, é constitutiva com eficácia declaratória, produzindo efeito ex tunc. Não deixa de ser declaratória não no sentido de que todas as sentenças o são, mas no de declarar a incapacidade de que o interditando é portador. Mas é, ao mesmo tempo, constitutiva de uma nova situação jurídica quanto à capacidade da pessoa que, então, será considerada legalmente interditada93. A sentença que decretar a interdição colocará a pessoa e os bens do interditando, por não ter condições de reger a si próprio e de administrar seu patrimônio (RT, 529:80), sob a direção de um curador, que velará por ele, exercendo seu inunus público pessoalmente (A], 101:91), conforme seja a curatela plena óu limitada (RT, 488:72). Logo, após sua prolação, por confirmar a suposição de incapacidade, nulos ou anuláveis serão os atos praticados pelo interdito, sem a representação ou assistência do seu curador (RT, 468:112), conforme a gradação de sua interdição. Nesse caso a sentença produz efeito ex nunc. Os atos praticados depois da sentença são nulos ou anuláveis de pleno iure (RT, 468:112), conforme seja o interdito considerado absoluta ou relativamente incapaz, sem qualquer dependência de provas de efetiva insanidade, cuja pressuposição é consequência daquela decisão, diante da presunção juris et de jure (EJTJRJ, 7:166), visto que o fim principal da interdição declarada foi, exatamente, constituir essa prova erga omnes. Todavia, é possível invalidar ato negocial praticado, por alienado mental, antes da sua interdição, desde que no processo de jurisdição voluntária, a que se submeteu, se comprove a existência de sua insanidade, por ocasião 92. Vide a lição de Eduardo S. Sarmento, A interdição no direito brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 83. 93. Vide Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, cit., t. IX, p. 346, e Gildo dos Santos, Interdição, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 45, p. 259-61. 211 da efetivação daquele ato. Hipótese em que a sentença de interdição produzirá efeito ex tunc94. No nosso entendimento, portanto, ante a natureza constitutivo-declaratória da sentença, se ficar provada, no processo de interdição, a existência da incapacidade ao tempo da efetivação de certos negócios, ela retroagirá ex tunc, podendo tomar nulos ou anuláveis aqueles atos, anteriores a ela, praticados pelo interditado, conforme for o seu grau de incapacidade. Para os que consideram apenas a natureza constitutiva da sentença de interdição, esta, por não produzir efeito ex tunc, não alcançará, ipso iure, os atos praticados antes dela pelo incapaz, por depender de ação de anulação desses negócios. Para esses autores, a sentença de interdição é oponível contra todos para o futuro, não podendo atingir os que, anteriormente, contrataram com o incapaz, mas os atos levados a efeito pelo interdito, antes dela, somente poderão ser declarados anuláveis, mediante prova de que se efetuaram numa fase em que já se delineava a insanidade mental, apesar de não declarada judicialmente95. Já José Carlos Barbosa Moreira96 afirmou a nulidaãe, não a mera anulabilidade dos atos praticados anteriormente à sentença, desde que comprovada a preexistente incapacidade natural. Pondera ele: "é decerto a'-condição jurídica desses atos, praticados antes da interdição, que impressiona muitos espíritos e os leva a inferências precipitadas. Se já existia a alienação mental, os atos devem reputar-se nulos, como atos de incapaz que são; não apenas anuláveis, conforme aqui e ali se tem dito. A diferença entre esses e os praticados, por si mesmo, pelo interdito, não está nem na condição jurídica, que é igual (nulidade), nem no respectivo fundamento, que é sempre o mesmo (incapacidade), mas exclusivamente na circunstância de que, quanto aos atos anteriores, e só quanto a eles, se faz necessária a proT e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 94. A título ilustrativo consulte: RF, 81:213,152:176; RTJ, 102:359; RT, 224:137, 280:252, 415:358, 483:71, 489:75, 505:82, 503:93, 506:75, 539:149 e 182. 95. Vide Agi 40.517-SP, Ia T„ STF, rei. Min. Djaci Falcão, j. 5.6.67; RE 76.354-SP, STF; Paulo de Lacerda, Manual, cit., p. 523 a 526: Silvio Rodrigues, Direito civil, São Paulo, Saraiva, 1985, v. 6, p. 418; Débora Gozzo, O procedimento, cit., p. 69; Clóvis Beviláqua, Código Civil comentado, 11. ed., v. 2, p. 352; Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, 1934, v. 6, p. 402; Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, Rio de Janeiro, Forense, 1979, v. V, p. 310; Mendonça Lima, Comentários ao Código de Processo Civil, cit., v. XII, p. 470. 96. Barbosa Moreira, Eficácia da sentença de interdição por alienação mental, Ajuris, 37:238. 212 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o va de que já existia a anomalia psíquica — causa da incapacidade — no momento em que se praticaram"97. Esse é também o pensamento de Pontes de Miranda98, que assim escreve: "A sentença de interdição, se bem que constitutiva, não cria a incapacidade, que começa do motivo legal que a promoveu — a alienação mental. A capacidade natural de raciocinar, de querer e de manifestar normalmente as ideias e as volições constitui a base da capacidade legal: desde que aquela falta, esta não poderá existir... A única diferença entre a época anterior e a atual da interdição ocorre apenas quanto à prova da nulidade do ato praticado. Para os atos anteriores, é necessário provar que então já subsistia a causa da incapacidade. Os atos posteriores, praticados na constância da interdição, levam consigo, sem necessidade de prova, a eiva da nulidade". É preciso não olvidar que nada obsta que em ação que não a de interdição se alegue, comprovadamente, que a pessoa era portadora de anomalia psíquica, para invalidar ato negocial por ela praticado99. A esse respeito já se decidiu que: "1. Incapacidade. Anulabilidade de escritura de transmissão de direitos sobre imóvel, por motivo de incapacidade da transmitente, não depende de prévia interdição, se a incapacidade, além de notória, era conhecida do outro contraente. 2. Prova de pagamento; documentos que se combinam, inclusive declaração em escritura, comprovam o pagamento. 3. Para simples reexame de provas não cabe recurso extraordinário" (RE 88.916, j. 14-8-1979, RTJ, 91:275). Na doutrina e na jurisprudência há, ainda, tese, que assim pode ser resumida: "Sendo a alienação um fato, são anuláveis os atos praticados pelo demente, esteja ou não declarada juridicamente a interdição"100. "Após a interdição, os atos praticados pelo interdito são nulos. Também não têm valor todos aqueles atos que, posto realizados antes da decisão judicial, foram executados quando o agente já era incapaz, ainda que 97. No mesmo teor de ideias: Eduardo S. Castanheira Sarmento, A interdição no direito, cit., p. 90. 98. Pontes de Miranda, Direito de família, São Paulo, Max Limonad, v. III, § 295; Tratado de direito privado, t. IX, p. 347, e Comentários ao Código de Processo Civil, t. XVI, p. 393. 99. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil de 1939, v. 3, p. 393 e 394; Tratado de direito privado, cit., v. IX, p. 347; Carvalho Santos, Código Civil, v. 1, p. 263. 100. Clóvis Beviláqua, Direito de família, cit., § 89, nota 2. No mesmo sentido: RTJ, 82:213. 213 não declarado como tal pelo Poder Judiciário" (Ap. s/Rev. 284.050, 7- Câm. do 2S TACSP, rei. Juiz Gildo dos Santos, j. 6-2-1991). Tanto no direito nacional como no alienígena (CC francês, art. 503; Lei Francesa de 13-1-1968 e CC italiano, art. 428), quem invocar doença mental para invalidar ato jurídico tem o ônus de provar não só a incapacidade no momento da realização do ato, deduzindo fatos idôneos para que se possa tirar uma ilação precisa sobre o estado mental no momento da formação do negócio101, mas também do proveito tirado indevidamente pela parte contrária (RF, 81:396). Tal solução não se situa apenas na seara do direito positivo, mas encontra eco na opinião dos mais ilustres juristas. Já houve julgados no sentido de que: "São nulos os atos praticados pelo alienado anteriormente a interdição, desde que demonstrada a contemporaneidade do ato com a doença mental geradora da incapacidade" (RE 82.311, j. l a-4-1977, RTJ, 82:213). "Incapacidade natural da pessoa. Provada a incapacidade natural da pessoa, no momento em que prestou o consentimento, nula é a declaração de vontade e, consequentemente, o ato jurídico realizado, mesmo que tenha sido anteriormente à sentença de interdição" (JTARS, 34:310). "São nulos os atos praticados pelo alienado anteriormente à interdição, desde que demonstrada a contemporaneidade do ato com a doença mental geradora da incapacidade. Demência senil comprovada pela própria natureza dos atos praticados e as circunstâncias do processo" (RE 95.366, j. 13-4- 1982, RTJ, 102:359. No mesmo sentido: RTJ, 83:425, 82:231 e 91:275). Entendemos que quem invocar doença mental para invalidar ato negocial deve provar a incapacidade de entender e querer no momento da realização daquele ato. A causa da incapacidade é a anomalia psíquica e não a sentença de interdição; esta tão somente declara um fato preexistente, que lhe dá causa. Os atos anteriores a ela serão anuláveis ou nulos, se se provar, no processo de interdição ou em outra ação, que ao tempo em que foram efetivados já subsistia a causa da incapacidade relativa ou absoluta. Assente o vício da nulidade relativa ou absoluta dos atos praticados antes da sentença por agente comprovadamente incapaz, indaga-se: A declaraT e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 101. Emilio Betti, Teoria geral do direito, 1969, v. 2, p. 28. 214 ção de invalidade exigiria também a má-fé do outro contratante? Deveria ele, ou não, ter ciência da incapacidade do agente? A boa-fé ou má-fé do outro contratante seria, ou não, irrelevante no plano da validade daqueles atos? Já se decidiu que "para resguardo da boa-fé de terceiros e segurança do comércio jurídico, o reconhecimento de nulidade dos atos praticados anteriormente à sentença de interdição reclama prova inequívoca robusta e convincente da incapacidade do contratante" (STJ, 4â T., RE 9.077-RS-rel. Min. Sálvio de Figueiredo). Mas, se a alienação mental era notória, se o contratante podia, com diligência ordinária, apurar a deficiência da outra parte, o negócio é suscetível de invalidação, pois a ideia de proteção à boa-fé de terceiro não mais se manifesta102. O que realmente importa, no nosso entender, é a inteligência, a volição e a compreensão, pois fundamentarão a declaração de vontade livre e espontânea, não sendo tão relevante a questão da boa-fé ou da má-fé do contratante. Se a pessoa, com quem se contrata, não tem entendimento do ato, ou se seu consentimento foi viciado, em nada interfere, pelo menos quanto à validade do ato, o fato de o outro contratante estar de boa-fé (RJTJRS, 79:186). "Decretada a interdição, é indiscutível que a partir desse pronunciamento, surge a suspeita de que a doença mental existia anteriormente, e este pormenor pode ser provado por qualquer meio, inclusive pela perícia feita no processo de interdição. O laudo, em que se fundar a sentença de interdição, pode esclarecer o ponto, isto é, afirmar que a incapacidade mental do interdito já existia em período anterior" (1- T. do STF, j. 30-8-1977, RTJ, 83:425), para fins de invalidação de atos anteriores à interdição. Logo, os atos praticados pelo interditando, anteriormente ao processo de interdição, poderão ser invalidados se ficar comprovada, nesse procedimento ou em outra ação, a existência de sua demência senil no momento em que os efetivou. Dúvida não há de que o interditando prejudicado deveria ter, em ação judicial, garantido não só o seu direito de invalidar as alienações feitas, mas também a indenização pelos prejuízos que teve, em cumulação de pedidos. A sentença lançará, então, os atos negociais do interditando no mundo do não ser, porque, além de ser incapaz, sofreu dolo, lesão e fòi vítima de atos C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o 102. Elício de Cresci Sobrinho, Interdição de direito, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 45, p. 268-71. 215 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il sem direito. A eficácia dos atos anulados será ex nunc, mas a da sentença anulatória é ex tunc103. Se a justiça, o bom-senso e o direito militam em favor da pretensão de se anular os atos praticados pelo interditando, esta deverá ser acolhida pelo Judiciário, diante dos fatos que os cercaram. Neste nobile officium não poderá o aplicador vincular-se, estritamente, ao teor lingüístico dos documentos assinados pelo interditando, mas investigar os fatos contemporâneos e os supervenientes aos atos negociais104. Será preciso proteger o portador de moléstia físico-psíquica, tutelando seus direitos e interesses legítimos, ressarcindo-o de todos os prejuízos sofridos. Outro não poderia ser o nosso entendimento, pois em que pesem as opiniões contrárias à nossa, parece-nos que o conhecimento científico-jurídico deve apreender lógica e coerentemente os dados normativos, fáticos e valorativos, para garantir a segurança e a aplicabilidade do direito. Não se poderia olvidar que, para uma correta interpretação, dever-se-ia preferir aquela que, por seu melhor resultado, correspondesse às circunstâncias105. Além disso, há várias medidas tutelares, determinadas por norma, para defender os interesses dos incapazes. Dentre elas: 1) não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes (CC, art. 198, I); 2) o mútuo feito a menor não pode ser reavido (CC, art. 588), salvo nos casos do art. 589; 3) pode o menor ou o interdito recobrar dívida de jogo, que voluntariamente pagou (CC, art. 814, in fine); 4) ninguém pode reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não provar que reverteu em proveito dele a importância paga (CC, art. 181); 5) partilha em que há incapazes não pode ser convencionada amigavelmente (CC, art. 2.015); 6) constitui circunstância agravante ter sido o crime cometido contra criança, maior de 60 anos (Lei n. 10.741/2003), enfermo (CP, art. 61, II, h) ou mulher grávida; 7) configura delito de abuso de incapazes valer-se, em proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou inexperiência de menor, ou de alienação ou debilidade mental de outrem, induzindo qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro (CP, art. 173); 8) os menores de 18 e maiores de 16 anos poderão, pessoalmente, isentos de 103. Consulte: Pontes de Miranda, Tratado, cit., v. IV, p. 34-41; Chrisüans, Über die sogen relative Nichtigkeit der Rechtsgeschãftes, p. 20. 104. Consulte: Betti, Interpretazione delia legge e degli atti giiiridici, Milano, 1949, §§ 69 e s. 105. É o ensinamento de: Demburg, Das Bürgerliche Recht, I, § 150; II; Von Tuhr, DerAllgemeine Teil, III, p. 274. 216 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e i r o multa, requerer o registro de seu nascimento (Lei n. 6.015/73, art. 50, § 3a); 9) a perda ou suspensão do poder familiar, e conseqüente colocação do menor em família substituta ou tutela, comprovada uma das causas previstas nos arts. 1.637 e 1.638 do Código Civil e no art. 24 da Lei n. 8.069/90 (Lei n. 8.069/90, arts. 161, § I a, 166, §§ Ia a 7a, e CC, art. 1.734), decretada por sentença, que deverá ser averbada à margem do registro de nascimento da criança e do adolescente (Lei n. 8.069/90, art. 163 e parágrafo único, acrescentado pela Lei n. 12.010/2009); 10) a possibilidade de ser colocado, sendo criança e adolescente, em caso de não poder permanecer na família natural, sob adoção, tutela ou guarda (Lei n. 12.010/2009, art. 2a) etc.106. Nosso Código Civil de 1916, no seu art. 8a, extinguiu o instituto da restituição in integrum, que era um remédio judiciário de caráter extraordinário, pelo qual o menor, lesado em seus direitos, pleiteava a devolução do que pagou, quando o ato lesivo era válido, por ter sido praticado de acordo com as formalidades legais. Isto era assim porque, se o ato apresentasse vício, o remédio ordinário era a ação de nulidade, que o desfazia, retirando- -o do cenário jurídico107. Realmente, dispunha que: "na proteção que o Código Civil confere aos incapazes não se compreende o benefício da restituição" (CC de 1916, art. 8a); com isto o aboliu, tentando não só proteger a segurança dinâmica do negócio ou ato jurídico, evitando que ele pudesse ser desfeito, apesar de válido108, mas também respeitar os direitos adquiridos, para favorecer, de certa forma, a circulação dos bens e o organismo econômico da sociedade109. Se houver um conflito de interesses (p. ex., alienação de bens, questão financeira etc.) entre o absolutamente incapaz e seu representante, ou entre o relativamente incapaz e seu assistente, será imprescindível que o juiz 106. A Lei n. 8.069/90 (com as alterações da Lei n. 12.010/2009) contém uma série de medidas especiais de proteção à criança e ao adolescente, que examinamos no nosso Curso de direito civil brasileiro, nos v. 5 e 7, inclusive quando for vítima de violência ou abuso sexual (art. 101, § 22, acrescentado pela Lei n. 12.010/2009). W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 68; Silvio Rodrigues, op. cit., v. 1, p. 83. 107. Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 83; Ferreira Coelho, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, 1922, v. 4; Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis, arts. 12, 13 e 14; Carlos Carvalho, Nova Consolidação das Leis Civis, arts. 113 e s.; Clóvis, op. cit., § 12, p. 99 e s. 108. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 291. 109. Clóvis Beviláqua, Comentários ao Código Civil, v. 1, p. 191; Sílvio de S. Venosa, op. cit., p. 134. 217 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C i v il nomeie um curador especial, em favor do menor, para protegê-lo (Lei n. 8.069/90, art. 148, VII, parágrafo único, f, CC, art. 1.692). c.5. Cessação da incapacidade A incapacidade termina, em regra, ao desaparecerem as causas que a determinaram. Assim, p. ex., no caso da loucura ou da toxicomania, da surdo- -mudez, da prodigalidade, cessando a enfermidade físico-psíquica que as determinou110. Convém lembrar que, pela Lei n. 6.015/73, art. 104, deverá ser feita a averbação: das sentenças que puserem termo à interdição, da cessação ou mudança de internações e da cessação de ausência pelo aparecimento do ausente. Em relação à menoridade, a incapacidade cessa quando: 1) o menor completar 18 anos, segundo nossa legislação civil (CC, art. 5fl, caput), pois o dado jurídico de que aos 18 anos se adquire a maioridade ou aptidão para exercer os atos da vida civil encerra um conteúdo contingente; não se infere, realmente, nenhuma necessidade nesse conteúdo, e a lei poderia ter estabelecido que para tanto bastava que o indivíduo completasse 20, 21 (como estabelecia o CC brasileiro de 1916) ou 25 anos. Esse limite é uma simples manifestação da vontade legislativa. P. ex.: o CC argentino (art. 126) e o português prescrevem 18 anos; o suíço (art. 14) estabelece o limite de 20 anos; o espanhol, 23 anos (art. 320); o chileno, 25 anos (art. 266). O italiano (art. 2a) estatui a idade de 21 anos para que o indivíduo seja plenamente capaz. O novo Código Civil antecipa a maioridade para 18 anos, com isso os jovens passarão a ter responsabilidades perante terceiros pelos danos que lhes causarem, além de poderem, por si sós, praticar validamente atos da vida civil, sem qualquer assistência do representante legal. Tal se deu diante da presunção de que, pelas condições do mundo moderno e pelos avanços tecnológicos dos meios de comunicação e da informática, a pessoa já tem, ao completar aquela idade, experiência de vida, em razão da aquisição de uma maior formação cultural, responsável pela celeridade, pela precocidade do seu desenvolvimento físico-mental, trazendo, com isso, o discernimento necessário para a efetivação de atos negociais, podendo até mesmo casar, independentemente de autorização do representante legal. Além disso fazia-se necessária uma uniformização, visto que se com 18 anos se tem maioridade 110. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 291. 218 criminal, trabalhista e eleitoral, por que não adquirir a civil? Essa alteração normativa relativa à maioridade veio a atingir outros institutos como, por exemplo, o da adoção, fazendo com que a idade permitida para adotar criança caia para 18 anos, apesar de que o adotante deva ser 16 anos mais velho que o adotado. Sem embargo das vantagens advindas do rebaixamento da maioridade civil de 21 para 18 anos, algumas desvantagens poderão ser apontadas, como: não intervenção do Ministério Público nas ações que envolverem pessoas com 18 anos, na qualidade de curador de incapaz; cessação do direito de continuar percebendo pensão alimentícia, salvo se dela precisar (CC, art. 1.696); assunção de responsabilidades como o dever de autossustento, de pagamento dos débitos por ele assumidos e de reparar os danos causados a terceiros, sejam eles morais ou patrimoniais, visto que seus pais não mais terão qualquer responsabilidade subsidiária, ou mesmo solidária, com isso as vítimas de seus atos poderão ficar sem indenização por falta de recursos, pois dificilmente terá bens para responder pelos prejuízos acarretados; gerenciamento de negócios; administração de seu patrimônio etc. Será que o jovem de 18 anos teria mesmo, apesar de bem informado, condições objetivas para arcar sozinho com tantas obrigações e responsabilidades111? 2) Houver emancipação pelas formas previstas no art. 5ffl, parágrafo único112: C u r s o d e D ir e i t o C i v i l B r a s i l e ir o 111. Lafayette (Direito de família, § 119) ensinava-nos que a plenitude da capacidade civil advinda da cessação da menoridade não vigorava em nosso direito pré-codiflcado, pois sob a influência do direito romano mantinha-se o indivíduo sob a tutela perpétua e assistência paterna; considerava-se que a maioridade, por si só, não era hábil a atribuir a plenitude do exercício dos direitos; o indivíduo, mesmo maior, continuava sob o pátrio poder, que vinha a cessar com o casamento, o estabelecimento comercial com economia própria, o recebimento de ordens sacras, a colação de grau acadêmico, e ainda por sentença judicial. Vide Carlos Roberto Gonçalves, Inovações do Projeto do Código Civil, Rev. da Escola Paulista de Magistratura, n. 4, 1998, p. 44- 6. Pelo Enunciado n. 3 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, aprovado na Jornada de Direito Civil, em 2002: "A redução do limite etário para definição da capacidade civil aos 18 anos não altera o disposto no art. 16, inc. I da Lei n. 8.213/91, que regula específica situação de dependência econômica para fins previdenciários e outras situações similares de proteção, previstas em legislação especial". Os alimentos (CC, art. 1.696) serão devidos entre parentes, comprovada a necessidade do alimentando, sem qualquer limite de idade, ante os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar (RJTJSP, 21:198). Até os 21 anos os filhos podem ser considerados, para fins tributários, dependentes de seus genitores (Instrução Normativa SRF n. 15, de 6-2-2001, art. 3 8 ,1, III, IV e V). 112. No direito anterior só poderia a emancipação ser proclamada por sentença judicial (Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 250). Clóvis (op. cit., p. 161) define a emancipação como a aquisição da capacidade civil antes da idade legal. ADCOAS, n. 89908, 1983; RT, 451:71; RJ, 137:64. 219 a) concessão dos pais (CC, ait. 1.631 e parágrafo único) em ato conjunto, ou de um deles na falta do outro (óbito, suspensão ou destituição do poder familiar), mediante instrumento público inscrito no Registro Civil competente (Lei n. 6.015/73, arts. 29, IV, 89 e 90; CC, arts. 9a, II, 166, IV), independentemente de homologação judicial (emancipação voluntária), ou por sentença do juiz, ouvido o tutor (emancipação judicial; CPC, arts. 1.103 a 1.112, I; CC, art. 1.763, I; Lei n. 8.069/90, art. 148, VII, parágrafo único, e; RF, 197:247); em ambas as hipóteses o menor terá de ter 16 anos completos. Também nesse caso, pela Lei n. 6.015/73, art. 91 e parágrafo único, o juiz ao conceder emancipação deverá comunicá-la, de ofício, ao oficial do registro, se não constar dos autos haver sido efetuado este dentro de 8 dias, pois cabe ao interessado promover tal registro, já que antes dele a emancipação não produzirá efeito (CC, art. 9a, II)113; b) casamento, pois não é plausível que fique sob a autoridade de outrem quem tem condições de casar e constituir família114; assim, mesmo que haja anulação do matrimônio, viuvez, separação ou divórcio, o emancipado por esta forma não retoma à incapacidade; c) exercício de emprego público, por funcionários nomeados em caráter efetivo (não abrangendo diaristas e contratados), com exceção de funcionários de autarquia ou entidade paraestatal, que não são alcançados pela emancipação115. Mas há quem ache que servidor de autarquia, fundação pública e paraestatal tem cessada a incapacidade. Quem exercer função pública em cargo de confiança, em comissão, ou interinamente, ou, ainda, em T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 113. W. Barros Monteiro (op. cit., v. 1, p. 71) esclarece que se pode denegar a emancipação: a) se através dela se colima outro fim que não seja o interesse do emancipado (RT, 197:247); b) se este não possui o necessário discernimento para reger sua pessoa e administrar seus bens (RT, 134:138; RF, 195:243); c) se o emancipado não fundamenta o pedido e ignora fatos essenciais sobre seus haveres, como a qualidade e quantidade (RT, 287:289, 298:171); d) se a emancipação é requerida com a exclusiva finalidade de liberar bens clausulados até a maioridade (RT, 179:791). As emancipações voluntária e judicial deverão ser registradas em livro próprio do Ia Ofício do Registro Civil da Comarca do domicílio do menor (CC, art. 9a, II; LRP, arts. 91, parágrafo único, e 107, § Ia). Se a concessão patemo-matemal se impossibilitar por falta de acordo dos genitores, a emancipação poderá dar-se com o suprimento judicial (CC, arts. 1.638, parágrafo único, 1.517 e 1.519). Consulte: João Teodoro da Silva, Poder familiar: emancipação de menor pelos pais e art. 1.631 do Código Civil, Revista Brasileira de Direito de Família, 26:144. 114. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 71; RT, 182:743. 115. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 72; RT, 98:523; RF, 161:713; Súmula 14 do STF; Leis n. 1.711/52, art. 22, II; 8.112/90, arts. 3B, 5a, V, e 9a. Efetividade não é estabilidade, pois esta só se adquire depois da efetividade. 220 razão de contrato temporário (CF, art. 37, IX; Lei n. 8.112/90, arts. 3a e 9a), não adquirirá capacidade. Diarista e contratado não serão emancipados por força de lei (RF, 161:713; RT, 98:523; Súmula 14 do STF e Lei n. 1.711/52, art. 22, II; Lei n. 8.112/90, art. 5a, V). O exercício de emprego público efetivo gera presunção de um grau de amadurecimento incompatível com a manutenção da incapacidade; d) colação de grau em curso de ensino superior, embora, nos dias atuais, dificilmente alguém se emancipará por essa forma, dada a extensão do ensino médio e superior (RF, 161:713); e) estabelecimento civil (p. ex., exposição de obra de arte numa galeria, por artista plástico menor, que, por isso, recebe remuneração) ou empresarial (p. ex., compra de produto feita por menor para revenda, obtendo lucro) ou pela existência de relação de emprego (p. ex., prática de desporto profissional ou atuação como artista em emissora de televisão ou rádio), desde que, em função deles, o menor com 16 anos completos tenha economia própria, conseguindo manter-se com os rendimentos auferidos, sendo, portanto, injustificável a manutenção de sua incapacidade e de um poder familiar, porque é sinal de que a pessoa tem amadurecimento e experiência, podendo reger sua própria pessoa e patrimônio, sendo ilógico que para cada ato seu houvesse uma autorização paterna ou materna116. A emancipação legal funda-se nos casos arrolados nos incisos II a V, do parágrafo único do art. 5a. Pelo art. 73 da Lei n. 4.375/64, reproduzido pelo Decreto n. 57.654/66, art. 239: "Para efeito de serviço militar cessará a incapacidade civil do menor na data em que completar 17 anos". C u r s o u e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o 116. RT, 117:565; Silvio Rodrigues, op. cit., v. 1, p. 89; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 72; Fábio Ulhoa Coelho, Curso, cit., v. 1, p. 168; Rubens Requião, Curso de direito comercial, São Paulo, Saraiva, 1998, v. 1, p. 85-6; Fabricio Matiello, Código Civil comentado, São Paulo, LTr, 2003, p. 26. Vide CLT, arts. 439, 440, 428, 58-A; CC, art. 198,1; Lei de Falências, art. 75 a 160; Decreto n. 6.939/2009, aits. 17, III, e 108. Sobre serviço militar: Lei n. 8.239/91; Portaria n. 3.656/94 do COSEMI, que altera o Regulamento do Serviço Alternativo ao Serviço Militar Obrigatório; Decretos n. 1.294/94 e 1.295/94; Decreto n. 2.057/96, que alterou o art. 27, § 3a, do Decreto n. 63.704/68, e Lei n. 12.336/2010, que modificou as Leis n. 4.375/64 e 5.292/67, que versa sobre prestação do serviço militar por estudantes de Medicina, Farmácia, Odontologia e Veterinária e pelos médicos, farmacêuticos, dentistas e veterinários e Resolução n. 4/2004 da Comissão Nacional de Residência Médica sobre a reserva de vaga para médico-residente que preste serviço militar. A emancipação legal, advinda de casamento, emprego público, colação de grau e estabelecimento civil ou comercial, independe de registro para a produção de efeitos jurídicos. 221 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il D. C o m e ç o d a p e r s o n a l i d a d e n a t u r a l Imprescindível se toma traçar algumas linhas sobre o início da personalidade natural. No direito civil francês e holandês (art. 3a) não basta o nascimento com vida; é necessário que o recém-nascido seja viável, isto é, apto para a vida117. Se nascer com vida sua capacidade remontará à concepção. O direito civil espanhol (art. 30) exige que o recém-nascido tenha forma humana e que tenha vivido 24 horas, para que possa adquirir personalidade. O direito português também condicionava à vida a figura humana (art. 6a). Para o argentino (art. 7fi) e o húngaro (seção 9) a concepção já dá origem à personalidade. O nosso Código Civil afastou todas essas hipóteses, que originavam incertezas, dúvidas, pois, no seu art. 2a, não contemplou os requisitos da viabilidade e forma humana, afirmando que a personalidade jurídica inicia-se com o nascimento com vida, ainda que o recém-nascido venha a falecer instantes depois. Nessa mesma linha estão o Código Civil suíço (art. 31); o português de 1966 (art. 6 6 ,1); o alemão (art. I 2) e o italiano (art. I a). Pela Resolução n. 1/88 do Conselho Nacional de Saúde, o nascimento com vida é a "expulsão ou extração completa do produto da concepção quando, após a separação, respire e tenha batimentos cardíacos, tendo sido ou não cortado o cordão, esteja ou não desprendida a placenta". Conquanto comece do nascimento com vida (RJ, 172:99) a personalidade civil da pessoa, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (CC, arts. 2fl, 1.609, parágrafo único, 1.779 e parágrafo único, e 1.798; Lei n. 11.105/2005, arts. 6a, III, e 25), como o direito à vida (CF, art. 5a), à filiação (CC, arts. 1.596 e 1.597), à integridade física, à honra e à imagem (TJSP, Ap. Cível n. 406.855.4/6-00 — rei. Des. Benedito Silvério); a alimentos (Lei n. 11.804/2008; RT, 650:220; RJTJSP, 150:90-6), a uma adequada assistência pré-natal (ECA, art. 8a), à representação (CC, arts. 542, 1.630, 1.633, 1.779, parágrafo único; CPC, arts. 877 e 878, parágrafo único), a um curador que o represente e zele pelos seus interesses (CC, arts. 542, 1.779 e parágrafo único; CPC, arts. 877 e 878, parágrafo único) em caso de incapacidade ou impossibilidade de seus genitores de receber herança (CC, arts. 1.784, 1.798, 1.799, I, e 1.800, § 3a), a ser contemplado por doação (CC, art. 542), a ser adotado (CC, art. 1.621; ECA, art. 2a), a ser reconhecido como 117. De Page, Traité êlêmentaire, v. 1, n. 236. 222 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e ir o filho (CC, art. 1.609, parágrafo único; ECA, art. 26), a ter legitimidade ativa na investigação de paternidade (Lex, 150:90); RT, 625:172-8) etc. Poder- -se-ia até mesmo afirmar que na vida intrauterina tem o nascituro e na vida extrauterina tem o embrião, concebido in vitro, personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos da personalidade, visto ter carga genética diferenciada desde a concepção, seja ela in vivo ou in vitro (PL n. 699/2011, art. 2a; Recomendação n. 1.046/89, n. 7, do Conselho da Europa; Pacto de São José da Costa Rica, art. 4a, I; Resolução do CFM n. 1.957/2010, Seções IV, n. 3, V, VI), passando a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais (RT, 593:258) e obrigacionais, que se encontravam em estado potencial, somente com o nascimento com vida (CC, art. 1.800, § 3a). Se nascer com vida adquire personalidade jurídica material, mas se tal não ocorrer nenhum direito patrimonial terá118. P. ex.: suponhamos o caso de um 118. Torrente, Manuale di diritto privato, p. 51, nota 2; Planiol, Traité êlêmentaire de droit civil, v. 1, p. 150; RT, 182:438. Ante as novas técnicas de fertilização in vitro e do congelamento de embriões humanos (usual na Austrália), houve quem levantasse o problema relativo ao momento em que se deve considerar juridicamente o nascituro, entendendo-se que a vida tem início, naturalmente, com a concepção no ventre materno. Assim sendo, na fecundação na proveta, embora seja a fecundação do óvulo, pelo espermatozóide, que inicia a vida, é a nidação do zigoto ou ovo que a garantirá; logo, o nascituro só será, para alguns juristas, "pessoa" quando o ovo fecundado for implantado no útero materno, sob a condição do nascimento com vida. O embrião humano congelado não pode ser tido como nascituro e deve ter proteção jurídica como pessoa virtual, com uma carga genética própria. Embora a vida se inicie com a fecundação, e a vida viável, com a gravidez, que se dá com a nidação, entendemos que o início legal da personalidade jurídica é o momento da penetração do espermatozóide no óvulo, mesmo fora do corpo da mulher, pois os direitos da personalidade, como o direito à vida, à integridade física e à saúde, independem do nascimento com vida. Por isso, a Lei n. 8.974/95, ora revogada, nos arts. 8a, n, III e IV, e 13, veio a reforçar, em boa hora, essa ideia não só ao vedar: a) manipulação genética de células germinais humanas; b) intervenção em material genético humano in vivo, salvo para o tratamento de defeitos genéticos; c) produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível, como também ao considerar tais atos como crimes, punindo-os severamente. Com sua revogação pela Lei n. 11.105/2005, passou a ser permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, desde que sejam inviáveis ou estejam congelados há três anos ou mais, havendo consentimento dos seus genitores (art. 5a, I, n, e § Ia) e aprovação do projeto, para tal fim, pelo Comitê de ética em pesquisa (art. 5a, § 2a), sob pena de detenção de um a três anos e multa (art. 24). Tal permissão, no nosso entender, sem embargo da decisão do STF, em sentido contrário, viola o direito à vida, o direito à imagem científica (DNA) e o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana, consagrados constitucionalmente. Pela novel Lei de Biossegurança, proibida está a engenharia genética em embrião humano (art. 6a, III, in fine), sob pena de reclusão 223 T e o r ia G e r a l d o D ir e i t o C iv il de um a quatro anos e multa (art. 25). Com isso, paiece-nos que a razão está com a teoria concepcionista, uma vez que o Código Civil resguarda desde a concepção os direitos do nascituro, e, além disso, no art. 1.597, IV, presume concebido na constância do casamento o filho havido, a qualquer tempo, quando se tratar de embrião excedente, decorrente de concepção artificial heteróloga. Protegidos estão os direitos da personalidade do embrião, fertilizado in vitro, e do nascituro. O embrião goza do benefício da presunção de filiação (CC, art. 1.597, IV). E, além disso, com a fusão dos gametos (masculino e feminino), determinam-se os caracteres do novo ser humano, surgindo, então, a pessoa, enquanto sujeito de direito. Não distinguimos o concebido in vivo do obtido in vitro. Apenas os efeitos de direitos patrimoniais, como o de receber doação ou herança, dependem do nascimento com vida. Em boa hora veio a seguinte proposta do Projeto de Lei n. 6.960/2002 (hoje PL n. 699/2011), alterando o art. 22 do Código Civil, considerando o embrião como sujeito de direito: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do embrião e os do nascituro". O Parecer Vicente Arruda rejeitou tal proposta alegando: "A introdução do termo embrião, que certamente está contido no conceito de nascituro, só pode pretender assegurar o direito ao embrião concebido fora do útero materno. Parece-nos, a bem da prudência, que a matéria deva ser tratada em legislação especial, a ser elaborada com todo o critério, porquanto a matéria envolve inúmeros aspectos técnicos e éticos que refogem ao direito. Colocá-la, desde já, no Código, seria temerário, haja vista as conseqüências jurídicas que daí adviriam, como, por exemplo, as atinentes ao direito sucessório". A Resolução n. 1.957/2010, do CFM, apresenta normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida. Sobre o assunto: Silmara J. A. Chinelato e Almeida, Direitos de personalidade do nascituro, Revista do Advogado, 38:21-30; O nascituro no Código Civil e no nosso direito consütuendo, in O direito de família e a Constituição Federal de 1988, coord. Bittar, São Paulo, Saraiva, 1989, p. 39-52; Início da personalidade da pessoa natural no projeto do Código Civil brasileiro, Rev. do Instituto dos Advogados de São Paulo, 1997, número especial de lançamento, p. 78-91; Pessoa natural e novas tecnologias, RIASP, n. 27:45 a 56; Francisco Amaral, O nascituro no direito civil brasileiro, contribuição do direito português, Revista Brasileira de Direito Comparado, 8:75-89; Thereza Baptista de Mattos, A proteção do nascituro, Revista de Direito Civil, 52:30-7; M. H. Diniz, Reflexões sobre a problemática das novas técnicas científicas de reprodução humana assistida e a questão da responsabilidade civil por dano moral ao embrião e ao nascituro, Livro de Estudos Jurídicos, 8:207-31,1994; A ectogênese e seus problemas jurídicos, Direito, 1:89-100, O estado atual do biodireito, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 21-127, 405-16, 452-500; P. Stolze Gagliano e R. Pamplona Fa, Novo curso, cit., v. 1, p. 93; Euclides Benedito de Oliveira, Indenização por danos morais ao nascituro, O direito civil no século XXI, p. 145 a 167; William A. Pussi, Personalidade jurídica do nascituro, Curitiba, Juruá, 2006. Sobre adoção de nascituro: Fernando Hinestrosa, La adopdón en Colombia: el sistema dei Código y las reformas más recientes, Studi Sassaresi, série 3, 7 (1979-1980), p. 436. A Lei n. 8.069/90 também traça normas (arts. 7a a 10; 208, VI; 228 e parágrafo único; e 229 e parágrafo único) de proteção ao nascituro, assegurando certos direitos à gestante. O Código Penal, por sua vez, veda o aborto nos arts. 124 a 127, permitindo-o, no art. 128,1 e II, apenas se não houver outro méio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resultou de estupro, desde que haja anuência da gestante ou, se incapaz, de seu representante legal. Atualmente há projeto de lei liberando aborto terapêutico em mulheres grávidas portadoras de Aids, desnecessário, no nosso entender, por já estar, insitamente, incluído no art. 128 do Código Penal. Vide ainda: RT, 625:172; RJTJRS, 104:418; RJTJSP, 217:214. Nascituro pode ser sujeito passivo do imposto de transmissão inter vivos (doação) e causa mortis (STF, Súmulas 112, 113, 114, 115 e 331; CTN, arts. 35, parágrafo único; 121,1 [contribuinte é o nascituro], e 134,1 224 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o homem que, recentemente casado pelo regime de separação de bens, faleça num desastre, deixando pais vivos e viúva grávida. Se nascer morto, o bebê não adquire personalidade jurídica e, portanto, não recebe nem transmite a herança de seu pai, que ficará com os avós paternos, pois em nosso direito a ordem da vocação hereditária é: descendentes em concorrência com cônjuge sobrevivente, ascendentes em concorrência com consorte, cônjuge sobrevivente, colaterais até o 4° grau (CC, art. 1 .8 2 9 ,1 a IV) e o Município, Distrito Federal ou União havendo declaração de vacância da herança (CC, art. 1.822). Se nascer vivo, receberá a herança e, se por acaso vier a falecer logo em seguida, a herança passará a sua mãe, provando-se o seu nascimento com vida pela demonstração de presença de ar nos pulmões119. É necessário dizer, ainda, que todo nascimento deve ser registrado (Lei n. 6.015/73, arts. 29, I (com redação do Decreto n. 6.828/2009), 50 e 53; Lei n. 9.053/95; CC, art. 92, I; CF, art. 52, LXXVI, a; RT, 750:362, 835:206), mesmo que a criança tenha nascido morta ou morrido durante o parto (LRP, art. 53 e § 2fl). Se for natimorta o assento será feito no livro "C Auxiliar" (Lei n. 6.015/73, art. 33, V), contendo os elementos arrolados no art. 54 da referida lei, com alteração do item 92 feita pela Lei n. 9.997/2000, que exie II [responsáveis são os pais ou curador]). Pelo CDC (arts. 22, 17, 29, 62,1 e VI) pode haver responsabilidade civil por danos causados por acidente de consumo ou na prática da medicina fetal. Nada impede que o nascituro seja beneficiário de seguro de vida ou de estipulação em favor de terceiro. É preciso lembrar que desde Justlniano há uma certa consideração ao nascituro, como se pode ver no brocardo: “infans conceptus pro jam nato habetur quoties de ejus commodis agitur”. 119. Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 53-4; Antônio Chaves, Tratado de direito civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982, v. 1, t. 1, p. 316. Pelo Enunciado n. 1 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: "A proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura". E acrescenta o referido Centro, no Enunciado n. 2, que: "Sem prejuízo dos direitos da personalidade, nele assegurados, o art. 2a do Código Civil não é sede adequada para questões emergentes da reprogenética humana, que deve ser objeto de um estatuto próprio". Como sujeito de direito, para alguns doutrinadores, é gênero e pessoa é espécie, nem todo sujeito de direito é pessoa, embora toda pessoa seja sujeito de direito. Sujeito de direito é o titular dos interesses em sua forma jurídica e pode ser personificado ou despersonificado. O sujeito de direito despersonificado, apesar de não ser pessoa, é titular de direitos e deveres, como o nascituro. O embrião in vitro e não implantado in utero é sujeito ou objeto de direito? Seria "coisa" de propriedade comum do casal encomendante? Só com a implantação no útero seria sujeito de direito despersonificado? Sobre isso consulte: Fábio Ulhoa Coelho, Curso, cit., v. 1, p. 137-54. Para nós, repetimos, nascituro e embrião in vitro ou in utero são pessoas. 225 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il ge indicação de nomes e prenomes, da profissão e da residência das duas testemunhas do assento, quando se tratar de parto ocorrido sem assistência médica em residência ou fora de unidade hospitalar ou casa de saúde. Se morreu por ocasião do parto, tendo respirado, serão feitos dois registros: o de nascimento e o de óbito (Lei n. 6.015/73, art. 53, §§ I a e 2ffl). O registro de nascimento é uma instituição pública destinada a identificar os cidadãos, garantindo o exercício de seus direitos. Todo nascimento que ocorre no território nacional deve ser dado a registro, no local onde se deu o parto ou no da residência dos pais. O art. 52 da Lei n. 6.015/73 apresenta uma ordem sucessiva dos que têm a obrigação de fazer a declaração de nascimento. Em regra, é o pai; em sua falta ou impedimento, a mãe, dentro do prazo de 15 dias. Se houver distância maior de 30 km do cartório, tal prazo será ampliado em até 3 meses (Lei n. 9.053/95, que altera o art. 50 da Lei n. 6.015/73). No impedimento de ambos, cabe ao parente mais próximo, desde que maior; na falta deste, aos administradores de hospitais, médicos, parteiras, que tiverem assistido o parto ou pessoa idônea da casa em que ocorrer, sendo fora da residência da mãe; finalmente, as pessoas encarregadas da guarda do menor. Essas pessoas terão o mesmo prazo da mãe, a contar do momento em que souberam do impedimento120. 120. Walter Ceneviva, A Lei dos Registros Públicos, São Paulo, Saraiva, 1979, p. 108 e s. Regnoberto M. de Melo Jr., Lei de registros públicos, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 2003. "Anulação de registro de nascimento. Procedência. Paternidade excluída por perícia. Cumulação admitida da ação com outra de anulação de casamento. Art. 292 do Código de Processo Civil. Sentença transitada em julgado. Decisão relativa ao assento não sujeita ao duplo grau de jurisdição. Recurso de ofício não conhecido. Procedência. Admissibilidade. Casamento assumido dada a imputação de paternidade que, após, firmada ser de outrem. Dubiedade de postura que configura erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge. Recurso não provido" (AC 73.743-4/4, TJSP, rei. Des. Fonseca Tavares, j. 11-3-1999, DJ SP 1 12-5-1999). A Lei n. 9.465/97 dispõe sobre o fornecimento gratuito de registro extemporâneo de nascimento, se destinado à obtenção de Carteira de Trabalho e Previdência Social. Vide Lei n. 6.015/73, arts. 52, § 1E, e 46; Lei n. 7.844/89, que disciplinou o art. 52, LXXVI, da Constituição Federal de 1988 e alterou o art. 30 da Lei n. 6.015/73, que, ante a Lei n. 9.534/97, passou a vigorar com a seguinte redação: "Art. 30. Não serão cobrados emolumentos pelo registro civil de nascimento e pelo assento de óbitos, bem como pela primeira certidão respectiva. § Ia Os reconhecidamente pobres estão isentos de pagamento de emolumentos pelas demais certidões extraídas pelo cartório de registro civil. § 2a O estado de pobreza será comprovado por declaração do próprio interessado ou a rogo, tratando-se de analfabeto, neste caso acompanhada da assinatura de duas testemunhas. § 3a A falsidade da declaração ensejará a responsabilidade civil e criminal do interessado". C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o E. I n d i v i d u a l i z a ç ã o d a p e s s o a n a t u r a l A identificação da pessoa se dá pelo nome, que a individualiza; pelo estado, que define a sua posição na sociedade política e na família, como indivíduo; e pelo domicílio, que é o lugar de sua atividade social121. Id e n tific a ç ã o d a p e s s o a n a tu r a l c. N o m e D o m icílio E s ta d o A Lei n. 11.789, de 2 de outubro de 2008, proíbe a inserção nas certidões de nascimento e de óbito de expressões indicativas de condição de pobreza ou semelhantes, acrescentando § 4a ao art. 30 da Lei n. 6.015/73. Vide Provimento n. 494/93, arts. 8a a 12, e Provimento CGJ n. 7/96. As Leis n. 9.534/97 e 11.789/2008 alteraram também o art. 45 da Lei n. 8.935/94, que passa a ter a seguinte redação: "Art. 45. São gratuitos os assentos do registro civil de nascimento e o de óbito bem como a primeira certidão respectiva. § Ia Para os reconhecidamente pobres não serão cobrados emolumentos pelas certidões a que se refere este artigo. § 2a É proibida a inserção nas certidões de que trata o § Ia deste artigo de expressões que indiquem condição de pobreza ou semelhantes". E as Leis n. 10.215/2001 e 11.790/2008 deram nova redação ao art. 46 da Lei n. 6.015/73. Pelo Decreto n. 6.828/2009, que regulamentou o art. 29 da Lei n. 6.015/73, a certidão de nascimento deverá estar em papel com detalhes nas cores azul, verde e amarela. O número da Declaração de Nascido Vivo (DNV), quando houver, poderá ser lançado em campo próprio da certidão de nascimento. Um sistema optativo e informatizado, emitido gratuitamente, on line deverá ser implantado nas matemidades para emissão de certidão de nascimento assim que houver alta do hospital para as mães, com o escopo de erradicar o sub-registro. A Portaria Interministerial n. 3/2010 (da Secretaria de Direitos Humanos e do Ministério da Justiça) estabelece o modelo da certidão de nascimento, inclusive se emitida por meio de sistema informatizado de registro eletrônico. Pelo Provimento CG n. 16/2011, o item 32.2 da Seção III do Capítulo XVII das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça passa a ter a seguinte redação: "A emissão de certidão de nascimento nos estabelecimentos de saúde que realizam partos devem obedecer ao disposto no Provimento n. 13 do Conselho Nacional de Justiça". 121. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1971, p. 139; Figini, Leitão e Silva, Jobim, Silveira Costa e M, da Silva, Identificação humana, Campinas, MiUennium, 2008; v. 1 e 2. Vide Lei n. 9.049/95, que faculta o registro, nos documentos pessoais de identificação, das informações que especifica, tais como 227 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il e.l. Nome O nome integra a personalidade por ser o sinal exterior pelo qual se designa, se individualiza e se reconhece a pessoa no seio da família e da sociedade; daí ser inalienável, imprescritível e protegido juridicamente (CC, arts. 16, 17, 18 e 19)122. O aspecto público do direito ao nome decorre do fato de estar ligado ao registro da pessoa natural (Lei n. 6.015/73, arts. 54, n. 4, e 55), pelo qual o Estado traça, princípios disciplinares do seu exercício, determinando a imutabilidade do prenome (Lei n. 6.015, art. 58), salvo exceções expressamente admitidas, e desde que as suas modificações sejam precedidas de justificação e autorização de juiz togado (Lei n. 6.015/73, arts. 56, 57 (com alteração da Lei n. 12.100/2009) e 58)123. E o aspecto individual manifesta-se na número e data de validade daqueles documentos, tipo sanguíneo, disposição de doação de órgãos em caso de morte etc. Resolução n. 84, de 17 de novembro de 2010, que aprova a versão 3.2 do DOC-ICP-04 e a versão 3.5 do DOC-ICP-05, cujas alterações se referem aos procedimentos para a emissão de certificados digitais que integram o Documento de Registro de Identidade Civil-RIC. 122. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 92; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 215; Orlando Gomes, op. cit., p. 159; R. Limongi França, Do nome civil das pessoas naturais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1975; José Roberto Neves Amorim, Direito ao nome da pessoa física, São Paulo, Saraiva, 2003; Euclides de Oliveira, Direito ao nome, in Novo Código Civil — questões controvertidas, Mário Luiz Delgado e Jones Figueirêdo Alves (orgs.), São Paulo, Método, 2004, v. 2, p. 67-88. O nome é o único direito de. personalidade reconhecido pelo Código alemão (art. 12) (Oertmann, Introducción al derecho civil, p. 73). W. Barros Monteiro (op. cit., v. 1, p. 93 e 94) apresenta-nos a história do nome, que assim resumimos: entre os gregos era único e individual (Sócrates, Platão). Os hebreus individualizavam o indivíduo ligando ao seu nome o do genitor (Bartolomeu, filho de Tolomeu); o mesmo ocorre entre os árabes (Ali Ben Mustafá, Ali, filho de Mustafá) e russos (Alexandre Markovicz, Alexandre, filho de Marcos; Nádia Petrovna, Nádia, filha de Pedro), romenos (Popesco, filho de Pope) e ingleses (Stevenson, filho de Steve). Os romanos acrescentavam ao nome o gentílído, usado pelos membros da mesma gens, o prenome, próprio de cada pessoa, e o cognome, que apontava sua família: Marco Túlio Cícero: Marco (prenome), Túlio (gentilício) e Cícero (cognome), sendo o cognome só usado pelos homens. Nomes com três elementos eram peculiares ao patriciado; com dois ou um, como Espártaco, indicava a plebe. Com as conquistas romanas, adotou-se o seu sistema, mas, com a invasão dos bárbaros, retornou-se ao nome único. Ante a grande população, para evitar confusão entre as pessoas, recorreu-se ao emprego de um sobrenome tirado de qualidade ou sinal pessoal (Bravo, Leal), da profissão (Monteiro), do lugar de nascimento (França), de algum animal, planta ou objeto (Coelho, Lobo, Oliveira, Carvalho, Leite), do nome patemo, em genitivo (Lourenço Marques, Lourenço, filho de Marco). 123. É o que ensina Caio M. S. Pereira (Instituições, cit., v. 1, p. 217). 228 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o autorização que tem o indivíduo de usá-lo, fazendo-se chamar por ele, e de defendê-lo de quem o usurpar, reprimindo abusos cometidos por terceiros, que, em publicação ou representação, o exponham ao desprezo público ou ao ridículo mesmo que não tenham intenção difamatória (CC, art. 17). Assim, p. ex., se alguém usar nome alheio em rádio, internet, livro, TV etc., ridicularizando-o, o lesado poderá pleitear indenização, mesmo que não tenha havido intuito difamatório por parte do lesante. Com isso tutela-se também a honra objetiva. É vedada a utilização sem autorização, de nome alheio em propaganda comercial, promovendo venda de bens ou serviços (art. 18 do CC), por gerar enriquecimento indevido, ou então, com o intuito de obterem proveito político, artístico, eleitoral, ou até mesmo religioso124. Essa proteção jurídica cabe também ao pseudônimo (nome fictício — RT, 823:190) ou codinome (CC, art. 19) adotado, para atividades lícitas, por literatos e artistas, dada a importância de que goza, por identificá-los no mundo das letras e das artes125, mesmo que não tenham alcançado a notoriedade (.RJTJSP, 232-.234). Pseudônimo é portanto comum nos meios literários e artísticos. P. ex.: Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima); Gabriela Mistral (Lucila Godoy Alacayaga), Di Cavalcanti (Emiliano de Albuquerque Melo); José Samey 0osé Ribamar Ferreira de Araújo); Xuxa (Maria das Graças Meneghel), Sílvio Santos (Senor Abravanel), Cora Coralina (Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas); 124. Orlando Gomes, op. cit., p. 164; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 217. 125. Oertmann, op. cit., p. 76; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 218; Orlando Gomes, op. cit., p. 165. Vide Lei n. 4.944/66. Vide]uan M. Semon, El derecho al seudónimo, p. 87; Tereza Rodrigues Vieira, Da mudança do nome, dissertação de mestrado apresentada na PUCSP, 1989; Direito à adequação de sexo de transexual, Repertório IOB de Jurisprudência, n. 3/96, p. 51 e s.; Marcelo Guimarães Rodrigues, Do nome civil, RT, 765:756. Similar ao pseudônimo é o nome religioso (Pio XII para Eugênio Pacelli) e o nome de guerra, usado por agentes da militância bélica (p. ex., Mata Hari). Podem-se usar siglas do nome para reconhecimento de certas pessoas (p. ex., PC para Paulo César Farias). É a lição de Euclides de Oliveira, Direito ao nome, Revista IASP, 11:199. Já se decidiu que: "Direito civil — Uso de pseudônimo — 'Tiririca' — Exclusividade — Inadmissibilidade. I — O pseudônimo goza da proteção dispensada ao nome, mas, por não estar configurado como obra, inexistem direitos materiais e morais sobre ele. II — O uso contínuo de um nome não dá ao portador o direito ao seu uso exclusivo. Incabível a pretensão do autor de impedir que o réu use o pseudônimo 'Tiririca', até porque já registrado, em seu nome, no INPI. IV — Recurso especial não conhecido" (STJ, 3a T., REsp 555.483/SP, relator Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 14-10-2003, DJ, 10-11-2003). 229 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Brigitte Bardot (Camile Javal); Zeca Pagodinho (Jessé Gomes da Silva Filho); Lima Duarte (Ariclenes Martins); Molière 0ean-Baptiste Poquelin); Stendhal (Henry Beyle); Anatole France 0acques Anatole François Thibault); Malba Tahan (Júlio César de Melo e Souza) etc. Já o heterônimo consiste em nomes diferentes usados pela mesma pessoa; p. ex., Fernando Pessoa apresentava-se como Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Carneiro. Em regra, dois são os elementos constitutivos do nome: o prenome, próprio da pessoa, e o patronímico, nome de família ou sobrenome, comum a todos os que pertencem a uma certa família (CC, art. 16) e, às vezes, tem-se o agnome, sinal distintivo que se acrescenta ao nome completo (filho, júnior, neto, sobrinho) para diferenciar parentes que tenham o mesmo nome, não sendo usual, no Brasil, a utilização de ordinais para distinguir membros da mesma família, p. ex.: Marcos Ribeiro Segundo, embora haja alguns exemplos desse uso entre nós. Temos, ainda, o agnome epitético acrescentado ao nome por terceiro para indicar alguma qualidade do seu portador, que não tem qualquer valia jurídica, p. ex., Paulo José Santiago, o velho; Paulo José Santiago, o moço; João Silvério, o calvo, mas, às vezes, pode gerar responsabilidade civil e penal por ofensa à honra ou por injúria, se a pessoa à qual se impôs tal agnome sentir-se lesada. Lembra Sílvio de Salvo Venosa que ao lado desses elementos essenciais há os secundários como: a) títulos nobiliárquicos ou honoríficos, p. ex.: conde, duque, comendador, apostos antes do prenome, denominados axiônios; b) títulos eclesiásticos, como cardeal, monsenhor, padre-, c) qualificativos de dignidade ou identidade oficial como senador, juiz, prefeito etc.; d) títulos acadêmicos e científicos, como mestre e doutor, e e) formas de tratamento de cortesia ou de reverência como Vossa Santidade, Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Meritíssimo etc., chamadas axiônimos. Alcunha ou epíteto é a designação dada a alguém devido a uma particularidade sua (trabalho exercido, característica da personalidade, defeito físico ou mental, aparência física, local de nascimento etc.). P. ex.: Tiradentes, Fujão, Aleijadinho, Pelé, podendo agregar-se de tal sorte à personalidade da pessoa que, se não for jocoso, pode ser acrescentado, sob certas condições, ao nome da pessoa, como fez o Lula116. Hipocorístico é o nome que se 126. W. Barros Monteiro, op. cit., p. 95; Orlando Gomes, op. cit., p. 159 e 161; Venosa, op. cit., p. 156 e 157; JB, 130:138 e 151. 230 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o dá a uma pessoa para exprimir carinho: Mila (Emília); Nando (Fernando); Betinho (Roberto); Bel (Isabel); Quinzinho (Joaquim); Tião (Sebastião); Tonico (Antônio), Filó (Filomena); Zé (José) etc. Nome vocatório é aquele pelo qual a pessoa é conhecida, abreviando-se seu nome completo, p. ex., Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac era e é conhecido como Olavo Bilac, ou, até mesmo, fazendo uso de siglas como PC para Paulo César Farias. O prenome pode ser simples (João, Carlos, Maria) ou duplo (José Antônio, Maria Amélia) ou ainda triplo ou quádruplo, como se dá em famílias reais (Caroline Louise Marguerite, princesa de Mônaco; Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga (D. Pedro II, imperador do Brasil). O prenome pode ser livremente escolhido, desde que não exponha o portador ao ridículo, caso em que os oficiais do Registro Público poderão recusar-se a registrá-lo. Se os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do juiz competente (Lei n. 6.015/73, art. 55, parágrafo único). Ao prenome de certas pessoas, em países aristocráticos, ligam-se títulos de nobreza, para designar os membros das famílias nobres. Casos há, como vimos, que se acrescentam ao prenome títulos acadêmicos ou qualificações de dignidade oficial, como professor, doutor, desembargador etc.127. O sobrenome é o sinal que identifica a procedência da pessoa, indicando sua filiação ou estirpe, sendo, por isso, imutável, podendo advir do apelido de família paterno, materno ou de ambos. Pode ser simples (Silva, Ribeiro) ou composto (Araújo Mendes, Alcântara Machado, Souza Mello), podendo ser acompanhado das partículas de, do, da, dos e das, que dele fazem parte, indicando, às vezes, procedência nobre128. 127. Orlando Gomes, op. cit., p. 160 e 161. 128. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 95 e 96. TJSC, AC 2008.035688-4, da Capital/ Distrital do Norte da Hha, rei. Des. Subst. Joel Dias Figueira Júnior, j. 29-7-2008: "Apelação cível. Pedido de autorização de registro civil de recém-nascido. Inclusão de apenas um dos patronímicos do genitor. Possibilidade. Ascendência familiar preservada. Exegese dos arts. 54 e 55 da Lei de Registros Públicos e art. 16 do Código Civil. Recurso conhecido e provido. I — A autonomia da vontade é, universalmente, um dos princípios basilares do direito civil de origem romano-canônica (civil law), desde que sintonizado com a norma de regência e não viole a ordem pública e os bons costumes. Em outros termos, verifica-se a permissão em todos os sistemas nomoempíricos 231 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il prescritivos à prática de atos ou omissões que não sejam proibidos por lei ou não afrontem a ordem pública e os bons costumes. Por outro lado, é regra comezinha de hermenêutica jurídica a não distinção ou restrição pelo intérprete onde a lei não distingue ou restringe. Nessa toada, deve o aplicador da norma interpretá-la de maneira harmoniosa com os seus fins sociais e as exigências do bem comum, tendo-se como certo que, há muito, o julgador deixou de ser apenas a 'boca da lei', um simples operador de mera subsunção, passando a atuar no processo como agente político-jurídico de pacificação social, em busca incessante da composição das lides através da prestação de justa tutela jurisdicional. II — Denota-se da legislação pátria específica que a criança ao nascer haverá de ser registrada com o nome e prenome que lhe forem postos (LRP, art. 54, 42). Considera-se como nome completo o prenome (simples ou composto), sempre acrescido ao sobrenome (ou nome propriamente dito, simples ou composto) paterno, e, na falta deste, o da mãe, se forem conhecidos e não existir impedimento de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato (LRP, art. 55). Acerca da inclusão do sobrenome paterno, quando este se apresenta de maneira composta, o dispositivo legal em exame não exige que o infante seja registrado com dois ou mais patronímicos, ou, em caso de escolha de um deles, que o declarante indique, necessariamente, o último da ordem. III — Em outros termos, as vontades da lei e do legislador afiguram-se demasiadamente claras, na exata medida em que deixam transparecer que a regra a ser observada, neste particular, para o assento de nascimento, é no sentido de que ele deverá conter, entre outros elementos, o nome e o prenome, que forem postos à criança, de maneira a identificá-la com os seus ascendentes diretos. Destarte, não importa se o declarante acresce ao prenome do infante o sobrenome da mãe, ou, ainda, se faz uso de um ou diversos patronímicos do genitor. Da mesma forma, não diz a Lei qual o patronímico haverá de ser assentado no registro da criança, quando o pai possuir sobrenome composto. IV — Por estes motivos, o recurso merece ser conhecido e provido a fim de acolher-se a pretensão do genitor no sentido de facultar-lhe a opção por um de seus patronímicos para o assento de nascimento de sua filha, antecedido pelo sobrenome da mãe e o prenome escolhido". Ação Negatória de Paternidade — Provas — Exame de DNA — Paternidade socioafetiva — Sobrenome — Retirada. 1. O exame de DNA, dada a precisão de seu resultado, é prova que, confirmando ou não a paternidade, não pode ser desconsiderada, mesmo que o suposto pai, por erro, tenha registrado a criança como filha. 2. Não há paternidade socioafetiva se o suposto pai, iludido pela mãe, fez o registro de nascimento da criança acreditando que essa era sua filha, máxime e se inexistiu convivência por tempo suficiente para que haja afeto entre o pai e a criança, de forma que a filha, tratada como tal, seja criada e educada pelo pai. 3. Ainda que seja julgada procedente a Ação Negatória de Paternidade, deve manter-se o sobrenome da filha, que, com 25 anos de idade, criou identidade social e profissional com o patronímico do pai. 4. Apelação provida em parte (TJDFT, 6aT. Cív., AC 2007.01.5.010145- 8, rei. Des. Jair Soares, j. 11-6-2008, v.u.). Civil — Direito de Família — Alteração do Registro de Nascimento para nele fazer constar o nome de solteira da genitora, adotado após o divórcio — Possibilidade. 1. A dificuldade de identificação em virtude de a genitora haver optado pelo nome de solteira após a separação judicial enseja a concessão de Tutela Judicial a fim de que o novo patronímico materno seja averbado no assento de nascimento, quando existente justo motivo e ausentes prejuízos a terceiros, ofensa à ordem pública e aos bons costumes. 2. É inerente à dignidade da pessoa humana a necessidade de que os documentos oficiais de identificação reflitam a veracidade dos fatos da vida, de modo que, havendo lei que autorize a averbação no assento de nascimento do filho do novo patronímico materno em virtude de casamento, não é razoável admitir-se óbice, consubstanciado na falta de autorização legal para viabilizar providência idênti- 232 Os apelidos de família são adquiridos ipso iure, com o simples fato do nascimento, pois a sua inscrição no Registro competente tem caráter puramente declaratório. O filho (Lei n. 6.015/73, arts. 59 e 60) reconhecido receberá os apelidos do que o reconhecer, prevalecendo o sobrenome paterno se reconhecido tanto pelo pai como pela mãe. Em relação ao filho não reconhecido, prevalece o patronímico materno129. Convém ressaltar que há viabilidade de o Oficial de Registro orientar, quando da lavratura dos assentos de nascimento, os pais ou requerentes do registro quanto à possibilidade de ser colocado, além do apelido de família paterno, o materno, sem interferência na liberdade e no direito de escolha do prenome, visando evitar a homonímia de nomes comuns (CGJSP, Proc. n. 1.635/2000). Qualquer dos cônjuges poderá, ainda na vigência do casamento, reconhecer filho (CF/88, art. 227, § 6a; Lei n. 7.841/89, C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o ca, mas em situação oposta e correlata (separação e divórcio). Recurso Especial a que se nega provimento (STJ, 3a T., REsp 1.041.751-DF, rei. Min. Sidnei Beneti, j. 20-8- 2009; BAASP, 2680:SS91. 129. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 301 e 302; Belmiro R Welter, Os nomes do ser humano: uma formação contínua da vida, Revista Brasileira de Direito de Família, 41:5 a 14. "Diz o art. 56 da Lei de Registros Públicos, 6.015/73, que o interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa. Isso não significa, porém, que só depois da maioridade tal requerimento possa ser feito. Pode ocorrer justo motivo para uma retificação de nome e, apesar disso, ocorrer desinteresse ou mesmo recusa do representante legal do menor em efetivá-la. Por isso e só por isso a lei quer permitir que, uma vez atingida a maioridade, o requerimento seja feito pelo próprio interessado, desde qüe no prazo de um ano. Assim, enquanto impúbere o menor, o pai formula, em seu nome, o pedido de retificação. Depois de púbere, o pai o assiste no requerimento. E, uma vez adquirida a maioridade, ainda tem o interessado o prazo de um ano para formular o requerimento. Diz o art. 55 da Lei supracitada: ‘Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e, na falta, o da mãe...'. Aí apenas se diz que uma vez escolhido, pelo pai, o prenome do registrando, o oficial lhe acrescentará o nome daquele. E, não sendo feito o registro por este, o nome acrescível será o da mãe. Mas isso não significa que uma vez feita a composição do nome do registrando com o prenome escolhido pelo pai, seguido do nome deste, não se possa depois incluir também na composição o patronímico materno" (TJSP, ADCOAS, n. 86385, 1982). RT, 864:333. "Reconhecido o estado de filha da recorrente, tem ela o direito ao sobrenome das famílias materna e paterna e à forma comumente utilizada, qual seja, em primeiro, o sobrenome da mãe; em segundo, o do pai. A adição de mais um nome, da tradição familiar, ao nome civil, é perfeitamente possível, inserido que se encontra a hipótese no termo reforma do assento, referido no art. 113 da Lei n. 6.015/73". Sobre alteração de sobrenome dos pais no registro civil de nascimento: PL n. 7.752/2010. 233 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il art. Ia; Lei n. 8.069/90, arts. 26 e 27; Lei n. 8.560/92; Provimento do CSM n. 494/93; Provimento da CGJ n. 10/93; CC, arts. 1.607 a 1.617). Mas a aquisição do sobrenome pode decorrer também de ato jurídico, como adoção, casamento, por parentesco de afinidade em linha reta (art. 57, § 8fl, da Lei n. 6.015/73, acrescentado pela Lei n. 11.924/2009) ou por ato de interessado, mediante requerimento ao magistrado. Realmente, na adoção o filho adotivo não pode conservar o sobrenome de seus pais de sangue; deverá acrescentar o do adotante (CC, art. 1.626). A decisão conferirá ao menor o sobrenome do adotante, podendo determinar a modificação do prenome, a pedido do adotante ou do adotado (CC, art. 1.627; Lei n. 8.069/90, art. 47, §§ 3a a 5a, acrescentado pela Lei n. 12.010/2009). Se a modificação de prenome for requerida pelo adotante será obrigatória a oitiva do adotando (art. 47, § 6a, da Lei n. 8.069/90, acrescido pela Lei n. 12.010/2009). A respeito, o Tribunal de Justiça de São Paülo (RT, 433:76) decidiu, ao tempo da vigência da Lei n. 3.133/57, que não havia nenhuma proibição em que, nas certidões de filhos adotivos, figurassem como avós os pais dos adotantes130. Na adoção regida pelo Código Civil, arts. 1.618 a 1.629, o mesmo ocorre, pois o adotado desliga-se de qualquer vínculo com os pais de sangue e parentes, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais (CC, art. 1.626). Com a celebração do casamento surge para qualquer dos nubentes o direito de acrescer, se quiser, ao seu o sobrenome do outro (CC, art. 1.565, § Ia), perdendo esse direito com a anulação do matrimônio, ou por deliberação em sentença de separação judicial (CC, art. 1.571, § 2a; Lei n. 8.408/92 e Lei n. 6.515/77, arts. 17, 18, 25, parágrafo único, e 50; RT, 185:521, 301:475, 547:64, 593:122; AJ, 79:90) se declarado culpado, voltando a usar o sobrenome de solteiro, desde que isso seja requerido pelo vencedor e não se configurem os casos do art. 1.578, I a 111, do Código Civil. Se inocente na ação poderá renunciar, a qualquer momento, o direito de usar o sobrenome do seu ex-consorte (CC, art. 1.578, § Ia). Na separação judicial consensual tem opção para usar, ou não, o nome de casado (CC, art. 1.578, § 2a). Pelo § 2a do art. 1.571 do Código Civil: "Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial". E na separação extrajudicial consensual e no divórcio extra130. Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 74; RT, 328:187. 234 judicial consensual (CPC, art. 1.124-A, com redação da Lei n. 11.441/2007) o ex-cônjuge perderá, havendo acordo, o nome adotado nas núpcias, retomando o seu nome de solteiro130_A. Pela Lei n. 6.015/73 (art. 57, §§ 2a e 3a, c/c CF, art. 226, § 6a, com a redação da EC n. 66/2010) a mulher solteira, desquitada (separada ou divorciada) ou viúva, que viva com homem solteiro, desquitado (separado ou divorciado) ou viúvo, poderá usar o apelido de família deste, se tiver filho com ele ou se a vida em comum já perdure por mais de 5 anos e desde que ele concorde com isso. Todavia, já se entendeu que duas pessoas solteiras, que vivam em união estável, não poderão alterar seus nomes, porque a adoção do nome requer impedimento legal ao casamento. Essa averbação do sobrenome do companheiro deve ser feita por acréscimo, pois a Lei n. 6.515, que implantou o divórcio entre nós, não permite a substituição do patronímico da mulher pelo do homem, mas aditamento deste àquele131. O convivente, entendemos, não terá esse direito, pois, por ser tal norma uma lei especial e de ordem pública, deverá ser interpretada restritivamente, visto que a lei, ao colocar o termo no feminino, só contempla a convivente. Para tanto, se o companheiro for separado judicialmente ou extrajudicialmente, sua ex-esposa não pode estar usando seu sobrenome e, se a convivente separada extrajudicial ou judicialmente estiver usando os apelidos do ex-marido ou do ex-conviverite, deverá renunciá-los por termo e averbar essa renúncia no Registro Civil. Embora o princípio da inalterabilidade do nome seja de ordem pública, sofre exceções quando: 1) Expuser o seu portador ao ridículo (Ciência Jurídica, 32:108; JB, 130:93; ADCOAS, n. 90049, 1983; RT, 623: 40, 791: 218, 543:192, 455:77, 424:78, 443:146, 416:140, 152:723, 169:662) e a situações vexatórias, desde que se prove o escárnio a que é exposto. P. ex.: Antonio Manso Pacífico de Oliveira Sossegado, Oceano Atlântico Linhares, Aricleia Café Chá, Céu Azul do Sol Poente, Leão Rolando Pedreira, Pedrinha Bonitinha Silva, Último Vaqueiro, Neide Navinda Navolta Pereira, Joaquim Pinto Molhadinho, C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o 130-A, Os arts. 1.571, § 22, 1.578, §§ 1E e 22, do CC e o art. 1.124-A do CPC poderão perder eficácia social, ante a EC n. 66/2010, que altera o § 6a do art. 226 da CF. 131. Walter Ceneviva, op. cit., p. 135. Vide RT, 426:240, que tratou desse caso antes da nova Lei dos Registros Públicos. Vide: Yussef S. Cahali, Adoção do nome de família da mulher pelo marido. Livro de Estudos Jurídicos, 8:416-21, 1994; SilmaraJ. Chinelatto e Almeida, O nome da mulher casada, 2001. A esse respeito, interessante é: Boi. AASP, 1.839:90 e s., 1994. 235 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv i l Antônio Noites e Dias, Sebastião Salgado Doce, Amin Amou Amado, Dezêncio Feverêncio de Oitenta e Cinco, Casou de Calças Curtas, Odete Destemida Correta, Antônio Dodói, Inocência Coitadinho, Antônio Treze de Julho de mil Novecentos e Dezessete; João da Mesma Data; Lança Perfume Rodometálico da Silva; Remédio Amargo; Restos Mortais de Catarina, Um Dois Três de Oliveira Quatro; Sossegado de Oliveira, Janeiro Fevereiro de Oliveira Março, Sum Tim An, Graciosa Rodela d'Alho, Antonio Carnaval Quaresma, Luciferino Barrabás, Maria Passa Cantando, Vitória Carne e Osso, Manuelina Terebentina Capitulina de Jesus do Amor Divino, Rolando pela Escada Abaixo, João Cara de José, Himeneu Casamentício das Dores Conjugais, Esputanarquia Oliveira Martins, Estroécio Empessoa de Oliveira, Kumio Tanaka (RT, 443:146); nomes divulgados pela imprensa, constantes dos arquivos do INSS, que autorizam sua mudança pela via judicial. Nem mesmo se deve admitir registro de nomes de personalidades célebres pela sua crueldade ou imoralidade, como, p. ex., Hitler, Osama bin Laden, por estigmatizarem a pessoa. É preciso lembrar que há casos em que certos prenomes conduzem seu portador a situação vexatória por suscitarem dúvidas quanto ao sexo a que pertencem, p. ex., Jacy, Juraci, Valdeci, Aimar, Francis, Andrea, Leslie etc., permitindo sua alteração. Já se decidiu (RJ, 258:105) pela mudança do nome “Santa" para quem professa religião evangélica, ante o vexame presumível em seu círculo social. Houve caso de óbice levantado por registrador, baseado no art. 55, parágrafo único, da Lei n. 6.015/73, para impedir o registro de nome civil de recém-nascida "Titílolá", mas sua objeção foi afastada, pois os pais têm o direito de escolher o prenome do filho, e além disso não se caracteriza a exposição ao ridículo de sua portadora, apesar de incomum, pois advém da língua iorubá, idioma falado por povos africanos oriundos do Senegal, Costa do Marfim, Ghana, Togo, Benim, Nigéria e Zaire, significando Tití, continuamente, e Lolá, honorável. O nome da criança tem a ligação com a tradição de seus genitores e se no futuro sentir-se ridicularizada, nada impede que postule sua modificação (CGJ, Proc. n. 3.089/2000). 2) Houver erro gráfico evidente (Lei de Registros Públicos, arts. 50 e 110; RT, 478:97, 433:75, 581:190, 609:67; 781:341; RF, 99:462; JB, 130:110; RJ, 324:146). P. ex., "Osvardo", quando o certo é Osvaldo, "Ulice", quando, na verdade, é Ulisses, por ter seu portador provado que em sua família os nomes eram tirados da mitologia grega, tendo um irmão chamado Homero (RT, 432:75); Durce, sendo o correto Dulce; Crovis, quando o correto é Clóvis. Trata-se de caso de retificação de prenome, e não de alteração. 236 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 3) Causar embaraços no setor eleitoral (RJTJSP, 134:206) e no comercial (RT, 133:659, 143:718, 145:170) ou em atividade profissional, evitando, p. ex., homonímia (RT, 383:186, 532:234), incluindo-se, p. ex., para solucionar o problema, o nome de família materno (CGJ, Proc. n. 1.635/2000). 4) Houver mudança de sexo (RT, 884:249 e 283, 828:333, 790:155; 825:373, 8 0 1 :195, 712:235, 662:149; JTJ, Lex, 2 1 2 :163-168; TJRJ, Ap. 2007.001.24198, rei. Des. M ônica C. Di Piero, j. 7-8-2007; TJRS, AC 70021120522 — 8a C. Cív., rei. Rui Portanova, j. 11-10-2007; BAASP, 2649:1746-04). Essa retificação de registro de nome só tem sido, em regra, admitida em caso de intersexual (RT, 672:108). Não há lei que acate a questão da adequação do prenome de transexual no registro civil. Em 1992, por decisão da 7a Vara de Família e Sucessões dè São Paulo, pela primeira vez o Cartório de Registro Civil averbou retificação do nome João para Joana, consignando no campo destinado ao sexo "transexual", não admitindo o registro como mulher, apesar de ter sido feita uma cirurgia plástica, com extração do órgão sexual masculino e inserção de vagina, na Suíça. Não permitindo o registro no sexo feminino, exigiu-se que na carteira de identidade aparecesse o termo "transexual" como sendo o sexo de sua portadora. O Poder Judiciário assim decidiu porque, do contrário, o transexual se habilitaria para o casamento, induzindo terceiro em erro, pois em seu organismo não estão presentes todos os caracteres do sexo feminino (Processo n. 621/89, 7- Vara da Família e Sucessões). Rosa Maria Nery, apesar de ser contrária à mudança de sexo, entende que, se esta foi constatada, o registro deve fazer a acomodação. Os documentos têm de ser fiéis aos fatos da vida, logo, fazer a ressalva é uma ofensa à dignidade humana. Realmente, diante do direito à identidade sexual, como ficaria a pessoa se se colocasse no lugar de sexo "transexual"? Sugere a autora que se faça, então, uma averbação sigilosa no registro de nascimento, assim, o interessado, no momento do casamento, poderia pedir, na justiça, tuna certidão "de inteiro teor", onde consta o sigilo. Seria satisfatório que se fizesse tal averbação sigilosa junto ao Cartório de Registros Públicos, constando o sexo biológico do que sofreu a operação de conversão de sexo, com o intuito de impedir que se enganem terceiros. Antônio Chaves, por sua vez, acha que não se deve fazer qualquer menção nos documentos, ainda que sigilosa, mesmo porque a legislação só admite a existência de dois sexos: o feminino e o masculino e, além disso, veda qualquer discriminação. Com a entrada em vigor da Lei n. 9.708/98, alterando o art. 58 da Lei n. 6.015/73, o transexual operado teria base legal para alterar o seu prenome, substituindo-o pelo apelido público notório, com que é conhecido no meio em que vive (TJRS, AC 70000585836, j. 31-5-2000, rei. Des. 237 Sérgio F. Vasconcellos Chaves; RT, 801:195), acatando-se o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana. 5) Houver apelido público notório, que pode substituir o prenome do interessado, se isso lhe for conveniente e desde que não seja proibido em lei (art. 58 e parágrafo único da Lei n. 6.015/73, com redação da Lei n. 9.708/98; RT, 767:311). 6) For necessária a alteração de nome completo para proteção de vítimas e testemunhas de crimes, bem como de seu cônjuge, convivente, ascendentes, descendentes, inclusive filhos menores, e dependentes, mediante requerimento ao juiz competente para registros públicos, ouvido o Ministério Público. O procedimento terá rito sumaríssimo e correrá em segredo de justiça. Concedida a alteração, esta deverá ser averbada no registro original de nascimento, e os órgãos competentes fornecerão os documentos decorrentes da alteração. Cessada a coação ou ameaça a que deu causa à mudança de nome, o protegido poderá solicitar judicialmente o retomo à situação anterior, com a alteração para o nome original, em petição que será encaminhada pelo Conselho deliberativo e terá manifestação prévia do Ministério Público. Assim, por razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, será admitida a substituição do prenome, por determinação em sentença de juiz competente, ouvido o Ministério Público (Lei n. 9.807/99, arts. 9a, §§ Ia a 5a, 16 e 17; Lei n. 6.015/73, arts. 57, § 7a, e 58, parágrafo único). 7) Houver parentesco de afinidade em linha reta, pois, pelo art. 57, § 8e, da Lei n. 6.015/73 (acrescentado pela Lei n. 11.924/2009): "O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2a e 7a deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família". Euclides de Oliveira traça alguns parâmetros para tanto: a) pedido feito por enteado, com anuência do padrasto ou madrasta e com representação processual por advogado; b) justificação do pedido, demonstrando-se afetividade, vínculo de afinidade e boa convivência familiar; c) competência é da vara de registro público; ã) intervenção do Ministério Público, como fiscal da lei; e) representação do enteado menor pelos pais registrários, que deverão anuir no acréscimo de apelido de família. E, havendo recusa de um deles, ter-se-á suprimento judicial do consentimento, exceto se comprovada a justa causa para aquela recusa; f) inclusão do patronímico do padrasto ou madrasta ao do enteado. O apelido de família do padrasto ou madrasta poderá ser anteT e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 238 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o posto ou posto em seqüência ao de origem; g) inalterabilidade dos patronímicos dos avós do requente; h) possibilidade de alteração judicial do patronímico, havendo outro vínculo de afinidade, com novo padrasto, para obter novo acréscimo de patronímico. Portanto, é possível acrescer ao sobrenome, o da madrasta ou padrasto, havendo socioafetividade, ante a existência de família recomposta, marcada pela afeição, convivência cotidiana e pelo vínculo de afinidade. Deveras, o art. 56 da Lei n. 6.015/73 dispõe que "o interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa", com a observância do disposto no art. 57 desse mesmo diploma legal e desde que haja motivo justo (RT, 429:123, 433:232; STJ, REsp 538.187/RJ, rei. Min. Nancy Andrighi, j. 21-2-2005). Para tanto poderá encaixar, no próprio nome, o sobrenome materno (JB, 130:130), o avoengo ou o do padrasto (STJ, Revista Consultor Jurídico, 28-11-2000) por abandono do pai genético; efetuar traduções (RT, 144:758,147:96, 215:186, 492:86; JB, 130:150 e 157; em contrário, RT, 142:648); transformar prenome simples em composto (RT, 777:377), ou duplo em simples, salvo se se tratar de nome célebre, como Marco Aurélio, João Batista132, desde que respeite o apelido de família. Todavia, tem-se 132. Mário Guimarães, Estudos de direito civil, p. 19; Ney Moura Teles, Direito eleitoral, São Paulo, Atlas, 1998, p. 80 e 81; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 97; R. limongi França, O problema jurídico da homonímia, RT, 287:52; Retificação de nome civil, RT, 457:49; Possibilidade de entremear a alcunha ou o cognome, mantendo-se prenome e apelido de família: Ciência Jurídica, 68:132; Tania da S. Pereira e Antonio C. M. Coltro, A socioafetividade e o cuidado: o direito de acrescer o sobrenome do padrasto. Direito das famílias — em homenagem a Rodrigo da C. Pereira (org. M? Berenice Dias), São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 343 a 358; Eudides de Oliveira, Com afim e com afeto, fiz meu nome predileto — parentesco por afinidade gera afeto e direito ao nome do padrasto ou da madrasta. Direito das famílias — em homenagem a Rodrigo da C. Pereira (org. Ma Berenice Dias), São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 375 e 376; Ferreira e Galindo, Do sobrenome do padrasto e da madrasta — considerações a respeito da Lei n. 11.9242009. Revista IOB de Direito de Famttia, 56:80 a 87; Itamar Espíndola, Escolha bem o nome de seu filho, Ceará: ed. Fortaleza, 1974; Alteração de prenome composto, RT, 596:44, 148:673, 506:85, 612:87, 659:154; JB, 130:126 e 159. "Substituição de prenome. Possibilidade prevista no artigo 58, da Lei n. 6.015/73, com a redação dada pela Lei n. 9.708/98, desde que demonstrada a publicidade e notoriedade do apelido. Julgamento antecipado da lide. Cerceamento probatório. Nulidade da sentença. Recurso provido em parte. I. O artigo 58 da Lei de Registros Públicos confere ao interessado a substituição do prenome por apelidos, desde que demonstrada a notoriedade e publicidade destes, em lugar daquele, o que se demonstra através de regular instrução. II. Se a parte interessada arrola testemunhas 239 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il e protesta pela sua inquirição, não há como deixar de colher-se a prova e considerar não legitimado o pedido, diante da nova redação do referido artigo, modificado pela Lei n. 9.708/98" (TJPR, AC 00885152, 2. Câm. Cív., rei. Des. Conv. Munir Karam, DJE-PR, de 19 mar. 2001). Já se decidiu que desavença entre pais não justifica a retirada do sobrenome paterno do nome do filho para incluir o apelido de família materno (STJ, 4- T., rei. Cesar Asfor Rocha, j. 8-6-2000). Viúva pode excluir nome de falecido marido: RT, 802: 361. Competirá ao menor quando atingir a maioridade civil requerer, se quiser, a alteração do apelido de família. Sobre retificação de nome, vide arts. 40, 57 e 110 da Lei n. 6.015/73, com a redação da Lei n. 1-2.100/2009: "Art. 40. Fora da retificação feita no ato, qualquer outra só poderá ser efetuada nos termos dos arts. 109 a 112 desta Lei.'' "Art. 57. A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei." "Art. 110. Os erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção poderão ser corrigidos de ofício pelo oficial de registro no próprio cartório onde se encontrar o assentamento, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou procurador, independentemente de pagamento de selos e taxas, após manifestação conclusiva do Ministério Público. § Ia Recebido o requerimento instruído com os documentos que comprovem o erro, o oficial submetê-lo-á ao órgão do Ministério Público que o despachará em 5 (cinco) dias. § 2a Quando a prova depender de dados existentes no próprio cartório, poderá o oficial certificá-lo nos autos. § 3a Entendendo o órgão do Ministério Público que o pedido exige maior indagação, requererá ao juiz a distribuição dos autos a um dos cartórios da circunscrição, caso em que se processará a retificação, com assistência de advogado, observado o rito sumaríssimo. § 4a Deferido o pedido, o oficial averbará a retificação à margem do registro, mencionando o número do protocolo e a data da sentença e seu trânsito em julgado, quando for o caso." Sobre nome de transexual: Antônio Chaves, Direito à vida e ao próprio corpo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994, p. 161; Luiz F. Borges D'urso, A mudança no registro do transexual, Consulex, p. 429 e 430; Tereza R. Vieira, Mudança de sexo — aspectos médicos, psicológicos e jurídicos, São Paulo, 1996, p. 138, e Nome e sexo — mudanças no registro civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008; José F. O, da Silveira, O transexualismo na justiça, 1995; Maria Helena Diniz, O estado atual do biodireito, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 235-42; José Roberto Neves Amorim, O direito ao nome e o transexualismo, Atualidades Jurídicas, 5:177-82; Antonio Fernandes da Luz, Transexualismo: o direito ao nome e ao sexo, in Família e jurisdição (coords. Eliene F. Santos e Ariel H. de Sousa, Belo Horizonte, Del Rey, 2005, p. 19-32; Sílvia Vassilief, Direito à adequação do nome ao novo estado pessoal em função de viuvez e de cirurgia de inversão sexual de genital, A outra face do Poder Judiciário, coord. Giselda M. F. Novaes Hironáka, Belo Horizonte, Del Rey, 2005, p. 6-11; Javier López Galiacho Perona, La problemática jurídica de la transexualidade, Madrid, McGraw-Hill, 1998, p. 294; Márcia M. Menin, Um novo nome, uma nova identidade sexual: o direito do transexual rumo a uma sociedade sem preconceitos, A outra face, cit., p. 12-29. 240 C u r s o d e D ir e i t o C iv il B r a s i l e ir o Já houve decisão no sentido de que: "Alteração de registro civil. Transexual. Cirurgia de transgenitalização realizada. Finalidade terapêutica. Dever constitucional do Estado de promover saúde a todos. Improvimento do apelo. Unânime. Pedido para retificar o registro civil, em face da realização de cirurgia de transgenitalização. Proteção à saúde como dever do Estado. Defesa da cidadania, afastando situação vexatória. Aplicação das normas constitucionais referentes aos direitos e garantias individuais e de proteção à saúde. Licitude da retificação do registro civil do autor nos termos da sentença apelada. Necessidade da publicação de editais noticiando a retificação do prenome do autor, para salvaguarda de possíveis direitos de terceiros. Improvimento do apelo. Decisão unânime" (TJPE, 5a Câm. Cív., AC n. 85.199-6/Paulista-PE, rei. Des. Márcio de Albuquerque Xavier, v. u., j. 26-2-2003). "Registro civil — Transexualidade — Prenome — Alteração — Possibilidade — Apelido público e notório — O fato de o recorrente ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a pretensão já que o nome registrai é compatível com o sexo masculino. Diante das condições peculiares, nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo. Ademais, tratando-se de um apelido público e notório justificada está a alteração. Inteligência dos arts. 56 e 58 da Lei n. 6.015/1973 e da Lei n. 9.708/1998. Recurso provido" (TJRS, AC 70000585836, 7a Câm. Cív., rei. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, DOE, 31-5-2000). "Transexual — Retificação de registro civil — Cirurgia realizada no exterior — Mero atestado médico constatando sua realização. Ausência de cumprimento das normas brasileiras sobre o tema. Procedimento que precede a análise da mudança de sexo no registro civil. Indeferimento da alteração do sexo no assento de nascimento. Recurso a que se dá provimento. Súmula: deram provimento ao recurso" (TJMG, AC 1.0543.04.910511-6/001(1), 8a Câm. Cív., rei. Des. Roney Oliveira, DJMG, 18-8-2006). "Apelação cível — Registro civil — Alteração do registro de nascimento — Nome e sexo — Transexualismo — Sentença acolhendo o pedido de alteração do nome e do sexo, mas determinando segredo de justiça e vedando a extração de certidões referentes à situação anterior. Recurso do Ministério Público insurgindo-se contra a não publicidade do registro. Sentença mantida. Recurso desprovido. (Segredo de Justiça)" (TJSC, AC 70006828321, 7- Câm. Cív., rei. Des. Catarina Rita Krieger Martins, j. 11-12-2003). "Apelação cível — Transexualismo — Retificação de registro civil — Nome e sexo — Cerceamento do direito de defesa reconhecido — Procedimento cirúrgico de transgenitalização realizado — É possível a alteração do registro de nascimento relativamente ao sexo e ao nome em virtude da realização da cirurgia de redesignação sexual. Vedação de extração de certidões referentes à situação anterior do requerente" (TJRS, AC 70013580055, Comarca de Porto Alegre, 8a Câm. Cív., rei. Des. Claudir Fidelis Faccenda, j. 17-8-2006). Consulte: Boi. AASP, 2.359/3005, de 22-3-2004. "Inviável a retificação de assento de nascimento para alteração de sexo e nome, em decorrência de operação plástica, por impossibilidade jurídica do pedido, inocorrendo, no caso, ofensa ao princípio constitucional da legalidade" (STF, ADCOAS, n. 81.512, 1982). Sobre o assunto: Tereza Rodrigues Vieira, Mudança de sexo: aspectos médicos, psicológicos e jurídicos, São Paulo, 1996; Luiz Flávio Borges D'Urso, A mudança no registro do transexual, Tribuna do Direito, jan. 1996, p. 27. A Lei de Quebec (Canadá), de 31-12-77, art. 18, “b", estabelece que na demanda do transexual dever-se-á acolher o nome que ele deseja adotar. 241 T e o r ia G e r a l d o D ir e i t o C iv il entendido que não haverá necessidade de o menor aguardar a maioridade para alterar nome ridículo, corrigir falha ortográfica, ou incluir o nome de família materno (RT, 562:73,662:72), desde que representado ou assistido. Mas, para acrescentar novos nomes intermediários, como, p. ex., inserir um apelido pelo qual ficou conhecido no meio social em que vive (TJPI, Ap. 3.000.808, rei. Des. João B. Machado, j. 15-10-2003; RT, 806:173, 824:326), colocar o nome dos avós (TJMG, Ac. 1.0686.08.219812-4/001, 4a Câm. Cív., rei. Lopardi Mendes — publ. 9-9-2009) etc., terá de aguardar o prazo decadencial de um ano após ter atingido a maioridade. Depois desse prazo a alteração apenas poderá ser feita por exceção e motivadamente, mediante a sentença judicial (Lei n. 6.015/73, art. 57)132'A. Percebe-se que as ações concernentes ao nome visam sua retificação, para preservar o verdadeiro, e sua contestação, para evitar usurpação de terceiro que o utilize em publicações, filmes, propagandas, teatros, expondo-o ao desprezo público, mesmo que não tenha intenção difamatória133 (CC, art. 17). Além disso, o art. 63 da Lei dos Registros Públicos determina alteração compulsória de prenome no caso de gêmeos ou irmãos de igual prenome, que deverão ser inscritos com prenome duplo ou nome completo diverso, de modo que possam distinguir-se. A jurisprudência tem entendido que o prenome que deve constar do registro é aquele pelo qual a pessoa é conhecida e não aquele que consta do registro. Deveras já se decidiu que "se o prenome lançado no Registro CiNo Brasil, a Resolução n. 615, de 8 de setembro de 2011, do Conselho Federal de Serviço Social, dispõe sobre a inclusão e uso do nome social da assistente social travesti e do assistente social transexual nos documentos de identidade profissional. 132-A. RT, 637:69. "A alteração do nome no Registro Civil só é admitida excepcionalmente. A alteração por mais de uma vez foge totalmente à exceção benigna. Sem perda do próprio nome, pode a pessoa adotar outro pelo qual se tome mais conhecido, o que é muito comum no mundo das letras e das artes, sem incorporação ao Registro Civil." Registro de nascimento — Retificação — Inclusão do patronímico da avó materna — Possibilidade. "Apelação cível. Retificação de registro de nascimento. Inclusão do patronímico da avó materna. Menoridade civil. Possibilidade. O acréscimo de apelidos de família ao nome, em especial o patronímico de ascendente materno, é perfeitamente possível nos termos da Lei de Registros Públicos, não havendo razões jurídicas para não se permitir a alteração ainda durante a menoridade civil, mormente, se o menor venha devidamente representado. Demais disso, vale registrar que a Lei de Registros Públicos permite o acréscimo de patronímico, desde que tal alteração não leve à perda de personalidade e a impossibilidade de identificação da pessoa e nem prejudique terceiros" (TJMG, AC 1.0686.08.219812-4/001, 4a Câm. Cív., Rei. Des. Dárcio Lopardi Mendes, DJe, 9-9-2009). 133. Orlando Gomes, op. cit., p. 164; Venosa, op. cit., p. 158-60. 242 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o vil, por razões respeitáveis e não por mero capricho, jamais representou a individualidade do seu portador, a retificação é de ser admitida" (RT, 143:270, 154:806, 185:424, 532:86, 412:178, 507:69, 527:106, 534:79, 537:75), Por exemplo, houve decisão que acolheu a razão de pessoa que sempre fora conhecida no meio social como Maria Luciana, enquanto seu registro constava como Maria Aparecida (RT, 532:86); ou a que acatou a substituição de Maria do Socorro para Sarah Regina, tendo em vista que o primeiro causava depressão em sua portadora, por ser o nome de sua falecida irmã (RJTJSP, 134:210)133_A. Estrangeiro, portador de nome de difícil pronúncia, pode pleitear alteração do seu prenome, se utilizar nome diverso do constante no registro para facilitar, p. ex., sua atividade empresarial; logo, nada obsta que se altere o nome de Yoshiaki para Cláudio, como é conhecido no meio negocial, por já ter havido aquisição dele pela longa posse, unida à ausência de fraude à lei, visto que não há intentio de ocultar sua identidade. 133-A. A 3a Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ, REsp 538.187), com base no voto da ministra Nancy Andrighi e por unanimidade, garantiu a Maria Raimunda o direito de alterar seu nome para Maria Isabela. Em primeira instância e no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) o pedido para trocar de nome havia sido rejeitado. Ela entrou com o pedido de troca de nome na Vara de Família da Comarca de São Gonçalo, alegando que o nome Raimunda lhe trouxe toda a sorte de constrangimentos e lhe provocou dissabores e transtornos. Informou que era alvo de troças e brincadeiras, quer na vizinhança, quer no seu local de trabalho, o que a levou a adotar o nome de Maria Isabela, que passou a ser a sua identificação nos lugares que freqüenta, tendo sido assimilado como se fosse verdadeiramente seu. Em primeira instância, o juiz rejeitou seu pedido por entender que a substituição do nome só se justifica quando ele sujeita a pessoa a situação ridícula ou humilhante, o que não ocorreria com Raimunda, um nome "perfeitamente normal e comum". Essa decisão foi mantida por unanimidade pelo TJRJ, que entendeu ser a regra geral a imutabilidade do prenome, não se encontrando o pedido de Maria Raimunda em nenhuma das exceções expressamente previstas na lei. Ao contrário, a ministra Nancy Andrighi entendeu haver motivo suficiente para a troca. Para ela, tal pedido não decorre de mero capricho pessoal, mas de necessidade psicológica profunda. A relatora reconheceu que os motivos apresentados são suficientes para se proceder à alteração do nome pretendida, porque, além do constrangimento de natureza íntima que sente ao ser chamada por Maria Raimunda, já é conhecida em seu meio social como Maria Isabela. Assim, a 3a Turma do STJ acolheu o recurso especial para determinar a alteração do nome civil de Maria Raimunda para Maria Isabela, determinando a expedição de ofício ao cartório competente a fim de que fosse feita a retificação do registro dvil da recorrente, averbando-se a alteração deferida. Sobre ação de retificação de nome: RT, 853:323; 822:245. 243 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il e.2. Estado da pessoa natural Segundo Clóvis Beviláqua134, o "estado das pessoas é o seu modo particular de existir", que pode ser encarado sob o aspecto individual ou físico, familiar e político. Graficamente, temos: | ESTADO | í I / O t X Familiar Político O estado individual ou físico é a maneira de ser da pessoa quanto à idade (maior e menor), sexo (feminino e masculino) e saúde mental e física 134. Clóvis, op. cit., p. 76 e 77. Vide Lei n. 7.116/83, sobre Carteira de Identidade; Resolução n. 1/2010 da Secretaria Executiva do Minsitério da Justiça sobre regimento interno do Comitê Gestor do Sistema Nacional de Registro de Identificação civil; Resolução n. 2/2010 da Secretaria Executiva do Ministério da Justiça sobre especificações técnicas básicas do documento de Registro de Identidade Civil; e Resolução n. 1.287/89 do Conselho Federal de Medicina, a respeito de cédula de identidade para médicos expedida pelos Conselhos Regionais; Lei n. 9.454, de 7 de abril de 1997, que institui o número único de Registro de Identidade Civil; Decreto n. 2.170/97, que dá nova redação ao art. 2a do Decreto n. 89.250/83, relativo à carteira de identidade. Vide Lei n. 9.453/97, que acrescenta parágrafo ao art. 2a da Lei n. 5.553/68, sobre apresentação e uso de documentos de identificação pessoal, e Resolução Normativa n. 190/97 do Conselho Federal de Administração, sobre gravação da expressão "não doador de órgãos e tecidos" na Carteira de Identidade profissional do administrador, mas diante de alteração do art. 4a da Lei n. 9.434/97 pela Lei n. 10.211/2001 não mais admitindo a doação post mortem presumida de órgãos e tecidos humanos, seus §§ Ia a 5a, alusivos à possibilidade de evitá-la, gravando a expressão "não doador de órgãos e tecidos" em documentos de identidade, passam a ter eficácia suspensa. Jndividuai ou físico 244 C o r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o (são de espírito, alienado, surdo-mudo), elementos que influenciam sua capacidade civil, como vimos em páginas anteriores135. O estado familiar indica a sua situação na família: casado, solteiro, viúvo, separado, divorciado, em relação ao matrimônio. No que concerne ao parentesco consanguíneo: pai, mãe, filho, avô, avó, neto, irmão, tio, sobrinho, primo. E quanto à afinidade: sogro, sogra, genro, nora, madrasta, padrasto, enteado, enteada, cunhado136. Diante da grande importância do estado individual e familiar da pessoa natural o art. 9- requer a inscrição em registro público de nascimento, casamento, óbito, emancipação, interdição, sentença declaratória de ausência e de morte presumida e o art. 10 exige a averbação em registro público das sentenças que decretarem a nulidade ou anulação do casamento, o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal, pela reconciliação, se separados, ou pelo novo casamento, se divorciados; dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação e dos atos judiciais ou extrajudiciais de adoção. O estado político é a qualidade jurídica que advém da posição da pessoa na sociedade política, caso em que é estrangeira, naturalizada ou nacional137. 135. Orlando Gomes, op. cit., p. 152; W. Bairos Monteiro, op. cit., p. 81; Clóvis, op. cit., p. 77, 136. A Lei n. 8.069/90 (arts. 4E e 19 a 52) consagra o direito à convivência familiar. O menor terá direito de ser criado no seio de sua família natural, e, se havido fora do casamento, terá direito de ser reconhecido. Se não o for, poderá até ingressar em juízo com ação de investigação de paternidade, visando o reconhecimento (RT, 642:188), até mesmo cumulada com pedido de alimentos (RT, 610:104, 594:104). O DNA, nova técnica descoberta por Alee Jeffreys, possibilitará a investigação do vínculo genético mediante exame de sangue. Para a verificação de paternidade serão analisados os materiais da mãe, do filho e do suposto pai. Esse método é muito utilizado para identificar natimortos, em caso de aborto e gestação interrompida, sendo de grande valia para a identificação de crianças trocadas e seqüestradas. O DNA é um avanço em relação áo HLA, que, tecnologicamente mais simples em sua execução, é bastante útil no esclarecimento do vínculo genético e muito utilizado em transplantes, na procura do doador mais adequado. Pode-se usar na investigatória de paternidade primeiramente o HLA e depois o DNA. "O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercido contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiçá" (art. 27 da Lei n. 8.069/90). A colocação em família substituta será feita mediante guarda, tutela ou adoção, levando-se em conta o grau de parentesco, a afinidade ou a afetividade (Lei n. 8.069/90, arts. 28 a 52; CC, arts. 1.618 a 1.629). Orlando Gomes, op. cit., p. 151; Clóvis, op. cit., p. 77; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 81. 137. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 81; Miguel J. Ferrante, Nacionalidade — brasileiros natos e naturalizados, São Paulo, Saraiva, 1984; Yussef Cahali, Estatuto do Estrangeiro, São Paulo, Saraiva, 1983; João Grandino Rodas, A nacionalidade da pessoa física, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990; Wilba Lúcia M. Bemardes, Da nacionalidade, Belo Horizonte, Del Rey, 1996. 245 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Como se vê, o estado da pessoa é a soma de suas qualificações, permitindo sua apresentação na sociedade numa determinada situação jurídica, para que possa usufruir dos benefícios e vantagens dela decorrentes, e sofrer os ônus e obrigações que dela emanam. O estado civil da pessoa regula-se por normas de ordem pública, que não podem ser modificadas pela vontade das partes, daí a sua indivisibilidade, indisponibilidade e imprescritibilidade138. O estado civil é uno e indivisível, pois ninguém pode ser simultaneamente casado e solteiro, maior e menor139, brasileiro e estrangeiro, salvo nos casos de dupla nacionalidade140. Por ser o estado da pessoa um reflexo de sua personalidade, ele n ão . pode ser objeto de comércio, por ser indisponível. Em virtude disso é irreVide Lei n. 818/49, arts. 6a e 33, com redação da Lei n. 6.014/73; Lei n. 6.192/74. Sobre a situação jurídica do estrangeiro vide a Lei n. 6.815/80, regulamentada pelo Decreto n. 86.715/81 (que se refere ao nome nos arts. 31 e 42), alterada pela Lei n. 6.964/81; Lei n. 7.180/83; Resoluções Normativas n. 33 e 34/99; Resolução n. 325/99 do Ministério do Trabalho e Emprego sobre autorização de trabalho a estrangeiro; RTJ, 67:260, 66:284, 73:414, 95:589, 98:661, 102:349; RF, 204:131, 217:385; RT, 464:260, 476:247, 481:427, 542:76, 525:92, 538:107, 563:398, 551:412, 561:244, 507:475, 558:383, 564:396, 566:55; Súmulas 1, 2, 259, 367, 381, 421, 59, 60, 61, 62, 63 e 64 do STF. A Lei n. 5.145/66 dispõe sobre a naturalização dos filhos menores nascidos antes da naturalização dos pais. Constituição Federal, arts. 1 2 ,1, a, b, c, §§ 3a e 4a; 12, II, a, b, §§ Ia e 2a; 1 5 ,1; 5a, LI; ADCT, art. 95, e Emendas Constitucionais n. 3/94 e n. 54/2007. Vide Portaria n. 702/94 do Ministério da Justiça, sobre modelos de requerimento de naturalização. O Decreto n. 98.500/89, que alterava o art. 11 do Regulamento de passaportes (Dec. n. 84.541/80), acrescentando § 4a, foi revogado, juntamente com o Decreto n. 98.500/89, pelo art. 5a do Decreto n. 637/92 (Regulamento de documentos de viagem), que dispôs, no art. 31, sobre o prazo de validade do passaporte comum, que é de dez anos, prorrogável por igual período, concedendo ao órgão responsável a possibilidade de redução fundamentada daquele prazo. A Lei n. 8.988/95 fixa o prazo de validade da cédula de identidade de estrangeiro em nove anos. Vide Portaria de 12 de maio de 1995 do Ministério da Justiça, que institui modelo único de cédula de identidade para estrangeiro e determina o recadastramento dos estrangeiros residentes no País; Decreto n. 4.400/2002, altera Decreto n. 2.771/98, que regulamenta a Lei n. 9.675/98 sobre registro provisório para estrangeiro em situação ilegal no território nacional. A Lei n. 9.265/96 dispõe sobre a gratuidade dos atos necessários ao exercício da cidadania. E o Decreto n. 4.246/2002 promulga a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (aqueles que não são considerados como seus nacionais por nenhum Estado). Pela EC n. 3/94, portugueses, que residirem permanentemente no Brasil, havendo reciprocidade em favor dos brasileiros, terão os direitos inerentes aos brasileiros, salvo os próprios dos brasileiros natos, previstos na CF/88. Sobre naturalização: Lei n. 6.815/80 e CF, art. 12, II, b. 138. Orlando Gomes, op. cit., p. 152. 139. Orlando Gomes, op. cit., p. 153; Colin e Capitant, Cours de droit civil français, e Henri de Page, Traité élémentaire de droit civil belge, v. 1. 140. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 312. 246 nunciável, de modo que nula seria a renúncia de alguém ao estado de filho141. Contudo, essa indisponibilidade não acarreta a impossibilidade de sua mutação, pois, p. ex., o casado pode passar a ser viúvo ou divorciado. Todavia, tal mutabilidade não é arbitrária, pois requer a verificação de determinadas condições ou formalidades legais, como: morte, divórcio, separação extrajudicial ou judicial, ação de investigação de paternidade, naturalização, adoção etc.142. É imprescritível, por ser elemento integrante da personalidade, não podendo desaparecer pelo simples decurso do tempo; nasce com a pessoa e com ela desaparece, por ocasião de seu falecimento143. O estado civil recebe proteção jurídica de ações de estado, que têm por escopo criar, modificar ou extinguir um estado, constituindo um novo, sendo, por isso, personalíssimas, intransmissíveis e imprescritíveis, requerendo a intervenção estatal. É o que se dá com a interdição, separação, divórcio, anulação de casamento etc., que resultam de sentença judicial144 ou de ato notarial. e.3. Domicílio O domicílio é a sede jurídica da pessoa145, onde ela se presume presente para efeitos de direito e onde exerce ou pratica, habitualmente, seus atos e negócios jurídicos146. C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 141. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 312. 142. Orlando Gomes, op. cit., p. 152; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 312 e 313. 143. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 313 e 314. 144. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 316-20; Orlando Gomes, op. cit., p. 153. 145. O vocábulo "domicílio" deriva de domtis, designando o lugar em que a pessoa estabeleceu o seu lar doméstico e concentrou o conjunto de seus interesses. Esta é a definição do direito romano (L. 7. Cod. de incol.): “ubi quis larem rerumque ac fortunanun summam constituit; unde non sit discessurus, si nil avocet; unde, quum profectus est, peregrinari videtur, quo si rediit, peregrinari iam destitif. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 271. Aubry e Rau (Droit civil, 5. ed., t. 1, § 141) o consideram como uma relação entre uma pessoa e um lugar, onde é reputada presente, posto que aí não resida habitualmente. 146. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 132; Zeno Veloso, O domicílio, RDC, 75:32. Bruno Lewicki, O domicílio no Código Civil de 2002, Aparte geral,, cit., p. 123 e s.; José Bonifácio B. de Andrada e Erika Moura Freire, Domicílio no novo Código Civil, O novo Código Civil — estudos em homenagem a Miguel Reale, São Paulo, LTr, 2003, p. 85-100. Vide CPC, arts. 94 e 96; CC, art. 327; Lei n. 9.099/95, art. 4a; Súmula 23, de 6 de outubro de 2006, da Advocacia Geral da União: É facultado a autor domici­ 247 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Entretanto, convém distingui-lo da residência e da habitação. Na habitação ou moradia tem-se uma mera relação de fato, ou seja, é o local em que a pessoa permanece, acidentalmente, sem o ânimo de ficar (p. ex., quando alguém hospeda-se num hotel em uma estância climática ou aluga uma casa de praia, para passar o verão). A residência é o lugar em que habita, com intenção de permanecer, mesmo que dele se ausente temporariamente. O domicílio é um conceito jurídico, por ser o local onde a pessoa responde, permanentemente, por seus negócios e atos jurídicos147, sendo importantíssimo para a determinação do lugar onde se devem celebrar tais atos, exercer direitos, propor ação judicial, responder pelas obrigações (CC, arts. 327 e 1.785). O domicílio civil, segundo o art. 70 do Código Civil, é o lugar onde a pessoa estabelece sua residência com ânimo definitivo, tendo, portanto, por critério a residência. E acrescenta no art. 72 que: "É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida". Com isso admite-se o domicílio profissional, quebrando-se o princípio da unidade domiciliar. Tanto o local da residência como o do exercício da profissão são considerados domicílios, por ser comum, hodiernamente, nos grandes centros urbanos, que as pessoas residam numa localidade e trabalhem em outra. Há dois elementos: o objetivo, que é a fixação da pessoa em dado lugar, e o subjetivo, que é a intenção de ali permanecer com ânimo definitivo. Importa em fixação espacial permanente da pessoa. Admite nossa legislação civil, em seu art. 71, a pluralidade domiciliar, ao prescrever: "Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas" e no parágrafo único do art. 72 ao dispor: "Se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles constituirá domicílio para as relações que lhe corresponderem". Logo, poderá ser acionada em qualquer desses lugares. P. liado em cidade do interior o aforamento de ação contra a União também na sede da respectiva Seção Judiciária (capital do Estado-membro). 147. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 273; Orlando Gomes, op. cit., p. 166; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 132; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 315; Rossel e Mentha (Manuel de droit civil suisse, v. 1, n. 123, p. 97) dão-nos o seguinte exemplo: um estudante que passa um ano na Europa, cumprindo "bolsa de estudos", não tem ali seu domicílio, embora lá resida e tenha o centro de suas ocupações estudantis. De Page, op. cit., n. 309. 248 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o ex., se alguém morar com sua família em um bairro da capital paulista, tendo escritórios no centro e na cidade de Santos, onde comparece em dias alternados, poderá ser acionado em qualquer desses lugares (CPC, art. 94, § l 2), sendo lícito ao autor escolher um deles (RT, 420:307, 464:189, 229:283, 214:314; STF, Súmula 483). Se alguém, por exemplo, tiver firmas ou escritórios em Piracicaba, Americana e Campinas, onde, em razão do ofício, comparece em dias alternados da semana, considerar-se-ão seus domicílios quaisquer daqueles centros de ocupações habituais para as relações jurídicas que lhes corresponderem. P. ex., "A" é dono de uma fábrica de azulejos em Piracicaba, de uma construtora em Americana e de uma loja especializada em materiais de construção em Campinas; logo, seu domicílio referente a venda de materiais de construção é em Campinas; o alusivo à obrigação de construir prédios em Americana e o atinente à produção de azulejos em Piracicaba. Com isso acata o novo Código Civil, como já apontamos, o domicílio profissional (centro habitual de ocupação, que é o lugar onde a pessoa exerce, com habitualidade, sua atividade ou serviço) e quebra o princípio da unidade domiciliar. Tanto o local de residência como o do exercício da profissão são considerados domicílios, por ser comum, hodiemamente, nos grandes centros urbanos, que as pessoas residam numa localidade e trabalhem em outra. Porém, se a pluralidade for de réus (CPC, art. 94, § 4a), com diferentes domicílios, serão demandados no foro de qualquer deles, à escolha do autor (AJ, 89:452)148. Quando a norma processual diz que o réu deve ser acionado em seu domicílio, significa que a ação deve ser proposta na comarca onde tem o centro de seus negócios ou residência e não na rua ou bairro em que se situa. O nosso Código Civil, em seu art. 73, admite que há casos excepcionais em que um indivíduo não tem domicílio fixo ou certo, ao estabelecer que aquele que não tiver residência habitual (nômade, como p. ex. o cigano), ou empregue a vida em viagens, sem ponto central de negócios (artista de circo), terá por domicílio o lugar onde for encontrado (CPC, art. 94, § 2e). Tal lugar não é propriamente o domicílio, mas vale como domicílio, afirma Zeno Veloso. Trata-se do domicílio aparente ou ocasional, apontado por Henri de Page, visto que cria a aparência de um domicílio num local que pode 148. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 135. 249 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil ser considerado por terceiro como sendo o seu domicílio. Presumir-se-á que a pessoa está domiciliada no lugar em que for encontrada149. Duas são as espécies de domicílio: 1) Necessário ou legal, quando for determinado por lei, em razão da condição ou situação de certas pessoas. Assim: a) o recém-nascido adquire o domicílio de seus pais150, ao nascer; b) o incapaz (CC, arts. 3S e 4S), o de seu representante ou assistente (CC, art. 76, parágrafo único; RJ, 181:96); c) o itinerante, o do lugar onde for encontrado (LINDB, art. 7-, § 8a; CC, art. 73); <í)ode cada cônjuge, será o do casal (CC, art. 1.569, e Lei n. 6.515/77, art. 22); o viúvo sobrevivente conserva o domicílio conjugal, enquanto, voluntariamente, não adquirir outro (RF, 159:81); e) o servidor público tem por domicílio o lugar onde exerce permanentemente sua função. Se sua função for temporária, periódica ou de simples comissão, não implicará mudança domiciliar, permanecendo naquele que tinha antes de assumir o cargo, hipótese em que seu domicílio será voluntário, e não legal. Se o servidor já exercia função efetiva e em razão de um comissionamento é transferido temporariamente, mudança de domicílio não haverá, pois continuará tendo por domicílio aquele onde exerce suas funções em caráter efetivo. Há autores que afirmam o desaparecimento da obrigatoriedade de ter o servidor público licenciado por domicílio o lugar de suas funções, uma vez que a lei se refere a efetivo exercício do cargo. Mas julgado já houve, inclusive do Supremo Tribunal Federal, entendendo que a concessão de licença ao servidor público não atingirá seu domicílio legal. Todavia, se certo servidor público resolve pedir afastamento prolongado para tratar de interesses pessoais, mudando de residência para outro local, com intenção de transferir-se definitivamente para tal lugar, não haverá como prendê-lo ao domicílio funcional, ante a configuração do domicílio voluntário (CC, art. 76, parágrafo único); f) o do militar em serviço ativo é o lugar onde servir, sendo da Marinha ou da Aeronáutica, a sede do comando a que se encontra imediatamente subordinado (CC, art. 76, parágrafo único). O mesmo se diga do das polícias estaduais. O militar reformado não terá domicílio legal, uma vez que o art. 76 149. Código alemão, art. 7°. Planíol, Ripert e Boulanger, Traité êlêmentaire de droit civil, v. 1, n. 535; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 322; Zeno Veloso, O domicílio, cit., p. 21; Orlando Gomes, op. cit., p. 138; P. Stolze Gagliano e R. Pamplona FQ, Novo curso, v. 1, p. 250. 150. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 324; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 275; Andreas von Tuhr, DerAllgemeine Teil des Deutschen Bürgerlichen Rechts, § 28. Vide: RJTJSP, 128:102; RT, 679:81. 250 C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o apenas faz menção ao que se encontra em serviço ativo. Se o militar na ativa estiver exercendo suas funções fora do local de seu domicílio, desempenhando diligências em outros pontos, este será o da sede de sua guarnição ou quartel, pois ficará vinculado ao corpo de que faz parte e de que só se afastara temporariamente; g) os oficiais e tripulantes (marítimos) da Marinha Mercante, o lugar onde estiver matriculado o navio (CC, art. 76, parágrafo único); h) o preso, o lugar onde cumpre a sentença (CC, art. 76, parágrafo único; RT, 463:107). Tratando-se de preso internado em manicômio judiciário, é competente o juízo local para julgar pedido de sua interdição, nos termos do art. 76 do Código Civil (RT, 463:107). Se se tratar de preso ainda não condenado, seu domicílio será o voluntário; z) o agente diplomático do Brasil que, citado no estrangeiro, alegar extraterritorialidade, sem indicar seu domicílio no país, poderá ser demandado no Distrito Federal ou no último ponto do território nacional onde o teve (CC, art. 77). Deveras, o agente diplomático, por representar seu país, não poderá sujeitar-se à jurisdição estrangeira. O respeito mútuo que deve existir entre os Estados soberanos exige que o enviado diplomático fique, ao desempenhar siias funções, sob a jurisdição de seu país. O termo "extraterritorialidade" indica, no art. 77, tão somente o privilégio, inerente ao agente diplomático, de não se submeter a outra jurisdição que não seja a do Estado que representa. Os agentes diplomáticos brasileiros têm por domicílio o país que representam, devendo ser acionados perante a Justiça do Brasil. Se o agente diplomático brasileiro for citado no exterior e alegar a imunidade sem designar o local onde tem, no país, o seu domicílio, deverá responder perante a Justiça do Distrito Federal ou do último ponto do território brasileiro onde o teve. Será perante a Justiça do país que representa que o diplomata deverá ser acionado, exceto se: a) houver renúncia à extraterritorialidade, mediante prévia autorização de seu governo; b) revelar, por atos praticados, o firme propósito de renunciar àquele privilégio, envolvendo-se, p. ex., em operações mercantis ou aceitando o encargo de ser tutor de menor, solucionando demandas oriundas desses atos, comparecendo perante tribunal estrangeiro; c) tratar de ação relativa a imóvel de sua propriedade situado em território alienígena, desde que tal prédio não seja a sua residência, a sede da legação ou consulado. Não há, contudo, em certos casos exclusividade de domicílio legal; a pessoa que a ele estiver submetida, ainda conserva o anterior, podendo ter domicílio plúrimo. Realmente nada impede que um servidor público tenha por domicílio necessário o local onde exerce suas funções e por domicílio voluntário o lugar onde tenha sua residência habitual. 251 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 2) Voluntário, quando escolhido livremente, podendo ser "geral", se fixado pela própria vontade do indivíduo quando capaz, e "especial", se estabelecido conforme os interesses das partes em um contrato (CC, art. 78; CPC, arts. 95 e 111; STF, Súmula 335), a fim de fixar a sede jurídica onde as obrigações contratuais deverão ser cumpridas ou exigidas151. Perde-se o domicílio anterior152: 1) Pela mudança (CC, art. 74), porque o domicílio da pessoa passa a ser o mais recente, deixando de ser o anterior. Tem-se a mudança voluntária quando houver transferência de residência, com a intenção de deixar a anterior para estabelecê-la em outra parte (KF, 91:406). A prova dessa intentio resultará do que declarar a pessoa às municipalidades dos lugares, que deixa, e para onde vai (p. ex., fazendo alteração no cadastro das companhias de telefone, luz e água ou no da prefeitura municipal, atualizando dados alusivos ao pagamento de impostos e taxas), ou, se tais declarações não fizer, da própria mudança, com as circunstâncias que a determinaram (CC, art. 74, parágrafo único). Como, em regra, a pessoa natural que se muda não faz tal declaração, seu ânimo de fixar domicílio em outro local resultará da própria mudança, com as circunstâncias que a acompanharem. Como às vezes é muito difícil a caracterização da manifesta intenção de mudar, em razão da subjetividade que a reveste, o órgão judicante deverá, em cada caso que se submeter à sua apreciação, averiguar as circunstâncias ocorrentes, certificando- -se de que houve fixação de novo domicílio. Consequentemente, não poderá considerar mudança de domicílio o fato de ter a pessoa natural passado a residir, transitoriamente, por motivo de serviço ou de férias em determinado local, tendo-se em vista que o domicílio requer permanência. 2) Por determinação de lei, pois, nas hipóteses de domicílio legal, o domicílio antecedente cede lugar ao do preceito normativo, caso em que terá 151. R. Limongi França, Domicílio, in Manual de direito civil, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1975, v. 1; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 125; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 328 e 329; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 140; Jones F. Alves e Mário Luiz Delgado, Código, cit., p. 68; AJ, 118:8, 114:61, 119:229, 107:321; RT, 131:156, 206:352, 450:193, 460:206, 459:176, 480:140, 474:178, 448:196, 460:179. Mas não prevalecerá o foro de eleição se a ação versar sobre imóvel ou direito real, caso em que será competente o da situação do bem (CPC, art. 95). Tem havido julgado do STJ entendendo ser nula a cláusula que elege o foro nos contratos por adesão, atinentes a consórcio por atentar contra o art. 51, IV, da Lei n. 8.078/90. 152. R. Limongi França, op. cit., v. 1, cap. referente ao "Domicílio"; Zeno Veloso, O domicílio, Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, set. 1985, p. 391-432, ano 45. STJ, Súmula 58. Vide Decreto n. 1.041/94, art. 29, sobre domicílio fiscal da pessoa física. 252 mudança domiciliar compulsória, imposta por lei. Assim, se alguém for aprovado em concurso, passando a ser servidor público, perderá o domicílio anterior e passará a ter por domicílio o lugar onde exercer permanentemente suas funções (CC, art. 76). Mas, ante o art. 71, parece-nos que o primeiro domicílio não deverá ser desconsiderado, visto que pelo novo Código Civil admitida está a pluralidade domiciliar. Nada obsta que aquele servidor tenha o domicílio legal e mantenha o voluntário; a interpretação sistemática permite concluir pela permanência de domicílio plúrimo e pelo caráter não exclusivo do domicílio necessário. 3) Por contrato, em razão de eleição das partes (Súmula 335 do STF; RT, 182:456, 665:134, 694:175, 718:165, 725:361, 780:380, 784:284, 787:276 e 315, 791:364, 794:331; RSTJ, 140:330, 129:212; JTA, 92:365), no que atina aos efeitos dele oriundos (CC, art. 78). Trata-se do domicílio de eleição ou contratual, baseado no princípio da autonomia da vontade; que permite aos contratantes a escolha do foro onde se promoverá o cumprimento ou a execução do ato negocial efetivado por eles. Esse domicílio gera a competência ratione loci para solução de eventual conflito entre contratantes, determinando o foro em que a demanda deverá ser julgada. F . E X T I N Ç Ã O DA P E R S O N A L ID A D E N A T U R A L Cessa a personalidade jurídica da pessoa natural com a morte real (CC, art. 6-, I a parte), deixando de ser sujeito de direitos e obrigações, acarretando: 1) dissolução do vínculo conjugal (Lei n. 6.515/77 e CC, art. 1.571,1) e do regime matrimonial; 2) extinção do poder familiar (CC, art. 1.635,1); dos contratos personalíssimos, como prestação ou locação de serviços (CC, art. 607), e mandato (CC, art. 682, II; STF, Súmula 25); 3) cessação da obrigação de alimentos, com o falecimento do credor, pois, com o do devedor, seus herdeiros assumirão os ônus até as forças da herança (Lei n. 6.515/77, art. 23; CC, art. 1.700; RJTJSP, 82:38; RT, 574:68); da obrigação de fazer, quando convencionado o cumprimento pessoal (CC, arts. 247 e 248), do pacto de preempção (CC, art. 520); da obrigação oriunda de ingratidão de donatário (CC, art. 560); 4) extinção do usufruto (CC, art. 1.410, I; CPC, art. 1.112, VI); da doação em forma de subvenção periódica (CC, art. 545); do encargo da testamentaria (CC, art. 1.985); do benefício da justiça gratuita (Lei n. C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o 253 1.060/50); 5) perda da capacidade de ser parte em processo judicial (TJRS, Ap. Cível 70.017.278.250, rei. Amo Werlang, j. 28-2-2007)153, Outrora, admitia-se a morte civil, como fator extintivo da personalidade, em condenados a penas perpétuas e religiosos professos; conquanto vivos, eram considerados mortos na seara jurídica154. Entretanto, há algims resquícios de morte civil na nossa ordenação jurídica, p. ex., no já revogado art. 157 do Código Comercial, como causa de extinção do mandato mercantil, que nunca vigorou no Brasil, e no art. 1.816 do Código Civil, segundo o qual são pessoais os efeitos da exclusão da herança por indignidade. Os descendentes do herdeiro excluído sucedem, como se ele morto fosse; no Decreto-lei n. 3.038/41, art. 7a, e Lei n. 6.880/80, art. 130, que dispõem que uma vez declaràdo indigno do oficialato, ou com ele incompatível, perderá o militar o seu posto e patente, ressalvado à sua família o direito à percepção de suas pensões155. A morte presumida (CC, arts. 6a, 2- parte, e 92, IV) pela lei se dá com declaração da ausência de uma pessoa nos casos dos arts. 22 a 39 do Código Civil e dos arts. 1.161 a 1.168 do Código de Processo Civil, apenas no que concerne a efeitos patrimoniais e alguns pessoais156 (CC, art. 1.571, § l 2). Realmente, se uma pessoa desaparecer, sem deixar notícias, como já explicamos em páginas anteriores, qualquer interessado na sua sucessão ou o Ministério Público (CPC, art. 1.163) poderá requerer ao juiz a declaração de T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 153. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 74; Savigny, Traité de droit romain, v. 2, p. 165. Vide Provimentos CGJ n. 12/82, 30/89, 53/89, 58/89,19/90,10/94, 20/95 e 1/96; Portaria n. 474/2000 da Fundação Nacional de Saúde, sobre coleta de dados, fluxo e periodicidade de envio das informações sobre óbitos para o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). 154. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 75. 155. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 209; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 74. 156. Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 210; RF, 195:269. Sobre morte presumida do segurado na previdência social, arts. 74, III, e 78 da Lei n. 8.213/91 e arts. 105, III, e 112 do Decreto n. 3.048; do militar, Decreto-lei n. 4.819/42; de servidor público, Decreto-lei n. 5.782/43; de militar da aeronáutica, Decreto-lei n. 6.239/44. Consulte, ainda, Lei n. 6.015/73, art. 88 e parágrafo único, e Lei n. 9.140/95, alterada pela. Lei n. 10.536/2002, pela Lei n. 10.875/2004, e pelo Decreto de 16-12-2004, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, admitindo indenização às suas famílias. Nesta última hipótese ter-se-á morte presumida, sem declaração de ausência admitida pelo art. 72 do Código Civil. Vide nossos comentários sobre ausência nas p. 147-51 desta obra. 254 sua ausência e nomeação de curador. Pelo art. 1.161 do Código de Processo Civil, dever-se-á publicar de dois em dois meses, até perfazer um ano, sete editais chamando o ausente. Sem sinal de vida do ausente, poderá ser requerida sua sucessão provisória e o início do processo de inventário e partilha de seus bens, ocasião em que a ausência do desaparecido passa a ser considerada presumida, tendo efeito semelhante ao do falecimento. Feita a partilha, seus herdeiros deverão administrar os bens, prestando caução real, garantindo a restituição no caso de o ausente aparecer. Dez anos depois do trânsito em julgado da sentença da abertura da sucessão provisória (CPC, art. 1.167, II), sem que o ausente apareça, ou cinco anos depois das últimas notícias daquele que conta com 80 anos de idade, será declarada a morte presumida do desaparecido a requerimento de qualquer interessado, convertendo-se a sucessão provisória em definitiva. Se o ausente retomar até 10 anos seguintes à abertura da sucessão definitiva, terá os bens no estado em que se encontrarem, e terá direito ao preço que os herdeiros houverem recebido com sua venda. Porém se regressar após esses 10 anos, não terá direito a nada (CPC, art. 1.168)157. Pelo art. 72, I e II e parágrafo único, do Código Civil e pela Lei n. 6.015/73, arts. 85 e 88, admitida está a declaração de morte presumida, sem decretação de ausência, em casos excepcionais, para viabilizar o registro do óbito, resolver problemas jurídicos gerados com o desaparecimento e regular a sucessão causa mortis, como: se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida ante as circunstâncias em que se deu o acidente: naufrágio, Incêndio, seqüestro, inundação, desastre (RT, 781:228) e se alguém, desaparecido em atividades de participação política (Lei n. 9.140/95, com a redação da Lei n. 10.536/2002) ou em campanha (ação militar) ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Nessas hipóteses, a declaração da morte presumida apenas poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do óbito. O óbito deverá ser, portanto, nesC u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 157. Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 65 e 66; Sebastião Luiz Amorim, Processamento da sucessão do ausente — presunção e declaração de morte, O direito civil no século XXI, cit., p. 521-32; José Antonio de Paula Santos Neto, Da ausência, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2001. A Súmula do STF 331 dispõe que "é legítima a incidência do imposto de transmissão causa mortis no inventário por morte presumida". Vide o que dissemos anteriormente no item C. 2, p. 149 e s. sobre o processo de declaração de ausência. 255 ses casos, justificado judicialmente, diante da presunção legal da ocorrência do evento morte. E a data provável do óbito, fixada por sentença, demarcará o dies a quo, em que a declaração da morte presumida irradiará efeitos. A sentença declaratória de morte presumida, apesar de ter eficácia contra todos, não fará coisa julgada material, sendo suscetível de revisão, a qualquer momento, desde que apareçam provas relativas à localização do desaparecido, que, se retomar ao seu meio, voltará ao estado anterior, na medida do possível, deixando de existir a declaração judicial de seu óbito, que retroagirá ex tunc, ou seja, à data de seu desaparecimento, visto tratar-se de presunção juris tantum. A existência da pessoa natural cessa com a morte natural, ou presumida, devidamente registrada em registro público (CC, art. 9-, I e IV), que determina o exato momento da abertura da sucessão, também designado de devolução hereditária, pois a partir dele os herdeiros recebem, de imediato, a posse e a propriedade da herança. Temos, ainda, a morte simultânea ou comoriência prevista no Código Civil, art. 8a, que assim reza: "Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos"158. Embora o problema da comoriência tenha começado a ser regulado a propósito de caso de morte conjunta no mesmo acontecimento, ele se coloca, como se pode ver pela redação do art. 8a do Código Civil, com igual relevância, em matéria de efeitos dependentes de sobrevivência, nos casos de pessoas falecidas em lugares e acontecimentos distintos, mas em datas e horas simultâneas ou muito próximas. A expressão "na mesma ocasião" não requer que o evento morte se tenha dado na mesma localidade; basta que haja inviabilidade na apuração exata da ordem cronológica dos óbitos. Esse artigo tem grande repercussão na transmissão de direitos, pois se os comorientes são herdeiros uns dos outros não há transferência de direitos, um não sucederá ao outro, sendo chamados à sucessão os seus herdeiros. Há mera presunção juris tantum de comoriência. Se "A", viúvo, idoso, cardíaco e que não sabia nadar, falecer num naufrágio, juntamente com seu único filho solteiro "B" de 20 anos, saudável e bom nadador, não há presunção iure et de iuris da T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 158. Código alemão, art. 20. Consulte efeitos da morte presumida: Mário Luiz Delgado, Problemas áe áireito intertemporal no Código Civil, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 137-41. 256 C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o pré-morte de "A", pois os interessados na herança poderão provar isso por qualquer meio admitido em direito. Aquela presunção juris tantum é inferida da expressão do art. 8S "não se podendo averiguar", que admite prova contrária, ou seja, da premoriência, sendo o onus probandi do interessado que pretende provar, com o auxílio de perícia, testemunhas etc., que a morte não foi simultânea, trazendo por consequência a alteração da vocação hereditária. P. ex.: suponhamos que marido e mulher faleçam numa queda de avião, sem deixar descendentes ou ascendentes. Presumamos que testemunhas tenham encontrado o marido morto e a mulher com sinais de vida, ou que o interessado na herança tenha comprovado a premoriência do marido. Considerando a ordem de vocação hereditária, a mulher herda os bens do marido se ele faleceu primeiro, transmitindo-os aos seus herdeiros colaterais; com isso, os herdeiros colaterais do marido nada receberão. B M u lh e r fa le c e o .......*>• r e c e b e 1 0 0 % d a h e r a n ç a às 2 3 h s .< ? H e ra n ç a t k £ F 5 0 % 5 0 % T io d e T ío d e B B Se dúvida houver no sentido de se saber, com precisão, quem morreu primeiro, o magistrado aplicará o art. 8a do Código Civil, caso em que não haverá transmissão de direitos entre as pessoas que faleceram na mesma ocasião; logo, a parte do marido irá para seus herdeiros colaterais e a da mulher para os herdeiros colaterais dela (RT, 100:550)159. 159. Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 66 e 67; Caio M. S. Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 211 e 212; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 76 e 77; Da comoriência, Ciência Jurídica, 9:23; Francisco José Cahali e Giselda Maria F. N. Hironaka, Curso avançado de direito civil, v. 6, Direito das sucessões, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 47. R, Limongi França, Comoriência e vocação hereditária, RT, 403:49. Consulte: RT, 422:175, 490:102, 452:213, 520:273, 524:115, 552:227, 665:93, 659:146, 587:121, 639:62 e 63, 659:146; JB, 158:269; TJSP, Agi 335.348-4/0,10a Câm. Dir. Priv., rei. João C. Saletti, j. 31-8-2004. C D Irm ã o d e Irm ã o d e A A A M a rid o e n c o n t r a d o m o r t o às 2 2 h s 257 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il A B M a rid o M u lh e r c o m o r ie n te c o m o r ie n te ''9 H e ra n ç a .... & "A ..... •&. 25% 25% 25% 25% C D E F Irm ã o d e Irm ã o d e T io d e T io d e A A B B Se o beneficiário sobreviver ao segurado, ainda que por segundos, seus herdeiros serão contemplados; se houver comoriência, seus sucessores ficarão privados do benefício (RT, 665:93 e 587:121); o mesmo ocorrerá com o pecúlio na previdência privada (RT, 659:146). Vide: Lei n. 11.976/2009, sobre declaração de óbito e realizaçao de estatísticas de óbitos em hospitais públicos e privados. 258 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o Assim, graficamente, temos: E x tin ç ã o d a p e r s o n a lid a d e n a tu ra l & f % X m o rt e m o rt e m o r t e m o rte n a tu ra l d v il p re s u m id a s im u ltâ n e a c o m s e m d e c la r a ç ã o d e c r e ta ç ã o d e d e a u s ê n c ia a u s ê n c ia i Prova-se a morte pela certidão extraída do assento de óbito (Lei n. 6.015/73, arts. 29, III (regulamentado pelo Decreto n. 7.231/2010), 77 a 88; CC, art. 9a, I). Contudo, o aniquilamento não é completo com a morte, pois a vontade do de cujus sobrevive com o testamento e ao cadáver é devido respeito. Certos direitos produzem efeitos após a morte, como o direito moral do autor (Lei n. 9.610/98, art. 24, §§ l 2 e 2a), o direito à imagem e à honra. Militares e servidores públicos podem ser promovidos post mortem (vide Decs. n. 1.319/94, sobre promoção de oficial da ativa das Forças Armadas, 259 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il art. 17, e 4.853/2003, que aprova o Regulamento de Promoções de Graduados do Exército, arts. 4fl, IV, 8a, 33, § 4C, 34, I e II, §§ I a a 5a; Portaria n. 496/GM1, de 18-7-1996) e aquinhoados com medalhas e condecorações. A falência pode ser decretada, embora m orto o empresário (Lei n. 11.101/2005, art. 97, II). Há a possibilidade de reabilitar a memória do morto e casos há, ainda, em que a morte dá lugar a indenizações (CC, art. 948; STF, Súmulas 490 e 491)160. 160. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 75 e 76. Vide Decreto n. 1.319/94, sobre promoção de oficial da ativa das Forças Armadas, art. 17. Pelo Decreto n. 4.853/2003, art. 34: "A promoção post mortem é efetivada: I — quando o falecimento ocorrer em uma das seguintes situações: a) em ações de combate ou de manutenção da ordem pública; b) em consequência de ferimento recebido em campanha ou na manutenção de ordem pública ou de doença, moléstia ou enfermidade contraídas nessas situações ou que nelas tenham a sua causa eficiente; c) em consequência de acidente de serviço, na forma da legislação em vigor ou em consequência de doença, moléstia ou enfermidade que nele tenha sua causa eficiente; e II — quando o militar estiver abrangido pelos limites quantitativos fixados para a constituição dos QA, satisfeitas as demais condições exigidas para a promoção". Consulte: art. 12 e parágrafo único do Código Civil. Q uadro S in ó tic o Pf.SSOA NATURAL 1. CONCEITO DE PESSOA NATURAL 2. CAPACIDADE É o ser humano considerado como sujeito de direitos e obrigações. Conceito - É a maior ou menor extensão dos direitos de uma pessoa. • De gozo ou de direito - De fato ou de exercício Espécies Aptidão, oriunda da personalidade, para adquirir direitos e contrair obrigações na vida civil. Aptidão para exercer, por si, atos da vida civil. Conceito É a restrição legal ao exercício dos atos da vida civil. Absoluta Espécies 3. INCAPACIDADE Proteção aos incapazes Cessação da incapacidade Quando houver proibição total do exercício do direito pelo incapaz, acarretando a nulidade (CC, art. 166, I) se o realizar sem a devida representação legal. É o caso dos menores de 16 anos; dos que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática de atos da vida civil; dos que, mesmo por motivo transitório, não puderem exprimir sua vontade (CC, art. 3E, I, II e III). Refere-se àqueles que podem praticar, por si, os atos da vida civil, desde que assistidos por quem de direito os represente, sob pena de anulabilidade (CC, art. 171,1) do ato jurídico. E o caso dos maiores de 16 e menores de 18 anos; ébrios habituais, toxicômanos e deficientes mentais, que tenham discernimento reduzido; excepcionais, sem desenvolvimento mental completo e pródigos (CC, art, 4a, I a IV). CC, arts. 115 a 120,1.634, V, 1.690,1.747,1, 1.767,1.768,1.769,1.773, 588,198, I, 814, 181, 2.015; Lei n. 6.015/73, art. 50, § 2a; CP, arts. 44, II, /, e 173; Leis n. 8.069/90 e 8.242/91. o) Quando o menor atingir 18 anos (CC , art. 5a). b) Pela emancipação (CC, art. 5a, parágrafo único). Relativa 4. COMEÇO DA PERSONALIDADE NATURAL o) Pelo nome 5. INDIVIDUALIZAÇÃO DA PESSOA NATURAL Inicia-se (CC, art. 2S; Lei n. 6.015/73, arts. 50 a 54) com o nascimento com vida, ainda que o recém-nascido venha a falecer instantes depois, ressalvados desde a concepção os direitos do nascituro (CC, arts. 1.609, 1.779 e parágrafo único, e 1.798; Lei n. 8.974/95). » Sinal exterior pelo qual se designa a pessoa no seio da fa- « Conceito mília e da sociedade (Lei n. 6.015/73, arts. 54 a 58; Leis n. 9.454/97 e 9.453/97; Dec. n. 2.170/97; CC, arts. 16 a 19). • Prenome (Lei n. 6.015/73, art. 55, parágrafo único) é o próprio da pessoa. • Sobrenome (Lei n. 6.015/73, arts. 57, 59 e 60) é o sinal que identifica a procedência da pessoa, indicando sua filiação. ‘ Quando expuser seu portador ao ridículo. ■ Quando houver erro gráfico e mudança de sexo. ■ Quando causar embaraço no setor comercial ou profissional. ■ Quando houver apelido público notório. • Quando houver necessidade de proteger vítimas ou testemunhas de crimes (Lei n. 9.807/99, arts. 9-, §§ I a a 5a, 16 e 17). É a soma das qualificações da pessoa, permitindo sua apresentação na sociedade, em dada situação jurídica, para que possa usufruir das vantagens e sofrer os ônus dela decorrentes. » Individual, que é o modo de ser da pessoa quanto à idade, sexo e saúde. Aspectos - Familiar, que indica sua situação na família. • Político, qualidade jurídica que advém da posição da pessoa na sociedade política. • Indivisibilidade. Caracteres - Indisponibilidade. - Imprescritibilidade. Elementos Alteração (Lei n. 6.015/73, arts. 56 a 58 e parágrafo único) Conceito b) Pelo estado QJ *. £ (N Q_r^ $ -g _ra ra o> «. "O u « H c w ° 3 ra *çu o .£ % “D QJ Q_ OJ "O . ra < T 3 COO TO 4-» .y ;© 33 i-rj O r— . "O w"i 5TS i ^ S 3 _: CT t-T oj QJ - rQ CO U sC o tcn ‘c 1 cr'3 . o ^ c « 'S> Cü $ Q QJ CL) QJ T-i <^s § a » C O o . ^ ^ .s t; u ra QJQ -u tt) U ^ a> c E | 8 j 2 u o tu O QJ D . D . D . VO X f 00Ox VOQvÍT 00 cou . U ra f'** Q.tn Eo T 3O võ tí E ra o 8U w' S o u tu tl tío o 0 i< u*< NJ < < 1 § < ^ Q* > £ I | < s ± D Z co n su m id o s 394 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o Ante o exposto, à guisa de conclusão, poder-se-á classificar os bens acessórios em: 1) Naturais, se originários de fatos da natureza (frutos naturais, produtos orgânicos ou inorgânicos, o subsolo e as coisas que nele se achem sem dono conhecido, ilhas formadas nos rios, álveo abandonado, terras de aluvião, avulsão). 2) Industriais, se aderirem ao principal por intervenção do engenho humano (construções, plantações, frutos industriais, benfeitorias). 3) Civis, se resultantes de uma relação jurídica abstrata, e não de vinculação material, como os juros, no que concerne ao capital; os dividendos; os ônus reais, relativamente à coisa gravada; os aluguéis, quanto à locação etc.44. 44. Sobre bens reciprocamente considerados vide Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 377- 81; Silvio Rodrigues, op. cit., v. 1, p. 148-55; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 371-5; W. Barros Monteiro, op. cit., p. 156-60; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 149-57; Clóvis, op. cit., p. 197-202; Orlando Gomes, op. cit., p. 215-20; Francisco dos Santos Amaral Neto, Bens acessórios, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 11, p. 137-45; R. Limongi França, Manual de direito civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1971, v. 1, p. 202; Lacerda de Almeida, Direito das cousas, Rio de Janeiro, 1908, v. 1, p. 143; San Thiago Dantas, Programa de direito civil, Rio de Janeiro, 1977, p. 236; Colin e Capitant, Cours élémentaire de droit civil français, 11. ed., Paris, Dalloz, 1947, v. 1, p. 747; Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, Rio de Janeiro, Borsoi, 1969, v. 2, p. 72; Mazeaud e Mazeaud, Leçons de droit civil, Paris, Montchréstien, 1970, v. 1, p. 211; Windscheid, Diritto dellepandette, Torino, 1902, § 143; Enneccerus-Nipperdey, Tratado de derecho civil, Barcelona, Bosch, 1953, v. 1, p. 568; Ferrara, Trattato di diritto civile italiano, Roma, 1921, p. 796; R. Limongi França, Benfeitoria, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 11, p. 122 e 123; Altino Portugal, Benfeitorias, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 11, p. 123-27; Clóvis Paulo da Rocha, Das construções na teoria geral da acessão, p. 36; Maria Helena Diniz, Curso de direito civil, cit., v. 4, p. 111 e 112. Coviello (Manuale di diritto civile italiano — parte generale — v. 1, § 82, p. 276) pondera: "è da distinguere accuratamente due specie di cose accessoire: quelle che sono parte integrante d'una cosa e quélle che sono semplici pertinenza". Sobre partes integrantes-. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, v. 2, p. 40, 45 a 48, 53, 55 e 60; Widmann, Der Bergriff des Wesentlichen Bestandteils, p. 15; e Paech, Bestandteils imd Zuberhõr, p. 22. Sobre pertença: Planiol, Traité élémentaire de droit civil, t. 1, n. 2.213; Sílvio Venosa, Direito civil, cit., v. 1, p. 322; Emst Rabel, Das Rechtdes Warerikaufs, 1957, v. I, p. 238 e 518; Sá Freire, Manual do Código Civil brasileiro — parte geral, 1930, v. 2, p. 478-80; Espínola, Breves anotações ao Código Civil brasileiro, v. 6, p. 227; Umrath, Der Begriff des Wesentlichen Bestandteils, p. 74 e s.; M. Helena Diniz, Pertença, verbete do Dicionário jurídico, São Paulo, Saraiva, v. 3; Andreoli, Le pertinenze, p. 162 e 217; Pontes de Miranda, Tratado, cit., v. 2, p. 113,114,116-8, 121, 124-32. Sobre distinção entre pertença e parte integrante: Funke, Die Lebre von derPertinenzen, p. 14 e s.; Kohler, Zur Lehre von der Pertinenzen, Jahrbücher für die Dogmatik, n. 26, p. 23-24, 30, 45 e s. e 67 e s.; Andreoli, Le pertinenze, p. 216 e s.; e Leonhard, Die Beweislast, p. 276. Urge lembrar que não há pertença de direitos, mas 395 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l D. B e n s c o n s i d e r a d o s e m r e l a ç ã o a o t i t u l a r d o d o m í n i o Quanto aos sujeitos a que pertencem, os bens classificam-se em públicos e particulares. Os bens públicos, segundo o art. 98 do Código Civil, são do domínio nacional pertencentes à União, aos Estados, aos Territórios ou aos Municípios (RT, 592:135, 664:81, 676:127; RJTJSP, 119:378) e às outras pessoas jurídicas de direito público interno (CC, art. 4 1 ,1 a V)44 A. Todos os demais são particulares, pertençam a quem for. De modo que, conforme a pessoa jurídica de direito público interno a que pertencerem, os bens públicos serão federais, estaduais ou municipais, e os que tiverem como titular de seu domínio pessoa natural ou pessoa jurídica de direito privado serão bens particulares. Contudo, observa Washington de Barros Monteiro, há coisas que não são públicas, nem particulares, por não pertencerem a ninguém, como, p. apenas de coisas móveis ou imóveis, porque a relação de pertinencialidade é econômica. O direito apenas a encontra no plano negocial (art. 94 do CC), por não ser o das relações entre o titular e a coisa, mas entre credor e devedor. Se do registro de imóveis constar a pertença, é porque está compreendida no imóvel, em virtude de lei, da vontade das partes ou da circunstância do caso, exigida pela finalidade econômica ou social. P. ex., convém repetir: assim, para que um campo de tênis, separado de um hotel, a ele pertença, será preciso assento no Registro Imobiliário. Ter-se-á, então, um imóvel-pertença. E o móvel ajudante precisa estar a serviço do imóvel; p. ex., o piano não é pertença do imóvel onde resida o pianista, mas o é do conservatório, em razão de seu objetivo; ter-se-á, então, um móvel-pertença, O ato de dispor do bem principal não alcança a pertença, exceto por imposição legal ou convencional ou, ainda, por circunstância socioeconômica. A relação de pertinencialidade só existe entre coisas e não entre direitos. Mas poderá ocorrer também entre direitos e bens. Sobre partes integrantes: Francisco Amaral, Direito civil — introdução, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p. 315. Já Fábio Ulhoa Coelho (Curso, cit., v. 1, p. 275) entende que "as pertenças não deveriam ser classificadas como acessório, como parece ter sido a opção da lei. Com efeito, elas não seguem o assim chamado bem principal, exceto em situações especiais; desse modo, não ostentam aquela dependência característica dos bens acessórios". Para Spencer Vampré (Código Civil brasileiro annotado à luz dos documentos parlamentares e da doutrina, São Paulo, Livraria e Officinas Magalhães, 1917, p. 45) as partes integrantes de uma coisa são as que não podem separar-se dela, sem que umas ou outras se destruam ou mudem de essência, como as coisas incorporadas ao solo, e, em particular, as construções e produtos do solo, e as sementes e plantas quando enterradas. Sobre frutos: RT, 733:320, 684:82, 673:221. 44-A. Esclarece o Enunciado n. 287 do Conselho da Justiça Federal (aprovado na IV Jornada de Direito Civil) que: "O critério da classificação de bens indicado no art. 98 do Código Civil não exaure a enumeração dos bens públicos, podendo ainda ser classificado como tal o bem pertencente a pessoa jurídica de direito privado que esteja afetado à prestação de serviços públicos". 396 ex., os animais selvagens em liberdade, as pérolas que estão no fundo do mar, os tesouros, as águas pluviais não captadas, as coisas abandonadas, a res nullius etc. Nosso direito positivo conhece três espécies de bens públicos: 1) Bens de uso comum do povo, embora pertencentes a pessoa jurídica de direito público interno, podem ser utilizados, sem restrição, gratuita ou onerosamente, por todos, sem necessidade de qualquer permissão especial. P. ex.: praças, jardins, ruas, estradas, mar, praias, rios, enseadas, baías, golfos (CC, art. 9 9 ,1; JTACSP, 112:92; RT, 653:100, 688:98) etc. Entretanto, não perdem essa natureza se regulamentos administrativos condicionarem ou restringirem o seu uso a certos requisitos ou mesmo se instituírem pagamento de retribuição (CC, art. 103). P. ex.: pedágio nas estradas (RT, 777:120- 41; RJTJSP, 40:124), venda de ingresso em museus, para contribuir para sua conservação ou custeio. Pode, ainda, o poder público suspender seu uso por razões de segurança nacional ou do próprio povo usuário, exemplificativamente: proibição de tráfego, interdição do porto, barragem do rio etc. Temos aí uma propriedade sui generis, como diz Hauriou, como uma posse em nome do interesse coletivo, pois o que é livre é a utilização do bem por qualquer pessoa e não o seu domínio; logo, o seu titular pode reivindicar se uma pessoa natural ou jurídica pretender o uso exclusivo da coisa comum, impedindo que o grande público dela se utilize. Isto é assim porque o ente público tem a guarda, administração e fiscalização desses bens. 2) Bens públicos de uso especial (CC, art. 99, II; JM, 101:103) são utilizados pelo próprio poder público, constituindo-se por imóveis (edifícios ou terrenos) aplicados ao serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive pelos de suas autarquias. P. ex.: prédios onde funcionam tribunais, escolas públicas, secretarias, ministérios, parlamentos, quartéis etc. São os que têm, portanto, uma destinação especial. 3) Bens dominicais, que compõem o patrimônio da União (CF, art. 20, I a XI e EC n. 46/2005), dos Estados (CF, art. 26, I a IV) ou dos Municípios, como objeto do direito pessoal ou real dessas pessoas de direito público intemo (CC, art. 99, III). O mesmo se diga do patrimônio de autarquia. "Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público (como, p. ex., às fundações públicas, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e a consórcios públicos — Lei n. 11.107/2005, art. I a, §§ I a e 6a, III) a que se tenha dado estrutura de direito privado" (CC, art. 99, parágrafo único). Isto é assim porC u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 397 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l que, como nos ensina Odete Medauar, "o ordenamento brasileiro inclinase à publicização do regime dos bens pertencentes a empresas públicas, sociedades de economia mista e entidades controladas pelo Poder Público", mesmo se tiverem a estrutura de direito privado. Abrangem bens móveis ou imóveis como: títulos de dívida pública; estradas de ferro, telégrafos, oficinas e fazendas do Estado; ilhas formadas em mares territoriais (Lei n. 8.617/93) ou rios navegáveis; terras devolutas (CF, arts. 225, § 5e, 188, §§ Ia e 2a; Dec.-lei n. 1.414/75; Lei n. 6.383/76; Lei n. 6.925/81; RTJ, 32:73; RJTJSP, 26:246, 12:68, 23:260; Ciência Jurídica, 71:116; RT, 339:448; RJ, 172:104), terrenos de marinha e acrescidos; mar territorial, terras ocupadas pelos índios, sítios arqueológicos e pré-históricos; bens vagos, bens perdidos pelos criminosos condenados por sentença proferida em processo judiciário federal; quedas-d'água, jazidas e minérios (CF/88, art. 176); arsenais com todo material da marinha, exército e aviação; os bens que foram do domínio da Coroa (Dec.-lei n. 9.760/46, arts. 64 e s. com as alterações e acréscimos da Lei n. 11.481/2007; Dec.-lei n. 227/67; Dec.-lei n. 318/67; Dec.-lei n. 3.236/41; Lei n. 2.004/53, ora revogada pela Lei n. 9.478/97). Abrangem, ainda, os títulos de crédito e dinheiro arrecadado pelos tributos (Lei n. 4.320/64, arts. 6a, § I a, 39, 105 e 112). Todavia, há quem ache, como José Cretella Jr., que o dinheiro como renda da fazenda pública seria bem de uso especial, ao afirmar que "sendo a finalidade da renda pública a satisfação dos diversos compromissos do Estado, mas tendo seu destino, como resultado da arrecadação, especializado nas verbas orçamentárias, tais rendas, uma vez colocadas nas mãos da autoridade administrativa, pela arrecadação, participam da categoria dos bens de uso especial”. Os bens públicos dominicais podem, por determinação legal, ser convertidos em bens de uso com um ou especial. A Lei n. 6.925/81, no art. 3a, estabelece que "o INCRA está autorizado a doar, nas condições estipuladas pela Lei n. 11.952/2009, aos municípios situados na faixa da fronteira, não abrangidos por aquela lei, porções de terras devolutas ou de terras a qualquer título incorporadas ao seu patrimônio que se destinem à expansão de cidades, vilas e povoados, segundo o interesse das administrações municipais". Nada impede a utilização dos bens dominicais por particulares desde que subordinada às normas administrativas, às condições e limitações impostas pelo Poder Público. Permitidas estão, p. ex., a concessão de uso especial de áreas de propriedade da União para fins de moradia (Lei n. 9.636/98, arts. 6a e § I a, 6a-A, 22-A, com as alterações da Lei n. 11.481/2007) de população carente ou de baixa renda; a concessão de uso de terrenos públicos, por tempo determinado ou indeterminado, com o direito real resolúvel, para fins específi­ 398 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o cos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas (Decreto-lei n. 271/67, art. 7a com a redação da Lei n. 11.481/2007). A Súmula 477 do STF estatui que "as concessões de terras devolutas, situadas na faixa de fronteira, feitas pelos Estados, autorizam, apenas, o uso, permanecendo o domínio com a União, ainda que se mantenha inerte ou tolerante em relação aos possuidores" (CF, art. 49, XVII, e Disp. Transitórias, art. 51, § 2a; RTJ, 32:73). A Constituição Federal, no art. 68 das Disposições Transitórias, reconhece aos remanescentes das comunidades dos quilombos, que estejam ocupando suas terras, a propriedade definitiva, ficando o Estado obrigado a emitir-lhes os respectivos títulos de propriedade. O Decreto-lei n. 2.422/88 dispõe sobre prazo para inscrição de ocupação de imóveis da União. Daí a representação gráfica: Bens considerados em relação ao titular do domínio Bens Bens particulares públicos (CC, arts. 98 a 101) Bens de uso comum do povo Bens dominicais Bens de uso especial 399 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l Os bens públicos apresentam os caracteres da: inalienabilidade, desde que, ensina Hely Lopes Meirelles, destinados ao uso comum do povo ou a fins administrativos, ou seja, enquanto guardarem a afetação pública. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, logo não podem ser vendidos, doados ou trocados. Tal inalienabilidade poderá ser revogada desde que: a) o seja mediante lei especial; b) tenham tais bens perdido sua utilidade ou necessidade, não mais conservando sua qualificação; assim, ocorrida a desafetação (mudança da destinação) de um bem público, este perderá a inalienabilidade se incluído no rol dos bens dominicais (CC, art. 101) para tomar possível sua alienação (RT, 711:93, 621:189); e c) a entidade pública os aliene em hasta pública ou por meio de concorrência administrativa (EJSTJ, 12:15). P. ex.: um jardim público não poderá ser vendido se tiver essa destinação, caso contrário, o Município poderá, por lei, alienar o terreno por ele ocupado anteriormente (CC, art. 100), desde que o faça em hasta pública ou por meio de concorrência administrativa (RF, 83:275). Pelo art. 101 do Código Civil, os bens públicos dominicais poderão ser alienados (arrendamento, compra e venda, concessão de uso especial a população de baixa renda para sua moradia, comodato) como se fossem bens particulares, observando-se as exigências legais (p. ex., licitação, autorização legal e avaliação prévia), uma vez que não há qualquer afetação a uma finalidade pública específica; imprescritibilidade das pretensões a eles relativas, devida a sua inalienabilidade. Contudo, poderão ser essas pretensões prescritíveis no casos e formas que a lei estatuir, para evitar a especulação ou má distribuição de um bem necessário ao povo. Não podendo, ainda, ser adquiridos por usucapião (CF, art. 37, § 52; CC, art. 102; RT, 729:161, 606:53, 453:66; Dec. n. 9.760/46, art. 200; Súmula 340 do STF), a não ser nos casos e nas formas em que a lei prescrevia (Lei n. 4.504/64, art. 98; Lei n. 6.969/81; Dec. n. 87.620/82), antes da entrada em vigor da CF/88, que, no art. 191, parágrafo único, veio a proibir a usucapião de terras públicas; mas há alguns juristas, como Silvio Rodrigues, que admitem ã usucapião de terras devolutas, ante o disposto na Constituição Federal de 1988, art. 188; impenhorabilidade, porque inalienáveis, insuscetíveis de serem dados em garantia. A impenhorabilidade impede que o bem passe do patrimônio do devedor ao do credor, ou de outrem, por força de execução judicial (adjudicação ou arrematação)45. 45. M. Helena Diniz, Curso, cit., v. 1, p. 173; W. Bairos Monteiro, Curso, cit., v. 1, p. 161 e s.; Levenhagen, Código Civil, cit., v. 1, p. 99; Clóvis Beviláqua, Código Civil comentado, 400 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o Há coisas que não são públicas nem particulares, por não pertencerem a ninguém (res nullius), como, p. ex., os animais selvagens em liberdade, as conchas numa praia, as pérolas de ostras que estão no fundo do mar, as cit., obs. ao art. 65, v. 1; Clóvis Beviláqua, op. cit., p. 203-20; Silvio Rodrigues, op. cit., v. 1, p. 157-60; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 375-80; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 159- 62; W. Barros Monteiro, op. cit., p. 161-4; Orlando Gomes, op. cit., p. 221-4; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 381-9; Hauriou, Précis de droit administratif, p. 530 e s.; Spencer Vampré, RT, 34:385 e s.; Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 444; e Direito municipal brasileiro, v. 1, p. 97; Mário Mazagão, Direito administrativo, v. 1, n. 283; Álvaro Villaça Azevedo, Bens impenhoráveis, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 11, p. 229; José Cretella Jr., Dos bens públicos, São Paulo, Saraiva, 1969, p. 262, 264, 321 e 322; Diogo F. do Amaral, A utilização do domínio público pelos particulares, 1972; Ma Sylvia Z. di Pietro, Uso privativo de bem público por particular, 1983; Lesley Gasparini, Bens públicos: sua utilização por terceiros, RDP, 97:275; Odete Medauar, Direito administrativo moderno, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 266; Wallace Paiva Martins Junior, O direito administrativo sob o impacto do Código Civil de 2002, Código Civil e sua interdisciplinaridade (coords. José Geraldo B. Filomeno, Luiz Guilherme da C. Wagner Jr. e Renato Afonso Gonçalves), Belo Horizonte, Del Rey, 2004, p. 23-50; Gagliano e Pamplona Filho, Novo curso, cit., v. 1, p. 282. Sobre terras públicas: Decreto-lei n. 2.375/87, que revogou o Decreto-lei n. 1.164/71; Constituição do Estado de São Paulo, 1989, art. 187,1 a IV. Sobre alienação de imóvel da União, Estados e Municípios: Lei n. 9.253/95, ora revogada pela Lei n. 9.636/98. Sobre concessão de uso especial de área pública para fins de moradia: Leis n. 9.636/98, 8.666/93, Decreto-lei n. 9.760/46, todos com alterações feitas pela Lei n. 11.481/2007. Ocupação de bens dominicais: Lei n. 11.481/2007, que altera os arts. I2, 6a, 7°, 9a, 18, 19, 26, 31 e 45 da Lei n. 9.636/98. Sobre concessão e alienação de terras devolutas na faixa de fronteira: art. 5a, § Ia, da Lei n. 4.947/66; Decreto-lei n. 1.414/75, regulamentado pelo Dec. n. 76.694/75, com alterações da Lei n. 6.925/81; Lei n. 9.871, de 23-11- 1999; Lei n. 10.164/2000; Instrução Normativa n. 33/99 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e Lei n. 11.952/2009,que dispõe sobre doação de porções de terras devolutas a municípios incluídos na região da Amazônia Legal. Vide, sobre alienação de imóvel funcional: EJSTJ, 11:32-4, 22:36 e 37, 13:32 e 53, 14:28, 15:28- 30 e 65. Sobre terras públicas que foram objeto de apropriação indevida: axt. 8a-B da Lei n. 6.739/79, com a redação da Lei n. 10.267, de 28-8-2001. Sobre a questão da imprescritibilidade de bens públicos, vide: Maria Helena Diniz, Conflito de normas, São Paulo, Saraiva, 2004, penúltimo capítulo. Pela Súmula 329 do STJ, "o Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público". Interessante é a decisão de que: "É direito potestativo do condômino de bem imóvel indivisível promover a extinção do condomínio mediante alienação judicial da coisa (CC/16, art. 632; CC/2002, art. 1.322; CPC, art. 1.117, II). Tal direito não fica comprometido com a aquisição, por arrecadação de herança jacente, de parte ideal do imóvel por pessoa jurídica de direito público. Os bens públicos dominicais podem ser alienados ‘nos casos e na forma que a lei prescrever' (CC de 1916, art. 66, III e 67; CC de 2002, art. 101). Mesmo sendo pessoa Jurídica de direito público a proprietária de fração ideal do bem imóvel indivisível, é legítima a sua alienação pela forma da extinção de condomínio, por provocação de outro condômino. Nesse caso, a autorização legislativa para a alienação da fração ideal pertencente ao domínio público é dispensável, porque inerente ao regime da propriedade condominial" (STJ, REsp 655.787/MG, rei. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, j. 9-8-2005, DJ, 5-9-2005, p. 238). 401 águas pluviais não captadas, as coisas abandonadas. Todavia essa observação não se aplica a imóveis, que nunca serão res nullius, pois pelo art. 1.276 do Código Civil o imóvel abandonado será arrecadado como bem vago e passará ao domínio do Município ou do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições, três anos depois se se tratar de imóvel localizado em zona urbana, e à propriedade da União, três anos depois, se situado em zona rural, onde quer que ele se localize. E. B e n s q u a n t o à p o s s i b i l i d a d e d e c o m e r c i a l i z a ç ã o Os bens álienáveis, disponíveis ou no comércio, são os que se encontram livres de quaisquer restrições que impossibilitem sua transferência ou apropriação, podendo, portanto, passar, gratuita ou onerosamente, de um patrimônio a outro, quer por sua natureza, quer por disposição legal, que permite, p. ex., a venda de bem público. Washington de Barros Monteiro esclarece que o termo "comércio" designa a possibilidade de compra e venda, liberdade de circulação, poder de movimentação dos bens, logo o bem que está no comércio pode ser comprado, vendido, trocado, doado, alugado, emprestado, o mesmo não acontecendo com os bens fora do comércio, que não podem ser objeto de relações jurídicas desse tipo. Assim, os bens inalienáveis ou fora do comércio são os que não podem ser transferidos de um acervo patrimonial a outro ou insuscetíveis de apropriação. Constituem espécies de bens inalienáveis-. 1) Os inapropriáveis por sua natureza, como os bens de uso inexaurível. P. ex.: o ar, o mar alto, a luz solar; porém a captação, por meio de aparelhagem, do ar atmosférico ou da água do mar para extrair certos elementos com o escopo de atender a determinadas finalidades pode ser objeto de comércio; e os direitos da personalidade, como à vida, à honra, à liberdade, ao nome, ao estado, à capacidade da pessoa natural ou jurídica. 2) Os legalmente inalienáveis, que, apesar de suscetíveis de apropriação pelo homem, têm sua comercialidade excluída pela lei, para atender aos interesses econômico-sociais, à defesa social e à proteção de determinadas pessoas. Todavia, poderão ser alienados, por autorização legal (Dec. n. 647/92, que deu nova redação ao Dec. n. 99.266/90, art. I a), apenas em certas circunstâncias e mediante determinadas formalidades. Entram nesta categoria: a) Os bens púT e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 402 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o blicos, pois o Código Civil declara, no art. 100, inalienáveis os bens de uso comum e especial, e, no art. 101, alienáveis os bens públicos dominicais, observadas as exigências da lei; CF, arts. 49, XVII, 225, § 5a, 188, §§ I a e 2a; Ato das Disp. Transitórias, arts. 51, §§ l 2 a 32, e 68), com o objetivo de evitar a especulação ou a má distribuição de um bem necessário ao povo. b) Os bens das fundações (CC, arts. 62 a 69), em atenção ao seu destino certo e determinado (RT, 138:20). c) Os bens dos menores (CC, art. 1.691), a fim de proteger os incapazes. d) Os lotes rurais remanescentes de loteamentos já inscritos, quando tiverem área inferior ao módulo fixado para a respectiva região (Lei n. 4.947/66, art. 10, § 2a). é) O capital destinado a garantir o pagamento de alimentos pelo autor do ato ilícito a favor da vítima, enquanto esta viver, ou enquanto durar a obrigação do devedor, caso a vítima venha a falecer em virtude daquele ilícito (CPC, arts. 475-Q, com redação da Lei n. 11.232/2005, 649, IV, § 2a e 650, com a alteração da Lei n. 11.382/2006). f) O terreno onde está edifícado um edifício de condomínio por andares (CC, art. 1.331, § 2a), enquanto persistir o regime condominial. g) O bem de família, instituto originário dos Estados Unidos, visando a assegurar um lar à família, pondo-o ao abrigo de penhoras por débitos posteriores à instituição, salvo os que provierem de impostos relativos ao prédio ou de despesas condominiais. Na execução desses débitos o saldo existente será aplicado em outro prédio, como bem de família, ou em títulos de dívida pública, para a mantença da família, exceto se razões relevantes aconselharem outra solução, a critério do juiz. Consequentemente, não terá eficácia para fraudar credores, mediante inadimplemento de dívidas anteriores a ele (RT, 126:631); neste caso impera a regra de que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas. Os cônjuges ou a entidade familiar (pessoa solteira, sem prole, mesmo que viva em concubinato; tutor, curador ou avô não podem instituir bem de família) destinam parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição (CC, art. 1.711). Com isso o patrimônio do instituidor, apesar de desfalcado do objeto do bem de família, que ficará isento de execução, deverá tér condições de assegurar a satisfação das dívidas anteriores do instituidor, pois com a cláusula ficará isento da execução por dívidas futuras. Logo quem possuir apenas um imóvel não poderá instituí-lo, nem quem tiver dois, de valores equivalentes, e quem for proprietário de três imóveis não poderá instituir como bem de família o de maior valor, salvo se possuir valores mobiliários. Requer, ainda, registro do seu título constituto no Registro de Imóveis, para irradiar efeitos jurídicos (CC, art. 1.714). O bem de família poderá, ainda, ser instituído por terceiro por ato inter vivos ou causa mortis, desde que ambos os cônjuges beneficiados ou a entidade familiar contemplada aceitem ex­ 403 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l pressamente a liberalidade (CC, art. 1.711, parágrafo único) e haja registro no assento imobiliário (CC, art. 1.714). Terceiro poderá apor cláusula de reversão, para que os bens voltem ao seu patrimônio em caso de dissolução conjugal e maioridade de prole (CC, art. 547). O bem de família pode consistir em prédio residencial, urbano ou rural, que os cônjuges ou conviventes destinam para abrigo familiar, incluindo suas pertenças e acessórios, p. ex., mobília, utensílios de uso doméstico, gado e instrumentos de trabalho, com a cláusula de ficar isento da execução de débitos futuros. Essa cláusula de bem de família poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família (CC, art. 1.712). Tais valores mobiliários não poderão exceder o valor do prédio instituído em bem de família, à época de sua instituição e deverão ser devidamente individualizados no instrumento de instituição como bem de família. Se se tratar de títulos nominativos, a sua instituição como bem de família deverá constar dos respectivos livros de registro. O instituidor poderá não só determinar que a administração dos valores mobiliários seja confiada à instituição financeira, como também disciplinar a forma de pagamento da respectiva renda aos beneficiários, que, em regra, corresponde a 12% ao ano da retribuição do capital, hipótese em que a responsabilidade dos administradores obedecerá às normas do contrato de depósito (CC, arts. 1.713, §§ l 2 a 3a, e 627 a 646). Se houver liquidação da entidade administradora, esta não atingirá os valores a ela confiados, ordenando o juiz a sua transferência para outra instituição similar, obedecendose, na hipótese de falência, ao disposto sobre pedido de restituição (CC, art. 1.718). O prédio e os valores mobiliários, constituídos como bem de família, formam um patrimônio familiar separado e destinam-se à salvaguarda da família (CC, art. 1.712), por isso só podem ser alienados com o consentimento dos interessados ou de seus representantes legais, ouvido o Ministério Público (CC, art. 1.717). Isto é assim porque o prédio, solenemente destinado pela família solvente como domicílio desta, não pode ter outro destino, logo, deverá ser levado em conta em sua administração; se, porventura, os cônjuges precisarem e quiserem vendê-lo, seus filhos menores consentirão por meio de curador especial, ouvindo-se o órgão do Ministério Público. A cláusula do bem de família será eliminada, por mandado do juiz, a requerimento do instituidor, ou de qualquer interessado, se o prédio deixar de ser domicílio da família, ou por motivo relevante plenamente comprovado, como a impossibilidade de sua manutenção nas condições em que foi instituído. O juiz, sempre que possível, determinará que tal cláusula recaia em outro prédio, em que a família estabeleça domicílio ou que haja sub-rogaçâo dos bens que constituem o bem de família em outros, ouvidos o instituidor e o Ministério Público (CC, 404 C o r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o art. 1.719). Se for eliminada a cláusula, pela verificação de uma das hipóteses legais, o prédio entrará em inventário para ser partilhado. Não se cobrarão juros moratórios sobre o imposto de transmissão relativamente ao período da abertura da sucessão ao cancelamento da cláusula. É, conforme ensinamento de Marques dos Reis, "o prédio solenemente destinado pelo chefe de família solvente como domicílio desta, gozando de relativa impenhorabilidade, não podendo ter outro destino, nem ser alienado, sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais" (RT, 454:212), sendo certo, assim, que, caso o marido resolva vendê-lo, deverá obter a anuência de sua mulher e de seus filhos, que consentirão, por curador especial, designado pelo juiz, ouvindo-se ainda o órgão do Ministério Público. A cláusula somente poderá ser levantada por mandado do juiz se for requerido pelo instituidor que o justifique por motivo relevante e comprovado, ou por qualquer interessado que prove desvio em sua destinação. Se na família houver menores impúberes, não poderá ser eliminada a cláusula de alienação do imóvel, salvo se houver subrogaçâo em outro imóvel para a habitação da família, desde que razoavelmente justificada (RT, 438:249, 418:171). Como se vê, na administração, não há poderes absolutos. Se ambos os cônjuges falecerem, a administração passará ao filho mais velho, se for maior, e, do contrário, ao seu tutor (CC, art. 1.720, parágrafo único). Contudo, sua inalienabilidade é relativa, somente subsiste enquanto viver um dos cônjuges e até que os filhos completem a maioridade, desde que não sujeitos à curatela (CC, arts. 1.715, 1.716 e 1.722). Se um dos cônjuges falecer, o prédio não entrará em inventário nem será partilhado enquanto viver o outro, mas, se este se mudar do prédio, e se nele não ficar residindo filho menor, a cláusula será eliminada e o imóvel, partilhado; se ambos falecerem,.dever-se-á esperar a maioridade de todos os filhos. O prédio entrará em inventário para ser partilhado somente quando a cláusula for eliminada, pois, havendo dissolução do matrimônio pela morte de um dos cônjuges, o supérstite poderá pedir a extinção do bem de família se for o único bem do casal (CC, art. 1.721, parágrafo único). A instituição do bem de família deve ser por via de escritura pública, com a individuação do prédio e declaração de sua destinação, devidamente registrada (Lei n. 6.015/73, arts. 260 e 265; CC, art. 1.714). Não é qualquer imóvel, convém repetir, que pode ser objeto de bem de família, mas sim prédio residencial, urbano ou rural, desde que de valor não superior a 1/3 do patrimônio líquido existente por ocasião da instituição do bem de família (CC, art. 1.711). Será preciso lembrar que, além do bem de família convencional, previsto nos arts. 1.711 e s. do Código Civil, haverá, pela Lei n. 8.009/90, impenhorabilidade do único imóvel da família, urbano ou 405 I 4 rural (art. 4a, § 2a), e dos móveis que d guárnecerem, como p. ex. máquinas de lavar e secar roupa, geladeira, fogão, computador, televisão etc. (exclúídos os veículos, obras de arte e adornos suntuosos) devidamente quitados, desde que o casal ou a entidade familiar nele tenha fixado residência permanente (arts. Ia e 2a). Pela Súmula 364 do STJ inclui-se também pessoa solteira, separada e viúva. Trata-se do bem de família legal. Tais bens não responderão por dívidas civil, mercantil, fiscal, trabalhista ou previdenciária, salvo se o processo de execução for movido: 1) em virtude dos créditos de trabalhadorés da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; 2) pelo titular do crédito oriundo do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; 3) pelo credor de pensão alimentícia; 4) para a cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; 5) para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; 6) por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens (art. 3a). Considerar-se-á, para efeito da Lei n. 8.009/90, residência da família um único imóvel destinado para moradia permanente (que não se confunde com o bem de família, previsto nos arts. 1.711 a 1.722 do CC), excluindo-se, assim, do benefício da impenhorabilidade as casas de veraneio (art. 5a) e a única residência de fiador de locação (Lei n. 8.245/91, art. 82; STF, RE n. 407.688, j. 8,2-2006, rei. Min. Cézar Peluso). Esta não beneficia aquele que, tendo conhecimento de que é insolvente, adquirir de má-fé imóvel de maior valor para transferir a residência familiar, desfazendo-se, ou não, da antiga moradia, pois o juiz poderá, na ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a morada anterior, anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para a execução (art. 4a, § l fl). h) Os bens móveis ou imóveis tombados existentes no País, cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (Dec.-lei n. 25/37, arts. Ia e 13 a 17; Lein. 7.542/86, art. 20, §§ Ia a 4a, com a redação da Lei n. 10.166/2000; CF, art. 216, V, §§ Ia, 4a e 5a; Portaria n. 299/2004 do IPHAN; EJSTJ, 10:54, 11:50; RSTJ, 82:121, 79:71; Boi. AASP, 1.856:86, 1.911:90, 2704: 5 777,2711:1937-03; JB, 156:216). Não estão propriamente fora do comércio; sua alienabilidade é restrita, não podendo ser livremente transferidos de uma pessoa a outra, sem autorização e registro. Não podem sair do País, nem ser demolidos ou mudados. Seus proprietários não perdem o domínio pela inscrição T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 406 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o no tombamento, mas têm o seu exercício restrito, não tendo plena liberdade de alienação, i) As terras ocupadas pelos índios (CF, art. 231, § 4S)45‘A. 3) Os inalienáveis pela vontade humana, que lhes impõe cláusula de inalienabilidade, temporária ou vitalícia, nos casos e formas previstos em lei, por ato inter vivos ou cansa mortis. P. ex.: o titular do bem pode colocar essa cláusula em doação ou testamento a fim de que o bem não saia do patrimônio do donatário ou do herdeiro, protegendo-os contra eles mesmos, impedindo que atos de irresponsabilidade, prodigalidade e má administração possam esvaziar seu acervo (CC, art. 1.911; STF, Súmula 49)46. 45-A. Portaria n. 420, de 22 de dezembro de 2010, do IPHAN, dispõe sobre os procedimentos a serem observados para a concessão de autorização para realização de intervenções em bens edificados tombados e nas respectivas áreas de entorno. 46. Álvaro Villaça Azevedo, Bens inalienáveis, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 11, p. 231-7; Bem de família, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999; Legros, Des clauses d'inaliénabilitê dans les actes à titre gratuit, Paris, Rousseau, 1909; R. Limongi França, Manual de direito civil, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1975, v. 1, p. 229 e s.; Sá Freire, Manual do Código Civil brasileiro, v. 2, Rio de Janeiro, Ribeiro dos Santos, 1930, p. 591, arts. I2 a 73; Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos, A impenhorabilidade do bem de família, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002; Agostinho Alvim, Comentários ao Código Civil, Rio-São Paulo, Ed. Jurídica e Universitária, 1968, v. 1, p. 289; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 164-71; Clóvis, op. cit., p. 221 e 222; Silvio Rodrigues, op. dt., v. 1, p. 161-72; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 163-7; Marques dos Reis, Manual do Código Civil, II, p. 142-91; Venosa, op. cit., p. 250-8; Emest Lehr, Droit civil des États Unis, 1906, p. 74-7; Donaldo Armelin, Impenhorabilidade do bem de família (retroeficácia da Lei n. 8.009/90?), JB, 170:21-30; Dyvandre, Le bien de famille, Paris, 1911; Bureau, Le homestead ou Vinsaisissábilité de la petite propriété fonciéré, Paris, 1895; Aída K. de Carlucd, Protección jurídica de la vivienda familiar, Buenos Aires, Depalma, 1995, p. 59-160; Mariana Ribeiro Santiago, Da instituição do bem de família no caso de união estável, Revista de Direito Privado, 18:176-188; Raoul de la Grasserie, De Vindisponibilité et de 1'indivisibilité du patrimoine, Paris, 1899; Antonio Augusto Queiroz Telles, Tombamento e seu regime jurídico, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992; Heraldo Garcia Vitta, Tombamento: uma análise crítica, Revista do Tribunal Regional Federal — 3a Região, 64:61-106; Tedeschi, II regime patrimoniale delia famiglia, Torino, 1956, p. 67 e s.; Vernier, American Family Law, 1995, v. III, p. 229; Carvalho Santos, Código Civil comentado, 1952, v. II, p. 198; Zeno Veloso, Emendas ao Projeto de Código Civil, Belém, 1985, p. 103-6; Paulo Affonso Leme Machado, A gestão dos bens tombados e o patrimônio cultural (Estudos do direito constitucional em homenagem a Maria Garcia (org. Lauro L. G. Ribeiro e Luciana A. A. Berardi), São Paulo, lOB-Thomson, 2007, p. 362-375; Antonio Silveira R. dos Santos (Área de entorno do imóvel tombado, Tribuna do Direito, junho 2002, p. 18) pondera que o art. 18 do Dec.-lei n. 25/37 veda que na vizinhança (entorno) de coisa tombada se faça, sem autorização judicial, alguma construção, se coloquem anúncios etc., se reduza a visibilidade do bem tombado. Tal área de entorno é definida na Lei municipal paulista n. 10.032/85, art. 2a, V. A Portaria n. 299/2004 do IPHAN cria o Plano de Preservação de Sítio Histórico Urbano (PPSH), que é um instrumento de caráter normativo, estratégico e operacional, destinado ao desenvolvimento de ações de preservação em sítios urbanos tombados em nível federal, e deve resul- 407 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l Graficamente, temos: Bens quanto à possibilidade de comercialização o o Bens inalienáveis : inalienáveis i por vontade humana legalmente inalienáveis (p. ex. CC, arts. 100 e 101, 1.691 etc.) tai de acordo entre os principais setores públicos e privados, constituindo-se em processo participativo. A Súmula 364 do STJ consolida, como já dissemos, o entendimento de que a impenhorabilidade do bem de família se estende a pessoas solteiras, separadas, divordàdas (art. 226, § 6a, da CF, com a redação da EC n. 66/2010) e viúvas, sendo o bem de família legal. inapropriáveis por sua natureza Bens aiienáveis Q uadro S in ó tic o cu s s ín o A Ç Ã o nos bens 1. FINALIDADE DA CLASSIFICAÇÃO 2. BENS CONSIDERADOS EM SI MESMOS 3. BENS RECIPROCAMENTE CONSIDERADOS Facilitar a compreensão dos bens, agrupando as várias espécies de um gênero, para aproximar as que apresentam um elemento comum, afastando as que não o apresentam. a) Corpóreos, se tiverem existência material, e incorpóreos, se não tiverem. b) Móveis, se puderem ser transportados sem destruição de um lugar para outro e sem alteração em sua substância, podendo sê-lo por: natureza, antecipação, determinação legal (CC, arts. 82, 8 3 ,1 a III; Lei n. 9.279/96, art. 5a; CP, art. 155, § 3a); e imóveis, se não puderem ser transportados sem destruição de sua substância, podendo classificar-se em imóveis por sua natureza (CC, art. 79, I a parte); por acessão física artificial (CC, art. 79, 2a parte); por acessão intelectual (CC, art. 93) e por determinação legal (CC, art. 80, I e II). c) Fungíveis e infungíveis (CC, art. 85), isto é, os que podem ou não ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Distinção importante para configuração de certos institutos jurídicos (CC, arts. 579, 645, 369, 307, 1.915, 313 e 565). d) Consumlveis, se terminarem logo com o primeiro uso, havendo imediata destruição de sua substância (CC, art. 86). Inconsumíveis, se puderem ser usados continuadamente, possibilitando que se retirem todas as suas utilidades sem atingir sua integridade. e) Divisíveis (CC, art. 87), se puderem ser fracionados em partes homogêneas e distintas, sem alteração das qualidades essenciais do todo e sem desvalorização, formando um todo perfeito. Indivisíveis podem ser: por natureza (CC, art. 88); por determinação legal (CC, arts. 1.386, 1.421, 1.791, parágrafo único); por vontade das partes (CC, art. 314). A importância dessa distinção é demonstrada no CC, arts. 259, 1.322, 504, 1.131, 1.336, 1.968, § 1®, 639, 844 e 105. f) Singulares são os que embora reunidos se consideram de per si, independentemente dos demais (CC, art. 89). Coletivos, os constituídos por várias coisas singulares, consideradas em conjunto, formando um todo único, que passa a ter individualidade própria, distinta da dos seus objetos componentes que conservam sua autonomia funcional. Apresentam-se como universalidade de fato ou de direito (CC, arts. 90 e 91). 1 Conceito de coisa • Principal é a coisa que existe sobre si, abstrata ou concretamente; acesprincipal e acessória sória é aquela cuja existência supõe a da principal (CC, art. 92). A coisa acessória segue a principal, salvo disposição especial em contrário (CC, art. 92). A acessória pertence ao titular da principal (CC, arts. 1.248,1.209, 233 e 287). a) Frutos que, quanto à origem, são naturais, industriais e civis e, quanto ao estado, pendentes, percebidos, estantes, percipiendos e consumidos. b) Produtos. c) Rendimentos. d) Benfeitorias voluptuárias, úteis e necessárias (CC, art. 96), que têm relevância jurídica como se pode ver no CC, arts. 1.219, 1.220, 1.221, 1.222, 1.322, 1.660, 878, 453, 2.004; Dec.-lei n. 9.760/46, arts. 48, § 2a, 71 e 132, § I a. e) Acessão (CC, art. 1.248, I a V). f) Pertença (CC, art. 93). g) Partes integrantes. a) Naturais, se oriundos de fatos da natureza: frutos naturais, produtos orgânicos e inorgânicos, subsolo e as coisas que nele se achem sem dono conhecido, ilhas formadas nos rios, álveo abandonado, terras de aluvião, avulsão. b) Industriais, se aderirem ao principal por intervenção do engenho humano: construções, plantações, frutos industriais, benfeitorias. c) Civis, se resultantes de uma relação jurídica abstrata, juros, ônus reais, aluguéis. • Importância dessa divisão » Espécies de acessório - Classificação dos bens acessórios BENS CONSIDERADOS RELAÇÃO AO TITULAR DO DOMÍNIO BENS FORA DO COMÉRCIO Bens particulares Bens alienáveis Bens Inalienáveis Conceito Espécies • Os do domínio nacional, pertencentes à União, Estados, Territórios e Municípios (CC, art. 98). ■ Uso comum (CC, arts. 99, I, e 103). - Uso especial (CC, art. 99, II). • Dominicais (C C , art. 99, III e parágrafo único; Dec.-lei n. 9.760/46, arts. 64 e s.; Dec.-lei n. 227/67; Dec.-lei n. 318/67; EM “ ®ens Públicos Dec.-lei n. 3.236/41; Lei n. 2.004/53, ora revogada pela Lei n. 9.478/97; Lei n. 6.925/81; Dec. n. 87.040/82). • Inalienabilidade (CC, art. 100). •• Imprescritibilidade (Dec. n. 22.785/33; Dec. n. 9.700/64, art. “ Caracteres 200; Lei n. 4.504/64, art. 98; Lei n. 6.969/81; Dec. n. 87.040/82; CF/88, art. 191, parágrafo único). • impenhorabilidade. Os que tiverem como titular de seu domínio pessoa natural ou pessoa jurídica de direito privado. São os que podem ser transferidos ou apropriados, passando, gratuita ou onerosamente, de um patrimônio a outro, quer por sua natureza, quer por disposição legal. São os que não podem ser transferidos de um acervo patrimonial a outro ou insuscetíveis de apropriação, incluindo os inalienáveis por sua natureza, como coisa de uso inexaurível e direitos da personalidade; os legalmente inalienáveis: bens públicos (CC, art. 100); bens de fundação (CC, arts. 62 a 69); bens de menores (CC, art. 1.691); lotes rurais inferiores ao módulo fixado (Lei n. 4.947/66, art. 10, § 2a); capital destinado a garantir o pagamento de alimentos à vítima de ato ilícito (CPC, arts. 475-Q e 650); terreno onde está edificado prédio de condomínio por andares (CC, art. 1.331, § 2S); bem de família (CC, arts. 1.711 a 1.722; Dec.-lei n. 3.200/41; Lei n. 8.009/90); tombamento dos imóveis e móveis (Dec.-lei n. 25/37, arts. I a e 13 a 17); e terras ocupadas pelos índios (CF, art. 231, § 4a); os inalienáveis pela vontade humana, em razão de cláusula de inalienabilidade em doação ou testamento (CC, art. 1.911). ----------—----: , --/ ( -i ;;d I---K b n .o■ Go 'T i o H O I,/') ‘../J 7 Teoria geral dos fatos jurídicos A . C O í? C E T T O V E F 4 .T O 1V R I D I C O £ M S E > T T X B O A M I-' L O O fato jurídico lato sensu é o elemento que dá origem aos direitos subjetivos, impulsionando a criação da relação jurídica, concretizando as normas jurídicas. Realmente, do direito objetivo não surgem diretamente os direitos subjetivos; é necessária uma "força" de propulsão ou causa, que se denomina "fato jurídico"1. Com muita propriedade pontifica R. Limongi França que o fato jurídico, estribado no direito objetivo, dá azo a que se crie a relação jurídica, que submete certo objeto ao poder de determinado sujeito. A esse poder se denomina direito subjetivo. A esse respeito vislumbra Caio Mário da Silva Pereira dois fatores constitutivos do fato jurídico: um fato, isto é, qualquer eventualidade que atue sobre o direito subjetivo, e uma declaração da norma jurídica, que confere efeitos jurídicos àquele fato. De modo que a conjugação da eventualidade e do direito objetivo é que dá origem ao fato jurídico2. 1. Trabucchi, Istituzioni di diritto civile, p. 112; Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1971, p. 226; Marcos Bemardes de Mello, Teoria do fato jurídico, São Paulo, Saraiva, 1993; Zeno Veloso, Fato jurídico — Ato jurídico — Negócio jurídico, Revista de Informação Legislativa, 125:87-95; Roberto Senise Lisboa, op. cit., p. 153-218; Armando Roberto Holanda Leite, Dos fatos e atos jurídicos, 1980; Humberto Theodoro Jr., Negócio jurídico: existência, validade, eficácia, vícios, fraude e lesão, RT, 780:11; Silvio Macedo, Uma avaliação da teoria do negócio jurídico, RDC, 29:440; Wilson Aquino, Negócio jurídico, RDC, 19:103; Zeno Veloso, Fato jurídico, ato jurídico, negócio jurídico, RDC, 74:84; Lizardo T. Córdova, La tipiddad en la teoria general dei negocio jurídico, RDC, 72:93. Deveras, etimologicamente, "fato" advém do latim factum, de facere, que significa fazer, causar, executai, desempenhar (De Plácido e Silva, Vocabulário jurídico, v. 2, p. 678). 2. R. Limongi França, Fato jurídico, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 36, p. 347; Caio M. S. Pereira, Instituições de direito civil, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 397. 414 Para Savigny os fatos jurídicos são "os acontecimentos em virtude dos quais as relações de direito nascem e se extinguem"3. Convém ampliar essa definição, pois nem sempre o fato faz nascer ou perecer o direito, atuando, às vezes, sobre a relação jurídica já existente para modificá-la e para protegê-la, possibilitando sua subsistência. Assim: "fatos jurídicos seriam os acontecimentos, previstos em norma de direito, em razão dos quais nascem, se modificam, subsistem e se extinguem as relações jurídicas"4. B. C l a s s i f i c a ç ã o d o s f a t o s j u r í d i c o s O fato jurídico pode ser natural ou humano. O fato natural advém de fenômeno natural, sem intervenção da vontade humana, que produz efeito jurídico. Esse evento natural consiste no fato jurídico stricto sensu, que se apresenta ora como ordinário (nascimento, maioridade, morte, decurso do tempo, abandono do álveo pelo rio, aluvião, e avulsão), ora como extraordinário (caso fortuito, força maior)5. P. ex.: desabamento de um edifício em razão de fortes chuvas; incêndio de uma casa provocado por um raio; naufrágio de uma embarcação em virtude de maremoto. Todos esses acontecimentos provocam efeitos jurídicos, pois o nascimento de alguém acarreta a personalidade jurídica, tomando-o sujeito de direitos e obrigações; o incêndio ou o naufrágio ocasionam perda total ou parcial da propriedade, e a morte das vítimas traz por consequência a transmissão de seus bens a seus herdeiros6. O fato humanó é o acontecimento que depende da vontade humana, abrangendo tanto os atos lícitos como os ilícitos. Pode ser: a) voluntário, se produzir efeitos jurídicos queridos pelo agente, caso em que se tem o ato jurídico em sentido amplo, que abrange: o ato jurídico em sentido estrito, se C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 3. Savigny, Traité de droit romain, v. 3, § 103. 4. W. Barros Monteiro, Curso de direito civil, v. 1, São Paulo, Saraiva, 1966, p. 172; Caio M. S. Pereira, Instituições de direito civil, 5. ed.. Rio de Janeiro, Forense, v. 1, p. 396 e 397. Edmond Picard (Le droitpur, § 103) prefere denominar o fato jurídico "fato jurfgeno", por ser esta expressão mais precisa para indicar a força criadora de relações jurídicas, porém recebeu fortes críticas porque o termo é inadequado para designar o fato como força modificadora e extintiva das relações de direito. Daí conservarem os autores a terminologia do Código: "fato jurídico" (livro III da Parte Geral). 5. Orlando Gomes, op. cit., p. 227. 6. Álvaro Villaça Azevedo, Fato (Direito civil), in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 36, p. 304; Venosa, op. cit., v. 1, p. 260-2. 415 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l objetivar a mera realização da vontade do agente (perdão, ocupação, confissão etc.) e o negócio jurídico, se procura criar normas para regular interesses das partes, harmonizando vontades que, na aparência, parecem antagônicas (testamento, contratos etc.) e que se subordinam a algumas disposições comuns; e b) involuntário, se acarretar conseqüências jurídicas alheias à vontade do agente, hipótese em que se configura o ato ilícito, que produz efeitos previstos em norma jurídica, como sanção, porque viola mandamento normativo. P. ex.: a indenização por perdas e danos. Como se vê, o ato ilícito não origina direito subjetivo a quem o pratica, mas sim deveres que variam de conformidade com o prejuízo causado a outrem7. Representação gráfica: Fatos jurídicos feto feto natural humano P' fato jurídico voluntário Involuntário stricto sensu ato jurídico em sentido amplo fato jurídico ordinário feto jurídico extraordinário ato ilícito ato jurídico em sentido estrito negocio jurídico 7. Álvaro Villaça Azevedo, Fato, cit., p. 305; R. Limongi França, Fato jurídico, cit., p. 348; Orlando Gomes, op. cit., p. 227; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 399; Kelsen, Teoria 416 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o C. A q u i s i ç ã o d e d i r e i t o s Segundo Stolfi, a aquisição de um direito é a sua conjunção com seu titular. Assim, surge a propriedade quando o bem se subordina a um dominus8. No âmbito patrimonial dois são os modos de adquirir direitos: 1) O originário, se o direito nascer no momento em que o titular se apropria do bem de maneira direta, sem interposição ou transferência de outra pessoa. P. ex.: a ocupação de uma coisa abandonada, a apropriação de uma concha que o mar atira à praia, a caça e a pesca; a avulsão (CC, arts. 1.248, III, e 1.251 e parágrafo único), ou seja, situação em que, por força natural violenta, uma porção de terra se destaca de um prédio para se acrescer a outro. 2) O derivado, se houver transmissão do direito de propriedade de uma pessoa a outra, existindo uma relação jurídica entre o anterior e o atual titular. P. ex.: a compra e venda de uma casa cuja escritura pública foi transcrita no Registro Imobiliário competente. Importante é essa distinção porque ninguém pode transferir mais direitos do que tem; assim, se a aquisição for derivada, o adquirente terá seu direito limitado pela extensão do de pura do direito, Coimbra, 1962, v. 1, cap. IV, n. 27, a. É preciso deixar claro que o ato ilícito é jurídico, pois, apesar de ilícito, pertence à categoria dos atos jurídicos, visto que o Ilícito não é negação do direito, mas seu pressuposto, uma vez que gera efeitos jurídicos. Na lição de Kelsen, o ilícito aparece como pressuposto (condição) e não como negação do direito, logo o ilícito não é um fato que está fora do direito e contra o direito, mas é um fato que está dentro do direito e é por este determinado, pois este se refere precisa e particularmente a ele. Assim sendo, o ilícito, juridicamente, apenas pode ser concebido como direito. Realmente, quando se fala de conduta contrária ao direito, o elemento condicionante é a aplicação da sanção. O ilícito é a conduta daquele indivíduo contra o qual é dirigido o ato coativo que funciona de sanção. É preciso lembrar, como o fez Rosmini, que a norma jurídica brilha enquanto violada. Na verdade, se não puder ser violada é lei física, pois, sem um mínimo de possibilidade de um ato contra o que se refere a norma, não se pode falar em norma como um dever ser em cuja estrutura está a imputação de uma sanção a um comportamento delituoso que a provoca. É, portanto, errôneo afirmar que na designação de não direito (ilícito), contradição com o direito, quebra do direito, ofensa do direito se exprime a ideia de uma negação do direito, a representação de algo que está fora do direito e contra ele, que ameaça, interrompe ou mesmo suprime a existência do direito. Não se deve, portanto, dizer que o ato ilícito não é jurídico. Vide Bonifácio Rios Avalos, Introducciôn al estúdio de los hechos y actos jurídicos, Asunción, 1996. 8. Serpa Lopes, Curso de direito civil, 4. ed., São Paulo, Freitas Bastos, 1962, v. 1, p. 387; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 400. 417 seu antecessor, de forma que, p. ex., se alguém adquiriu um imóvel de quem não era proprietário, esse vício que inquinava o direito do antecessor continua a ferir o do adquirente, ou se alguém comprar um prédio gravado com servidão, esse ônus real também é transmitido. Por outro lado, se originária a aquisição, não há que se cogitar de extensão ou limitação de direitos, pois, nesta hipótese, adquire-se o direito em toda sua plenitude9. A aquisição pode ser ainda: 1) gratuita, se não houve qualquer contraprestação, p. ex., a sucessão hereditária, e 2) onerosa, quando o patrimônio do adquirente enriquece em razão de uma contraprestação, p. ex., compra e venda10. Levando-se em consideração a maneira como se processa, temos: 1) aquisição a título universal, se o adquirente substitui o seu antecessor na totalidade de seus direitos ou numa quota ideal deles, tanto nos direitos como nas obrigações, como é o caso do herdeiro, e 2) aquisição a título singular, quando se adquire uma ou várias coisas determinadas, apenas no que concerne aos direitos, como sucede com o legatário, que herda coisa individuada11. Quanto ao seu processo formativo, pode ser: 1) simples, se o fato gerador da relação jurídica consistir num só ato, p. ex.: assinatura de um título de crédito, ou 2) complexa, se for necessária a intercorrência simultânea ou sucessiva de mais de um fato, p. ex., a usucapião que requer: posse prolongada, lapso de tempo, inércia do titular e em certas hipóteses justo título e boa-fé12. Quanto à aquisição infere-se das normas do Código Civil que: 1) os direitos podem ser adquiridos por ato do adquirente ou por intermédio de outrem. Assim, se o titular for incapaz, a aquisição de seus direitos opera-se por meio da representação legal, como no caso do poder familiar, da tutela ou da curatela. E se capaz, surge a representação convencional que se realiza por mandato (procuração) ou por gestão de negócio. T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 9. Oertmann, Introducción al derecho civil, § 32; Bassil Dower, Curso moderno de direito civil, Nelpa, 1976, v. 1, p. 173 e 174; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 175 e 176; Calo M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 401-3; Cario Fadda, Negozio giuridico, § 27; Orlando Gomes, op. cit., p. 228; Silvio Rodrigues, Direito civil, 3. ed., Max Limonad, 1966, v. 1, p. 182. 10. Orlando Gomes, op. cit., p. 228. 11. Orlando Gomes, op. cit., p. 228. 12. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 389, e Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 399; Capitant, Introduction à l'étude du droit civil, p. 238. 418 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o Contudo, há direitos que podem ser adquiridos independentemente do ato do adquirente ou de seu representante, como nas hipóteses de avulsão (CC, arts. 1.248, III, e 1.251 e parágrafo único) e aluvião (CC, arts. 1.248, II, e 1.250 e parágrafo único)13; 2) a pessoa pode adquirir para si, ou para outrem. Normalmente a pessoa adquire direitos para si; todavia, pode adquiri-los para terceiro, sem que haja qualquer representação, e, às vezes, sem conhecimento do terceiro em favor de quem se adquire direitos; trata-se da estipulação em favor de terceiro, prevista nos arts. 436 a 438 do Código Civil. P. ex.: suponhamos que A contrate com uma companhia seguradora que, no caso de sua morte, esta deverá pagar a quantia x a B. Dessa forma adquire-se direito para terceiro mediante seguro de vida; 3) os direitos completamente adquiridos são atuais, e os futuros os cuja aquisição não se acabou de operar, apresentando assim a distinção entre direito atual e futuro. O direito atual é aquele adquirido, que já está em condições de ser exercido14, por se incorporar imediatamente ao patrimônio do adquirente15. P. ex.: se, na compra e venda de uma obra de arte, houver pagamento integral à vista, com a sua tradição transfere-se ao patrimônio do comprador (CC, arts. 493 e 1.267). O direito futuro é aquele cuja aquisição, por ocasião da realização do negócio, não se operou, dado que sua efetivação depende de uma condição ou de um prazo. Trata-se de um direito não formado, que requer a complementação dos fatos determinantes de sua aquisição. P. ex.: se se compra uma casa a prestações mensais, a transferência da propriedade só se dará quando se pagar a última parcela (CC, art. 524), ocasião em que se exige a escritura pública para ser transcrita no Registro Imobiliário, sendo, portanto, o direito futuro, eventual, uma vez que sua aquisição pode ocorrer ou não16. O direito futuro será deferido, quando sua aquisição depende somente do arbítrio do sujeito, p. ex., o herdeiro, desde a abertura da sucessão até a aceitação da herança, tem direito futuro deferido, porque depende apenas de sua vontade torná-lo atual (CC, art. 1.784); e não deferido, quando se subordina a fatos ou condições falíveis. P. 13. Clóvis, Comentários ao Código Civil, v. 1, p. 332; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 174; Orlando Gomes, op. cit., p. 229. 14. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 174. 15. Orlando Gomes, op. cit., p. 229. 16. Bassil Dower, op. cit., p. 174 e 175; Orlando Gomes, op. cit., p. 229; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 390; Verdier, Les droits eventuels, Paris, 1955, n. 376, p. 302. 419 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l ex.: se alguém faz uma doação de uma casa a B, sob a condição deste se casar, o direito de B sobre o imóvel dependerá da realização de seu casamento, que poderá ocorrer ou não (CC, art. 125), ou se um recém-casado falecer, deixando mulher grávida e mãe viva, sua mãe apenas herdará seus bens em concorrência com sua mulher se o nascituro nascer morto (CC, arts. 1.829, II, 1.836 e 1.837), ou, ainda, o direito resultante de promessa de'recompensa, que dependerá do fato de o credor incerto realizar as condições da promessa para que possa exigi-lo de quem a formulou (CC, art. 854)17. Seria de bom alvitre distinguir-se a expectativa de direito do direito eventual (CC, art. 130) e do direito condicional18. A expectativa de direito é a mera possibilidade ou esperança de adquirir um direito. P. ex.: a situação do herdeiro testamentário que aguarda a abertura da sucessão, não gozando de qualquer proteção jurídica. Se houver um interesse, ainda que incompleto, pela falta de um elemento básico protegido por norma jurídica, temos direito eventual. P. ex.: penhor de um crédito futuro; promessa de venda; hipoteca sobre bens futuros; pacto de preferência; o direito à sucessão legítima que só se consolida com a morte do autor da herança, pelo fato de serem os herdeiros seus descendentes etc. O direito condicional é o que só se perfaz pelo advento de um acontecimento futuro e incerto, de modo que o seu titular só o adquire se sobrevier a condição. P. ex.: um advogado oferece sociedade ao seu estagiário se ele se formar em direito, ficando este com a possibilidade de adquirir aquele direito, se conseguir colar grau. Sem que haja alteração em sua substância, os direitos podem sofrer modificação em seu conteúdo ou objeto e em seus titulares. Assim, tem-se a modificação objetiva quando atingir a qualidade ou quantidade do objeto ou conteúdo da relação jurídica. 17. Bassil Dower, op. cit., p. 175; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 392. 18. Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 181 e 182; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 392-7; Vicente Ráo, O direito e a vida dos direitos, v. 2, n. 49; W. Barros Monteiro, op. cit., p. 175; Andrea Torrente, Manuale di diritto privato, p. 42; Verdier, op. cit., n. 375, p. 300 e 301; Goffredo Telles Jr., Iniciação na ciência do direita, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 331-40. 420 Qualitativa será a modificação quando o conteúdo do direito se converte em outra espécie. P. ex.: o credor por coisa determinada que recebe do devedor o equivalente em dinheiro, hipótese em que a obrigação de dar coisa certa se transmuda em dever de indenizar. Há, portanto, uma modificação na natureza do direito creditório, sem quaisquer alterações no crédito. Será quantitativa a modificação se o seu objeto aumentar ou diminuir no volume, sem alterar a qualidade do direito, em virtude de fato jurídico stricto sensu (p. ex.: diminuição de terrenos ribeirinhos, em virtude de aluvião), ou ato jurídico do titular ou de outrem (p. ex.: amortização do débito). A modificação subjetiva é a pertinente ao titular, subsistindo a relação jurídica, hipótese em que se pode ter a substituição do sujeito de direito inter vivos ou causa mortis. P. ex.: o poder jurídico ex eicid o por ele sobre um imóvel passa a sê-lo por outra pessoa, em razão de alienação ou desapropriação que, então, terá a titularidade do direito, afastando o primitivo titular. O direito da propriedade não perde sua substância, apenas ocorre um deslocamento de titularidade, sem cessação da relação jurídica. Da mesma forma, com a morte do titular, aberta a sucessão, a herança se transporta para os herdeiros legítimos e testamentários, o que assegura a continuidade da relação jurídica. Não só o sujeito ativo pode ser substituído, mas também o passivo, pois o devedor da relação jurídica pode ser substituído por outro em ato voluntário (assunção de dívida) ou involuntário (responsabilidade do herdeiro dentro do acervo hereditário), sem qualquer alteração na sua substância. É preciso lembrar que há direitos que não comportam modificação em seu sujeito por serem personalíssimos; extinguem-se com a sua morte ou substituição. Tem-se, ainda, modificação subjetiva quando houver multiplicação dos sujeitos. P. ex.: quando ao titular do direito outros se associam, exercendo, conjuntamente, os poderes inerentes à propriedade, caso em que o primitivo dono não deixa de sê-lo, mas perde a exclusividade do direito de propriedade, que tem como titulares os demais condôminos, ou quando vários devedores, de uma obrigação divisível, tomam o lugar do devedor. Poder-se-á ter, ainda, modificação subjetiva na hipótese: 1) de concentração, isto é, quando um direito possui vários titulares, que se vão reduzindo, como no usufruto simultâneo (CC, art. 1.411) instituído em benefício de muitas pessoas, que vão diminuindo de número, por morte ou por atingirem o limite de idade estipulado no ato constitutivo; e 2) de desdoC o r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 421 bramento da relação jurídica, se, p. ex., o sujeito de direito outorga uma parte de seus poderes em favor de outrem, sem contudo perder o direito, como a constituição de renda vitalícia. Observa Caio Mário da Silva Pereira que, além das modificações objetivas e subjetivas, há as que recaem sobre a intensidade do vínculo jurídico, que sofre atenuação sem extinguir-se: o locador a quem é oposto direito de retenção por benfeitorias, embora possa recuperar o bem locado, só poderá fazê-lo se indenizar o locatário das despesas efetuadas na coisa. Outras vezes o direito passa por um período de apatia, revigorando-se posteriormente em toda plenitude. P. ex.: o dono do prédio dominante, que adquire o serviente, não pode exercer direito de servidão sobre coisa própria, mas se vier a sofrer evicção do que adquiriu, restaura-se aquele direito19. Para resguardar seus direitos, o titular deve praticar atos conservatórios como: protesto; retenção (que é concedida ao possuidor que fez benfeitorias úteis e necessárias na coisa alheia — CC, art. 1.219); arresto (apreensão judicial da coisa, sobre a qual se litiga ou de bens suficientes para a segurança da dívida); seqüestro (depósito judicial da coisa litigiosa, para garantia do direito); caução fidejussória ou real; interpelações judiciais para constituir devedor em mora, quando esta não resulta de cláusula expressa na convenção ou de termo estipulado com esse escopo ou de notificação extrajudicial20. Quando sofrer ameaça ou violação, o direito subjetivo é protegido por ação judicial (CF, art. 5a, XXXV, e CC, art. 189). Para propô-la ou contestála, é preciso ter legítimo interesse econômico ou moral (CPC, art. 3a; STF, Súmula 409). A ação judicial é um direito que todos têm de movimentar a máquina judiciária para pedir proteção, fazendo cessar a violação de um direito subjetivo, desde que tenham legitimação para agir e interesse econômico, isto é, apreciável em dinheiro, ou moral, concernente à honra, à liberdade, ao decoro, ao estado da pessoa e à profissão do autor ou de sua família. P. ex.: a anulação de casamento de menor de 16 anos poderá ser requerida pelo próT e o r i a G e r a i d o D i r e i t o C i v i l 19. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 403-7; Orlando Gomes, op. cit., p. 230 e 231; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 397. 20. Clóvis, Teoria geral do direito civil, 4. ed., 1972, p. 300-2. 422 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o prio cônjuge menor, por seus representantes legais ou por seus ascendentes, conforme dispõe o art. 1.552 do Código Civil21. Se bem que, pelo art. 5a, LXXIII, da Constituição Federal de 1988, "qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas", por estar em jogo o interesse público. Tutelados estão os direitos atuais e futuros deferidos; quanto aos não deferidos, subordinados a fatos ou condições falíveis, é permitido exercer atos destinados a conservá-los. Deveras, o art. 130 do Código Civil assim reza: "Ao titular do direito eventual, nos casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo". Além desse meio de defender o direito lesado, o titular provido está de instrumentos de defesa preventiva, para impedir a violação de seu direito que pode ser: 1) extrajudicial, como a cláusula penal, arras, fiança etc.; e 2) judicial, como, p. ex., o interdito proibitório (CPC, art. 932), a ação de dano infecto (CC, art. 1.280) etc. Encontramos, ainda, em nosso ordenamento jurídico resquícios de justiça pelas próprias mãos, em que a pessoa lesada, empregando força física, se defende usando meios moderados, mediante agressão atual e iminente, sem recorrer ao Poder Judiciário. A autodefesa está prevista no art. 1.210, § 1-, do Código Civil, que estatui: "o possuidor, turbado ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse". F E x t i n ç ã o s o s d i r e i t o s Os direitos extinguem-se quando ocorrer: 1) Perecimento do objeto sobre o qual recaem (CC, arts. 1.410, V, e 1.436, II) se ele perder suas qualidades essenciais (campo invadido pelo mar) ou o valor econômico (cédulas recolhidas); se se confundir (CC, arts. 1.272, 1.273 e 1.274) com outro de modo que se não possa distinguir (confusão, mistura de líquidos; comistão, de sólidos e adjunção, justaposição de uma coisa à outra)22; se cair em lugar onde não pode mais ser retirado (anel que cai no mar). 21. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 180. STF, Súmula 150. 22. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 181 e 182. 423 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l O Código Civil, nos arts. 927, 929, 931 e 934, traça normas concernentes à responsabilidade civil, pois se a coisa perecer por fato alheio à vontade do dono, este terá ação pelos prejuízos contra o culpado. Tem, ainda, ação de perdas e danos contra aquele que, incumbido de conservar o bem, por negligência o deixa perecer, cabendo a este, por sua vez, direito regressivo contra o terceiro culpado. Neste caso tem-se a modificação e não extinção da relação jurídica, pois esta se transforma, sub-rogando-se a coisa destruída pelo valor da indenização. 2) Alienação, que é o ato de transferir o objeto de um patrimônio a outro, havendo perda do direito para o antigo titular. 3) Renúncia, que é o ato jurídico pelo qual o titular de um direito dele se despoja23, sem transferi-lo a quem quer que seja, sendo renunciáveis os direitos atinentes ao interesse privado de seu titular, salvo proibição legal. Insuscetíveis de renúncia são os direitos públicos e os que envolvem interesses de ordem pública, como os de família (poder familiar, poder marital etc.)24 e os da personalidade (vida, honra, liberdade). 4) Abandono, que é a intenção do titular de se desfazer da coisa, porque não quer mais continuar sendo seu dono. 5) Falecimento do titular, sendo o direito personalíssimo e por isso intransmissível (CC, arts. 520 e 560)25. P. ex., quando morre o filho extramatrimonial sem ter iniciado a ação de investigação de paternidade, perece o direito à declaração judicial da paternidade porque a iniciativa desta ação é do filho, e com sua morte opera-se a extinção do próprio direito26 (RT, 265:261). Mas, se porventura o investigante falecer na pendência da lide, seus herdeiros poderão continuar a ação (CC, art. 1.606 e parágrafo único). 6) Prescrição, que extinguindo a pretensão faz com que o direito de exigir, judicialmente, a obrigação do inadimplente do dever legal ou contratual desapareça pela ausência de tutela jurídica, embora possa haver modificação de sujeitos, como sucede no caso de usucapião, em que o antigo titular perde a ação (em sentido material) devido a sua inércia e, consequentemente, o possuidor adquire, por meio de sentença declaratória, o direito real. 23. Clóvis, op. cit., p. 303. 24. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 408 e 409. 25. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 182. 26. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 407 e 408. 424 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 7) Decadência, que atinge o próprio direito potestativo. 8) Abolição de uma instituição jurídica, como aconteceu com a escravidão, dote e usufruto vidual. 9) Confusão, se numa só pessoa se reúnem as qualidades de credor e de devedor (CC, arts. 381, 1.410, VI, e 1.436, IV). 10) Implemento de condição resolutiva. 11) Escoamento do prazo, se a relação jurídica for constituída a termo. 12) Perempção da instância ou do processo, ficando ileso o direito de ação (CPC, arts. 301, IV, 220, 267, V, § 32, 268 e 329)27. 13) Aparecimento de direito incompatível com o direito atualmente existente e que o suplanta. Em todos esses casos não renasce o direito28. 27. Na Parte Especial, o Código Civil prevê casos de extinção: perda da posse (art. 1.223); perda da propriedade (art. 1.275,1 a V); resolução do domínio (art. 1.359); extinção das servidões (arts. 1.387 a 1.389); do usufruto (art. 1.410); do penhor (art. 1.436,1 a V) e da hipoteca (arts. 1.499 e 1.500) (W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 182). 28. Orlando Gomes, op. cit., p. 234. , ou I—I H ' O fc c / d O pi Q <1 o="" o-="" s="" c="" cs="" uj="" cuun="" a="" data-mce-fragment="1">E a> to _Q3 v> E' roum— “OO£ a>E o v? ro m u *> ~a <pi—CL.2» O d) c IO QJ ra E a; u CP4-J E c 0) o 3 u cn ra c O ’-wX 'UJ dJ O oj 5 y E -a <0 o="" d="" q="" -="" w="" o2="" j="" cn="" c="" cj="" ro="" e="" a="" data-mce-fragment="1"> -C r-** & E “O noj ra 5--D ° ,£ 'LL1 U* COU •c o 0 «ro c ~ 1 > c ro oT cT T3 ira -S ’> 72 .2 o « 03 cT E. 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CLASSIFICAÇÃO Extraordinário Força maior, quando se conhece a causa que dá origem ao evento, por tratar-se de fato da natureza, como, p. ex., raio que provoca incêndio, inundação que danifica produtos. Caso fortuito, quando o acidente que gera o dano advém de causa desconhecida, como o cabo elétrico aéreo que se rompe e cai sobre fios telefônicos causando incêndio; explosão de caldeira de usina provocando morte ou é ocasionado por fato de terceiro (greve, motim). C o nceito Extinção de uma pretensão, em virtude da inércia de seu titular durante certo lapso de tempo. 3. PRESCRIÇÃO COMO FATO JURÍDICO - Existência de uma ação, em sentido material, exercitável. - Inércia do titular da pretensão pelo seu não exercício. • Continuidade dessa inércia durante um certo lapso de tempo. Requisitos j Ausência de algum fato ou ato a que a lei confere eficácia impeditiva (CC, arts. 197, I a III, 198, I, 199, I e II, e 200), suspensiva (CC, arts. 198, I e III, 199, III, e 201) ou interruptiva (CC, arts. 202, I a V e parágrafo único, 203 e 204; CPC, arts. 219 e parágrafos; 263 e 617) do curso prescricional. C urso de D ir e it o C ivil B r a s i l e i r o 3. PRESCRIÇÃO COMO FATO JURÍDICO 3. PRESCRIÇÃO COMO FATO JURÍDICO 4. DECADÊNCIA Para a doutrina, a prescrição aquisitiva ou usucapião visa à propriedade, fundando- -se na posse e no tempo, e a extintiva atinge qualquer ação, fundando-se na inércia Prescrição do titular e no tempo. Entendemos que a usucapião é uma energia criadora e exaquisitiva e tintiva do direito, ao passo que a prescrição é extintiva da pretensão e não do direiextintiva to. Assim, não há de se falar em prescrição aquisitiva, pois, de acordo com a sistemática do nosso Código Civil, a prescrição e a usucapião constituem dois institutos diversos. 1) Só pode haver renúncia da prescrição após sua consumação e desde que não se prejudiquem terceiros (CC, art. 191). 2) A prescrição pode ser alegada em qualquer instância ou fase processual pela parte a quem aproveita (CC, art. 193; RT, 447:209; 447:142 e 426:77). 3) Tanto as pessoas naturais como as jurídicas sujeitam-se aos efeitos da prescrição, ativa ou passivamente (CC, art. 189). 4) As pessoas relativamente incapazes e as pessoas jurídicas têm ação contra seus assistentes ou representantes legais, quando estes derem causa à prescrição (CC, art. 195). Normas 5) A prescrição iniciada contra uma pessoa continua a correr contra seu sucessor gerais sobre (*-C, art. 196), salvo se absolutamente incapaz. prescrição 6) O juiz pode pronunciar de ofício a prescrição (CPC, art. 219, § 5a). 7) Somente os interessados podem alegar a prescrição, mas se não a invocarem pessoalmente, poderá fazê-lo o representante do Ministério Público quando lhe couber intervir. 8) Com o principal prescrevem os acessórios (CC, art. 92). 9) A prescrição em curso não origina direito adquirido (RT, 174:282; 246:520). 10) As partes não podem restringir o prazo prescricional, mesmo que se trate de direitos patrimoniais (CC, art. 192). 11) Deve-se determinar o momento exato em que a prescrição começa a correr para que se calcule corretamente o prazo. Prazos prescricionais Ações imprescritíveis Prescrição ordinária Prescrição especial CC, art. 205. Lei n. 8.078/90, arts. 27, 12 a 17; CC, art. 206, §§ 1s a 5a. As que versam sobre: direitos da personalidade; estado da pessoa; bens públicos; bens confiados à guarda de outrem a título de depósito, penhor, mandato; direitos de família; pretensão do condômino de exigir a divisão da coisa comum (CC, art. 1.320), ou meação de muro divisório (CC, arts. 1.297 e 1.327); exceção de nulidade (CC, art. 1.860, parágrafo único); ação para anular inscrição do nome empresarial feita com violação de lei ou de contrato (CC, art. 1.167). Conceito E a extinção do direito potestativo pela inação de seu titular que deixa escoar o prazo legal ou voluntariamente fixado para seu exercício (CC, arts. 207 a 211). Objeto O direito que por determinação legal ou por vontade unilateral ou bilateral está subordinado à condição de exercício em certo espaço de tempo, sob pena de caducidade. Por via de ação ou de exceção. Em qualquer estado da causa ou em qualquer instância. CPC, art. 32. Podem argui-la contra o titular do direito: o sujeito passivo do direito se este se originar de relação jurídíca obrigacional; sujeito passivo da ação, quando este tiver por fundamento o direito decaído; os sucessores, a título universal ou singular, do sujeito passivo do direito ou da ação; qualquer terceiro, a que a eficácia do direito decaído acarretaria prejuízo. O juiz poderá conhecer ex officio a decadência ex vi legis, porque sendo de ordem pública é irrenunciável. ' Extinção imediata do direito e por via indireta da ação. - Prazo decadencial corre contra todos, salvo nos casos previstos em lei. * E irrenunciável se o prazo for estabelecido por lei. Não se suspende, nem se interrompe. 4. DECADÊNCIA - CC, arts. 68, 516, 1.077,1.109, parágrafo único, 445,1.122,1.148, 745, 119 e parágrafo único, 504, § I a, 513, parágrafo único, 618, parágrafo único, 1.555 e § I a, Prazos 1.560 e §§ 1*.e 2a, 1.795, 2.027, parágrafo único, 550, 501, 559, 1.302, 495,179, decadenciais 1.078, § 42, 26, 45, parágrafo único, 48, parágrafo único, 505, 1 7 8 ,1, II e III, 1.815, parágrafo único, 1.909, parágrafo único, 1.859, 1.389, III, 1.965, parágrafo único, 1.423, 1.614; Lei n. 1.533/51, art. 18; Lei n. 8.078/90, art. 26. 5. DISTINÇÃO DIDÁTICA ENTRE PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 1) A decadência extingue o direito e indiretamente a ação; a prescrição extingue a pretensão e, por via oblíqua, o direito. 2) O prazo decadencial é estabelecido por lei ou por vontade unilateral ou bilateral; o prazo prescricional somente por lei. 3) A prescrição supõe uma ação (em sentido material) cuja origem seria diversa da do direito; a decadência requer uma ação cuja origem é idêntica à do direito. 4) A decadência corre contra todos, exceto nos casos do art. 1 9 8 ,1, do CC (arts. 207 e 208 do CC) e do art. 26, § 2E, da Lei n. 8.078/90; a prescrição não corre contra aqueles que estiverem sob a égide das causas de interrupção ou suspensão previstas em lei. 5) A decadência decorrente de prazo legal pode ser julgada, de ofício, pelo juiz, independentemente de arguição do interessado; a prescrição das ações patrimoniais pode ser, ex officio, decretada pelo magistrado. 6) A decadência resultante de prazo legal não pode ser renunciada; a prescrição, após sua consumação, pode sê-lo pelo prescribente. 7) Só as ações (em sentido material) condenatórias sofrem os efeitos da prescrição; a decadência só atinge direitos sem prestação que tendem à modificação do estado jurídico existente. .... VI ps H* O to WVO “ I o 3 c • a n Oi P+ a -4 a ? 3'. ^ çT w a w S, N) • Cn S‘ R § • £ b ro i l * C u> a o S ns lo - 1 o 1 s 3 M & »d Q * SX N3CT f O I a o 3 3 Q. ►§ n p *n p»0 |vo & ^ ro ^ B . & ■ §■• a 01 "D fD gl M 8 O ' > o o 2 n w >-* H O O f* > cn D > »n >> o r t O l-t Pu I-*- O O o> GO (D E3rt P - o fD C /5 r t i-J h-4 • r t O 470 te alterius um evento psíquico; têm, necessariamente, destinatário, pois o sujeito pratica o ato para dar conhecimento a outrem de que tem certo propósito ou que ocorreu determinado fato. P. ex.: intimação (ato pelo qual alguém participa a outrem a intenção de exigir-lhe certo comportamento); interpelação (ato do credor em atenção ao devedor, para obter o pagamento, não constituindo o devedor em mora, embora haja efeito secundário determinado por lei, conducente à constituição de mora, mesmo não havendo o propósito de provocá-la); notificação (ato pelo qual alguém cientifica a outrem fato que a este interessa conhecer, p. ex., na hipótese de cessão de crédito, o cedente notifica o devedor que transmitiu o crédito, comunicando-lhe, assim, o ato que praticou, tratando-se de simples participação de ocorrência); oposição (ato pelo qual alguém impugna a realização de ato futuro, ou nega anuência ao que o requer, p. ex., revelação de impedimento matrimonial com o intuito de evitar casamento; recusa à prática de ato que demanda a anuência de alguém, quando um condômino, p. ex., discorda da venda da coisa comum); aviso (ato pelo qual se participa a outrem que determinada ocorrência se verificou ou se verificará, em certo prazo; emprega-se-o, com frequência, na convocação de acionistas para a assembleia geral ou de credor, para que, na falência, apresentem suas declarações de créditos. Os avisos destinados a muitas pessoas, bem como quando não se conheçam totalmente os destinatários, costumam-se fazer por edital publicado na imprensa periódica ou carta); confissão (declaração de verdade que consiste em admitir alguém a veracidade de fatos desfavoráveis); denúncia; convite etc. ü . A t o j u r í d i c o e m s e n t i d o e s t r i t o e n e g ó c i o j u r í d i c o A doutrina do ato jurídico que para os alemães corresponde à dos negócios jurídicos não é romana, embora tenha sido construída por abstração sobre elementos extraídos do direito romano pelos jusnaturalistas, em meados do século XVIII, e por civilistas que, posteriormente, lhe deram maior desenvolvimento, concluindo que a categoria mais importante para o direito é a dos atos lícitos, dentre eles o negócio jurídico. Vivas disputas doutrinárias se digladiaram em tomo da compreensão do negócio jurídico, chegando-se a diferenciá-lo do ato jurídico stricto sensu. Entretanto a figura do ato jurídico em sentido estrito permaneceu por muito tempo na penumbra, dado o fato de os juristas concentrarem sua atenção nos negócios jurídicos. Delineou-se o ato jurídico stricto sensu quando a doutrina percebeu, ao elaborar a teoria dos negócios jurídicos, a existência de atos que não se incluíam naqueles. C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 471 O direito francês não adotou essa dicotomia, uma vez que o Código de Napoleão tratou a matéria em termos excessivamente genéricos, cuidando apenas do fato jurídico e do ato jurídico, no que foi seguido pelo nosso Código Civil de 1916, de modo que no direito brasileiro de jure constituto não se utilizava a expressão "negócio jurídico", embora a definição do art. 81 fosse, rigorosamente, a de negócio jurídico. É na disciplina dos negócios jurídicos que o atual Código Civil apresenta maiores alterações em face do Código Civil de 1916, substituindo a expressão genérica ato jurídico, que se encontrava no Código anterior, pela designação específica negócio jurídico, uma vez que é a este e não àquele que se aplicam todas as normas ali constantes, eliminando assim a falta de técnica até então existente. E no que concerne aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, seguindo o art. 295 do Código Civil português de 1967, abriu-lhes um título da Parte Geral, com um artigo único, o 185, determinando que se lhes apliquem, no que couber, as disposições (CC, arts. 104 a 184) do título anterior. Seguindo a esteira do direito alemão filiando-se à doutrina do Rechtsgeschaft, preferiu a distinção entre ato jurídico em sentido estrito e negócio jurídico, dicotomia esta incluída como espécie de um gênero que receberia o nome de ato jurídico em sentido amplo. Para Santoro-Passarelli, o negócio jurídico é o ato de autonomia privada, com o qual o particular regula por si os próprios interesses. Por outras palavras, é o ato regulamentador dos interesses privados. Logo, não se pode aceitar a teoria voluntarista que o concebe como a declaração da vontade dirigida a provocar efeitos jurídicos tutelados pela ordem jurídica, porque a voluntariedade do ato existe tanto no ato jurídico stricto sensu como no negócio jurídico. A teoria objetiva, como vimos, coloca a essência do negócio jurídico na autorregulamentação dos interesses particulares, reconhecida pelo ordenamento jurídico que, assim, dá força criativa ao negócio. O negócio jurídico típico é o contrato. Num contrato as partes contratantes acordam que devem conduzir-se de determinado modo, uma em face da outra. Kelsen entende que este dever ser é o sentido subjetivo do ato jurídico-negocial, mas também é seu sentido objetivo. Como é o negócio jurídico fato produtor do direito, é uma norma jurídica negocialmente criada, que não estatui sanções, mas uma conduta cuja violação é o pressuposto da sanção que as normas jurídicas gerais estatuem; não é, portanto, norma jurídica autônoma, mas não autônoma, já que é apenas uma norma jurídica em T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 472 combinação com as normas gerais que estatuem sanções para a conduta havida como contrária ao negócio jurídico. O tribunal que decidir um litígio surgido de um negócio jurídico tem de verificar não só a validade da norma jurídica geral com base na qual tal negócio foi realizado, mas também o fato da existência de uma conduta contrária ao negócio e a circunstância dos prejuízos por este último fato causados não terem sido indenizados e com base nestas averiguações fixar a norma individual, nos termos da qual, se o prejuízo pelo tribunal determinado não for ressarcido dentro de certo prazo, deve ser executada uma sanção estatuída na norma jurídica geral aplicada pelo tribunal. O negócio jurídico repousa na ideia de um pressuposto de fato querido ou posto em jogo pela vontade e reconhecido como base do efeito jurídico perseguido. Seu fundamento é a vontade humana, desde que atue na conformidade da ordem jurídica. Seu habitat é a ordem jurídica. Seu efeito é a criação de direitos e obrigações. É a norma jurídica que confere à vontade esse efeito, seja quando o agente procede unilateralmente, seja quando a declaração volitiva marcha na conformidade de outra congênere, concorrendo a dupla emissão de vontade. A presença necessária da emissão da vontade no negócio jurídico e sua conformidade com a lei sugere uma investigação desse elemento, pois, como logo mais veremos, casos há em que essa vontade falta, em que há vícios de consentimento e em que há vontade, mas com desvio de lei, causando anulação do negócio, por ser este defeituoso. Já os vícios de vontade são quase irrelevantes nos atos jurídicos stricto sensu, porque a intenção da parte situa-se em plano secundário. Onde nenhuma operação de autonomia privada exerce influência, ter- -se-á ato jurídico em sentido estrito, cujo efeito, com fundamento numa situação fática, caracterizada e regulada legalmente, se produz ex lege, sem consideração à vontade do agente. P. ex.: a intimação de licença de expulsão, consistente na declaração dirigida pelo locador ao locatário para deixar o imóvel; é um ato que pode, substancialmente, assumir a natureza de ato jurídico stricto sensu ou de negócio, segundo a decadência ou não do movimento dispositivo. Será ato jurídico em sentido estrito quando se tratar de licença por locação terminada, feita após o término do contrato, se, em virtude deste ou por efeito de atos precedentes, é excluída a locação ou renovação tácita. Será negócio jurídico na hipótese de expulsão por locação terminada antes de expirado o contrato (CPC italiano, art. 6 5 7 ,1), enquanto nesse caso o interessado tende a um efeito dispositivo. C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 473 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l O ato jurídico em sentido estrito não é exercício de autonomia privada, logo o interesse objetivado não pode ser regulado pelo particular e a sua satisfação se concretiza no modo determinado pela lei. No negócio, o fim procurado pelas partes baseia-se no reconhecimento da autonomia privada a que o ordenamento confere efeitos jurídicos. Porém, em atenção à convivência social, esse princípio da autonomia da vontade subordina-se às imposições da ordem pública. No ato jurídico stricto sensu ocorre o contrário, mesmo porque a eficácia que lhe é reconhecida pela ordem jurídica está em função de finalidade geral, de caráter político-legislativo. O objetivo colimado pelo agente permanece sem observação autônoma, e só indireta e acidentalmente pode realizar-se mediante o cumprimento do ato. A função torna-se, no negócio, um objeto, porque, em relação a ele, o ordenamento admite a autonomia privada. No ato jurídico em sentido estrito não se pode falar de objeto, porque, no que concerne a ele, a ordem jurídica requer autonomia privada. Contudo, não se pode contestar a relevância da função assumida pelo ato jurídico em sentido estrito. Tal função consiste na realização do interesse de cuja satisfação o ato é ordenado, segundo a rigidez da previsão normativa. Surge, claramente, sob esse prisma a diferença entre ato e negócio jurídico. O negócio leva, ensina Fábio Maria de Mattia, realmente, em consideração o escopo procurado pela parte ou partes interessadas e a esse fim a ordem jurídica adapta os efeitos. No ato jurídico stricto sensu prevalece apenas a função que o ordenamento estabelece para o próprio ato e o objetivo colimado pelo agente ao cumpri-lo. No que concerne ao fim do negócio jurídico destacam-se os momentos fundamentais da vida do direito subjetivo, relativamente ao agente: aquisição, modificação e extinção, ou seja, aquele em que o direito se funde no sujeito atual, as alterações por que passa e aquele em que se perde, seja por via de uma trasladaçâo ou transferência de direitos subjetivos, seja, coincidentemente, com a cessação da relação jurídica (CC, arts. 381, 1.410, VI, 1.436, IV, e 520). Convém acrescentar-se, ainda, a conservação do direito como finalidade do ato negocial77. 77. É o que nos ensinam: Fábio Maria de Mattia, op. cit., p. 39-47; Ato jurídico em sentido estrito e negócio jurídico, in Revista da Universidade Católica de São Paulo, 32:29-79, 1967; Luigi Cariota-Ferrara, Volontà, manifestazione, negozio giuridico, Annuario 3 to } »íq S ÍH ^C f - oo o ^ - “ ^3. K- VO j j to ^ ^ Oi | * | 8 í a § '| * m z"à S W í ' I I 0 F & ã-f§ is & Í % p P ts. 2 Bt & S. R £T 8* s* o n> ca- & sr ^ 3 , Os tC •5a3 rs* N) "° v c d S b ! g n 1 3 o ^3 "g> Í2. ' 3 ^ S §-►§• ft* S* H» * i-oj ti 5' " ‘ J Ol s* § ^ &, £? - ã: s. r •S £§'E o n> K tv ** *d •S S g1 ^ 8 gás S qg 3 à Aj R 1* o 1? ^d Oq o i _ a* d £ 9 3 í,*%£ - ° §: & - s S-4 1 Na 1rc t£ O W tf VI ro C- 55 n R p. o &, 3> w 3 n ff® 8 o» ^ a P ° S§ O ^ D tr* n nd ■ Cn R* VO VO 2 00 •Õ O W i •* > O ® pi n 2 ^ g- 3 . P ° a n 9 &, o <7 data-mce-fragment="1"> H ftj Q, 5 J4- 3 . >-3 r* - a? d & >d p. ^ §* w too 3 ó° 'O n I n * o o S “ a. » > a í ‘ 3 a S m R-" 1 M F o S ^ d 9 ff Q g è> s 3 - s 3 3 aiyT‘ to? *njui O p M o 5 ■S ' í rD p *2 & O &)V a d fD tn c/i £L 2 ^ 8 I ft> n jd ft> C 5' 5 V á S n> (D f - o c p CO O b *»M 5 O n 2 ttd ?3 > Q uadro S in ó t ic o ■ Espécies Declaratória. Integrativa. Construtiva. INTERPRETAÇAO DO NEGÓCIO JURÍDICO Regras 0) CC, arts. 112, 843, 819, 114, 1.899, 422 e 113. b) Em relação ao contrato deve-se ater à boa-fé, às necessidades do crédito e à equidade. c) Nos negócios causa mortis não se aplicam princípios referentes aos inter vivos. d) Nos contratos que contiverem palavras que admitem dois sentidos, deve-se preferir o que mais convier à sua natureza. e) Nos contratos de compra e venda deve-se interpretar em favor do devedor. f) No caso de ambigüidade interpreta-se de conformidade com o costume do país. g) Quanto ao vocábulo contido no final da frase, dever-se-á interpretá-lo como parte da frase toda. h) Na interpretação contratual consideram-se as normas jurídicas correspondentes. 1) Nas estipulações obrigacionais dever-se-á interpretar de modo menos oneroso para o devedor. /) Por mais genéricos que sejam os termos de um contrato, só abrangem os bens sobre os quais os interessados contrataram. k) No conflito entre duas cláusulas a antinomia prejudicará o outorgante e não o outorgado. /) Na cláusula com dois significados deve-se ater ao mais exeqüível. m) Nas cláusulas duvidosas favorece-se quem se obriga. rí) Nas cláusulas contratuais que apresentarem modalidades impostas pelos usos locais ou do negócio, examinar-se-á se a cláusula duvidosa tem o sentido de qualquer desses usos. o) As cláusulas contratuais deverão ser interpretadas umas pelas outras, p) Na interpretação de cláusula testamentária com várias acepções prevalece a que assegura a vontade do testador. 484 C o r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o D . E l e m e n t o s c o n s t i t u t i v o s Os elementos estruturais ou constitutivos do negócio jurídico abrangem: 1) Elementos essenciais, imprescindíveis à existência do ato negocial, pois formam sua substância; podem ser gerais, se comuns à generalidade dos negócios jurídicos, dizendo respeito à capacidade do agente, ao objeto lícito, possível e determinável e ao consentimento dos interessados, e particulares, peculiares a determinadas espécies por serem concernentes à sua forma. 2) Elementos naturais, efeitos decorrentes do negócio jurídico, sem que seja necessário qualquer menção expressa, pois a própria norma jurídica já lhe determina quais são essas conseqüências jurídicas. P. ex.: na compra e venda são elementos naturais, oriundos do próprio contrato, a obrigação que o comprador tem de dar a garantia prevista no art. 477, 2- parte, do CC, caso sofra diminuição em seu patrimônio, que comprometa a sua prestação; dever que tem o vendedor de responder pelos vícios redibitórios (CC, art. 441) e pelos riscos da evicção (CC, art. 447). 3) Elementos acidentais, estipulações ou cláusulas acessórias que as partes podem adicionar em seus negócios para modificar uma ou algumas de suas conseqüências naturais, como condição, modo ou encargo, e o termo (CC, arts. 121, 131 e 136)83. Q u a d r o S i n ó t i c o ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO NEGÓCIO JURÍDICO Essenciais Naturais Acidentais Gerais Capacidade do agente, objeto iícito e possível e consentim ento. Formas e solenidades previstas em iei. Particulares Efeitos decorrentes do ato negociai. Condição, m odo ou termo. 83. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 184-7. Vide sobre essa temática a obra inédita de Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico e declaração negocial, tese apresentada para a obtenção do título de titular de Direito Civil da FDUSP, em 1986; Sebastião José Roque, Teoria geral do direito civil, cit., p. 113-20. 485 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l E. E l e m e n t o s e s s e n c i a i s g e r a i s o u c o m u n s à g e n e r a l i d a d e DOS N EG Ó C IO S JU R ÍD IC O S e.l. Capacidade do agente Se todo negócio jurídico pressupõe uma declaração da vontade, a capacidade do agente é indispensável à sua participação válida na seara jurídica (CC, art. 104, I), Os efeitos negociais advêm da declaração volitiva, que é sua causa efficiens. Eis a razão pela qual o Código Civil, em seus arts. 32 e 4a, apresenta o rol dos absoluta e relativamente incapazes, que não podem, por si sós, praticar nenhum negócio válido (CC, art. 120, Ia parte). Assim os absolutamente incapazes serão representados em seus interesses por seus pais, tutores ou curadores, conforme estejam sob o poder familiar, tutela ou curatela. Os relativamente incapazes, embora possam participar pessoalmente dos negócios jurídicos, deverão ser assistidos pelas pessoas a quem a lei determinar, salvo nas hipóteses em que a norma, expressamente, permitir que ajam sem tal assistência. O ato praticado pelo absolutamente incapaz sem a devida representação é nulo (CC, art. 166, I) e o realizado pelo relativamente incapaz sem assistência é anulável (CC, art. 171, I). Contudo, "a incapacidade relativa de uma das partes não pode ser invocada pela outra em benefício próprio, nem aproveita aos cointeressados capazes, salvo se, neste caso, for indivisível o objeto do direito ou da obrigação comum" (CC, art. 105). Por ser a incapacidade uma exceção pessoal, ela só pode ser formulada pelo próprio incapaz ou pelo seu representante legal. Se o objeto do direito ou da obrigação comum for indivisível, ante a impossibilidade de se separar o interesse dos contratantes, a incapacidade de um deles poderá tornar anulável o ato negocial praticado, mesmo que invocada pelo capaz, aproveitando aos cointeressados capazes que, porventura, houver. Logo, nessa hipótese, o capaz que veio a contratar como relativamente incapaz estará autorizado legalmente a invocar em seu favor a incapacidade relativa deste, desde que indivisível a prestação, objeto do direito ou da obrigação comum (CC, art. 105, in fine). As pessoas jurídicas intervirão por seus órgãos, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente. O órgão da pessoa jurídica, pontifica Orlando Gomes, é uma ou um conjunto de pessoas naturais que exprime sua vontade. Não há aqui uma representação no sentido rigoroso do termo, pois esta pressupõe a conjugação de duas vontades, a do representante e a do representado, o que não ocorre com a pessoa jurídica, pois o seu órgão manifesta 486 apenas a vontade da entidade, havendo uma compenetração entre o órgão e a pessoa jurídica, não se verificando aquela dissociação entre representante e representado, que conservam a própria vontade e autonomia. Poder- -se-á falar que há aí uma representação imprópria. Convém esclarecer que a representação, como nos ensina Washington de Barros Monteiro, é a relação jurídica pela qual determinada pessoa se obriga diretamente perante terceiro, através de ato praticado em seu nome por um representante ou intermediário. Configurado está esse instituto jurídico no Código Civil, art. 116, pelo qual os deveres são assumidos e os direitos tanto se adquirem por ato do próprio adquirente, como por intermédio de outrem, visto que a manifestação de vontade pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em relação ao representado. A manifestação da vontade pelo representante, ao efetivar um negócio, em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe foram conferidos, produz efeitos jurídicos relativamente ao representado, qué adquirirá por lei (representação legal) ou pelo mandante (representação convencional), os direitos dele decorrentes ou assumirá as obrigações que dele advierem. Logo, uma vez realizado o negócio pelo representante, os direitos serão adquiridos pelo representado, incorporando-se em seu patrimônio; igualmente os deveres contraídos em nome do representado devem ser por ele cumpridos, e por eles responde o seu acervo patrimonial (CC, art. 116). De modo que, em regra, podem ser praticados por via de intermediário todos os atos, excluídos os personalíssimos. Três são as espécies de representantes admitidos em nosso direito: legais, aqueles a quem a norma jurídica confere poderes para administrar bens alheios, como pais, em relação aos filhos menores (CC, arts. 115, I a parte, 120, Ia parte, 1.634, V, e 1.690), tutores, quanto aos pupilos (CC, art. 1.747, I), e curadores, no que concerne aos curatelados (CC, art. 1.774); judiciais, os nomeados pelo magistrado para exercer certo cargo no foro ou no processo, como o curador de herança jacente, o administrador judicial da massa falida, o inventariante, casos de representantes impróprios, porque refogem aos moldes da representação que requer dupla vontade, uma vez que nestas hipóteses o que está em jogo é uma universalidade de bens: o espólio em relação ao inventariante, a massa falida relativamente ao administrador judicial e a herança jacente quanto ao curador; e convencionais, se munidos de mandato expresso ou tácito, verbal ou escrito, do representado, como os procuradores, no contrato de mandato (CC, arts. 115, 2a parte, 653 a 692 e 120, 2- parte). C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 487 A representação produz efeitos, sendo o primordial o de que uma vez realizado o negócio pelo representante, os direitos são adquiridos pelo representado, incorporando-se em seu patrimônio; igualmente as obrigações assumidas em nome do representado devem ser cumpridas, e por elas responde o seu acervo patrimonial84. Por essa razão o representante terá o dever de provar às pessoas, com quem vier a contratar em nome do representado, não só sua qualidade como também a extensão de seus poderes, sob pena de responder pelos atos negociais que a estes excederem (CC, art. 118). Haverá anulabilidade de autocontrato ou de ato praticado consigo mesmo pelo representante, no seu interesse ou à conta de outrem, exceto se houver permissão legal ou autorização expressa do representado. Para esse efeito tem-se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes houverem sido substabelecidos (CC, art. 117). Se, em caso de representação voluntária, houve substabelecimento de poderes, o ato praticado pelo substabelecido reputar-se-á como se tivesse sido celebrado pelo substabelecente (representante), pois não houve transmissão do poder, mas mera outorga do poder de representação. Ter-se-á, indiretamente, contrato consigo mesmo se, ensina Renan Lotufo, "o representante atuar sozinho declarando duas vontades, mas, por meio de terceira pessoa, substabelecendo-a (ato pelo qual o representante transfere a outrem os poderes concedidos pelo representado a terceira pessoa) para futuramente celebrar negócio com o antigo representante. Ocorrendo esse fenômeno, tem-se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em que os poderes houverem sido substabelecidos". É preciso esclarecer que o poder de representação legal é insuscetível de substaT e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 84. Orlando Gomes, op. cit, p. 348 e 349, 392-411; Serpa Lopes, op. di., v. 1, p. 411; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 421, 533-44; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 185, 188 e 189; Fábio Maria de Mattia, Aparência de representação, São Paulo, 1984, p. 1 a 53; Venosa, op. cit., v. 1, p. 284 e s.; Almeida Costa, Vontade e estados subjetivos da representação jurídica, Rio de Janeiro, 1976; Oertmann, Recht des Biirgerlichen Gesetzbuches-Allgemeiner Teil, II, § 35, p. 26; Mairan G. Maia Jr., A representação no negócio jurídico, 2001; Storck, Le mécanisme de la représentation áans les actes jurídiques, 1982; Luigi Mosco, La rappresentanza nel diritto prívato, 1961; Renan Lotufo, Questões relativas a mandato, representação e procuração, São Paulo, Saraiva, 2001; Luis Díez-Picazo, La representación en el derecho privado, Madrid, Civitas, 1979; Valentina Di Gregorio, La rappresentanza apparente, Padova, Cedam, 1996; Ugo Natoli, La rappresentanza, Milano, Giuffrè, 1977; Alessandra Salomoni, La rappresentanza volontaria, Padova, Cedam, 1997; Michel Storck, Le mécanisme de la représentation dans les actes, Paris, LGDJ, 1982. 488 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o belecimento. Os pais, os tutores ou os curadores não podem substabelecer os poderes que têm em virtude de lei. Havendo conflito de interesses entre representado e representante, os atos negociais deverão, para ser válidos, ser celebrados por curador especial (CC, art. 1.692). E se, porventura, o representante em conflito de interesses (p. ex., oriundo de abuso ou de falta de poder) com o representado celebrar negócio com pessoa que devia ter conhecimento do fato, ele poderá ser declarado anulável, dentro do prazo decadencial de 180 dias, contado da conclusão do ato negocial ou da cessação da incapacidade do representado (CC, art. 119 e parágrafo único). Clóvis Beviláqua pondera que, além dessa capacidade geral, exige-se a especial para certos negócios em dadas circunstâncias. P. ex.: o maior casado é plenamente capaz, embora não tenha, salvo se casado sob o regime de separação absoluta, capacidade para vender imóvel sem a outorga uxória ou marital ou suprimento judicial desta (CC, art. 1.647, I). O ascendente é plenamente capaz, mas não pode vender bens a descendente, sem que os outros descendentes e o cônjuge do alienante, exceto se casado sob o regime de separação obrigatório, consintam expressamente (CC, art. 496 e parágrafo único). O indigno de suceder tem capacidade civil, mas não a tem para herdar da pessoa em relação à qual é indigno (CC, arts. 1.814 a 1.818). Da mesma forma impedido está o tutor de adquirir bens do pupilo, ainda que em hasta pública, apesar de ser plenamente capaz, o mesmo ocorrendo com o curador, testamenteiro e administrador (CC, art. 497, I), no que diz respeito aos bens confiados à sua guarda e administração. Essa incapacidade resulta da posição em que se encontram relativamente a certos bens, interesses ou pessoas. A capacidade especial ou legitimação distingue-se da capacidade geral das partes, para a validez do negócio jurídico, pois para que ele seja perfeito não basta que o agente seja plenamente capaz; é imprescindível que seja parte legítima, isto é, que tenha competência para praticá-lo, dada a sua posição em relação a certos interesses jurídicos. Assim a falta de legitimação pode tornar o negócio nulo ou anulável, p. ex., se o marido vender um apartamento sem o consentimento de sua mulher, esta alienação será anulada (CC, arts. 1.649 e 1.650), exceto se o regime de bens for o de separação absoluta (CC, art. 1.647). 489 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l A legitimação depende, portanto, da particular relação do sujeito com o objeto do ato negocial85. e.2. Objeto lícito, possível, determinado e determinável Para que o negócio jurídico se repute perfeito e válido deverá versar sobre objeto lícito, ou seja, conforme a lei, não sendo contrário aos bons costumes, à ordem pública e à moral. Se ilícito o seu objeto, nulo será o negócio jurídico (CC, art. 166, II), não produzindo qualquer efeito jurídico (RT, 395:165); é o que ocorre, p. ex., com a corretagem matrimonial, a compra e venda de objeto roubado, o contrato de prestação de serviços sexuais etc. Além de lícito deve ser possível, física ou juridicamente, o objeto do ato negocial. Se o negócio implicar prestações impossíveis, como a volta ao mundo em 2 horas, como a venda de herança de pessoa viva (CC, art. 426), a alienação de terreno situado em Marte etc. receberá como sanção a sua nulidade (CC, arts. 104 e 166). Entretanto, afirmam Caio Mário da Silva Pereira e Orlando Gomes, tal impossibilidade deverá ser absoluta, ou melhor, a prestação deverá ser irrealizável por quem quer que seja ou insuscetível de determinação. Se for relativa, isto é, se a prestação puder ser realizada por outrem, embora não o seja pelo devedor, ou, então, determinável, não constitui obstáculo ao negócio jurídico86 (CC, art. 104, II). Realmente, pelo art. 106 do Código Civil, "a impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio jurídico se for relativa, ou se cessar antes de realizada a condição a que ele estiver subordinado". Se o objeto for determinado, as partes deverão descrevê-lo; se for determinável, bastará indicação de gênero e quantidade (CC, art. 243), em caso de 85. Orlando Gomes, op. cit., p. 350; Caio M. S. Pereira, op. cit., p. 421 e 422; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 181 e 182; Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil, p. 228; Inocêncio Galvão Telles, Dos contratos em geral, Coimbra, 1947, p. 246; Vicente Ráo, Ato jurídico, 1961, p. 118; Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil, São Paulo, Atlas, 1984, v. 1, p. 294-5; Margarita Castilla Barea, La imposibilidad de cumplir los contratos, 2001; Carmine Donisi, II contratto con se stesso, 1982; Nelson Pinheiro de Andrade, Autocontrato, REDB, 5:117; José Paulo Cavalcanti, O contrato consigo mesmo, 1956; Renan Lotufo, Código Civil, cit., v. 2, p. 331; Maria Helena Diniz, Código Civil anotado, obs. ao art. 117. 86. Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 183; Saiget, Le contrat immoral, p. 66; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 185; R. Limongi França, Ato jurídico, cit., in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 9, p. 26; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 422 e 423; Orlando Gomes, op. cit., p. 351 e 352. 490 venda de coisa incerta, que será determinada pela escolha. E, na hipótese de venda alternativa, a indeterminação cessará com o ato de concentração (CC, arts. 166, II, 243 e 252). . e.3. Consentimento e.3.1. Manifestação da vontade É indubitável que a manifestação da vontade exerce papel preponderante no negócio jurídico, sendo um de seus elementos básicos. Tal declaração volitiva deverá ser livre e de boa-fé, não podendo conter vício de consentimento, nem social, sob pena de invalidade negocial. R. Limongi França define o consentimento como "a anuência válida do sujeito a respeito do entabulamento de uma relação jurídica sobre determinado objeto". Pode ser ele expresso ou tácito desde que o negócio, por sua natureza ou por disposição legal, não exija forma expressa (CC, art. 432). Será expresso se declarado, por escrito ou oralmente, de modo explícito. Será tácito se resultar de um comportamento do agente, que demonstre, implicitamente, sua anuência. Até mesmo o silêncio é fato gerador de negócio jurídico, quando em certas circunstâncias e usos indicar um comportamento hábil para produzir efeitos jurídicos e não for necessária a declaração expressa da vontade (CC, art. 111). Caso contrário não terá o silêncio a força da manifestação volitiva. Portanto o magistrado deverá averiguar caso por caso se o silêncio traduz, ou não, vontade. Logo a parêmia "quem cala consente" não tem juridicidade. Assim, quem ficar silente, o seu puro silêncio apenas terá valor jurídico se a lei o determinar, ou se acompanhado de certas circunstâncias ou de usos e costumes do lugar, indicativos da possibilidade de manifestação da vontade e desde que não seja necessária a forma expressa para a efetivação negocial. P. ex.: o art. 539 do Código Civil, que confere efeitos jurídicos ao silêncio do donatário, quando este não manifestar sua vontade dentro do prazo fixado, concluindo pela aceitação da doação pura. A grande maioria das declarações de vontade, principalmente as da seara obrigacional, são receptícias por se dirigirem a uma determinada pessoa com o escopo de levar ao seu conhecimento a intenção do agente, ajustando-se a uma outra manifestação volitiva, para que surja o negócio jurídico. P. ex.: proposta do contrato (CC, arts. 427 e 428), revogação do mandato etc. Serão não receptícias se o negócio jurídico se efetivar com sua simples C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 491 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l emissão pelo agente, sem que haja necessidade de qualquer declaração de vontade de outra pessoa. P. ex.: promessa de recompensa, aceitação de uma letra de câmbio, testamento, legado etc.87. e.3.2. Defeitos do negócio jurídico Toda doutrina é unânime em salientar que a declaração da vontade é elemento essencial do negócio jurídico. Para que este validamente exista, é indispensável a presença da vontade e que esta haja funcionado normalmente. Só então o negócio produz os efeitos jurídicos colimados pelas partes. Tanto isso é verdade que se a vontade for inexistente o negócio jurídico existe apenas de fato na aparência, mas não no mundo jurídico, pois será nulo. P. ex., há ausência total de vontade se uma senhora concorda sob 0 efeito de hipnose com a venda de uma casa, porque o estado hipnótico exclui a consciência e a vontade; apresentando-se como uma alienação provisória, acarreta incapacidade para consentir. Se, entretanto, existe a vontade, porém sem correspondência com aquela que o agente quer exteriorizar, o negócio jurídico será viciado ou deturpado, tomando-se anulável se no prazo decadencial de 4 anos for movida ação de anulação (CC, arts. 178, 1 e II, e 171, I; RT, 390:371; 397:318). É o caso em que se têm os vícios de consentimento, como o erro, o dolo, a coação, o estado de perigo e a lesão que se fundam no desequilíbrio da atuação volitiva relativamente a sua declaração. Ensina Clóvis que "esses vícios aderem à vontade, penetram-na, aparecem sob forma de motivos, forçam a deliberação e estabelecem divergência entre a vontade real, ou não permitem que esta se forme". Há desavença entre a vontade real e a declarada. Existem, ainda, hipóteses em que se tem uma vontade funcionando normalmente, havendo até correspondência entre a vontade interna e sua manifestação, entretanto, ela desvia-se da lei, ou da boa-fé, infringindo o direito e prejudicando terceiros, sendo, por isso, o negócio jurídico, que assim se apresentar, suscetível de invalidação. Trata-se dos vícios sociais, 87. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 412-7; O silênào como manifestação da vontade, 1961; Philomeno J. da Costa, O silêncio nos negócios jurídicos, RT, 495:519; Baptista de Mello, O silêncio no direito, RT, 751:731; Orlando Gomes, op. cit., p. 351; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 417-20; R. Limongi França, Ato jurídico, cit., v. 9, p. 26; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 185 e 186. Efeitos do silêncio como manifestação da vontade: CC. arts. 658 e 659: CPC. art. 319. 492 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o como a simulação que o tornará nulo (CC, art. 167, caput) e a fraude contra credores que o tornará anulável (CC, arts. 171, II, in fine, e 178, II), que comprometem a ordem jurídica pela afronta à lisura, à honestidade e à regularidade do comércio jurídico. Não são vícios puramente psíquicos, afirma Clóvis; não estabelecem desarmonia entre o que se passa no recesso da alma e o que se exterioriza em palavras ou fatos; são vícios sociais que contaminam a vontade manifestada contra as exigências da ordem legal, tornando tal elemento volitivo juridicamente inoperante88. Passemos ao exame de cada um dos vícios de consentimento, que são: 1) Erro. Num sentido geral erro é uma noção inexata, não verdadeira, sobre alguma coisa, objeto ou pessoa89, que influencia a formação da vontade. Se influi na vontade do declarante, impede que se forme em consonância com sua verdadeira motivação; tendo sobre um fato ou sobre um pre88. Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil, § 50; Cunha Gonçalves, Da compra e venda, n. 18; Orlando Gomes, op. cit., p. 412-4; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 192 e 193; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 425 e 426; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 440- 3; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 189 e 190; Capitant, Introduction à Vétude du droit civil, 4. ed., Paris, Pedone, p. 295; Silvio Rodrigues, Dos vícios do consentimento, São Paulo, Saraiva, 1979, Direito civil, cit., v. 1, p. 203-5; Carvalho de Mendonça, Doutrina eprática das obrigações, 2. ed., v. 2, p. 219; Enneccerus, Tratado de derecho civil, v. 1 ,1 .1; Código de Processo Civil, arts. 85, 129, 133, I, 154, 352, 404, 463, 485 e 1.029, parágrafo único; Mário de Salles Penteado, Os vícios de consentimento e a regra "utile per inutile non vitiatur": considerações sobre o art. 153 do Código Civil, Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, 14:77-9; Wilson de S. Campos Batalha, Defeitos dos negócios jurídicos, Rio de Janeiro, Forense, 1988; Sebastião José Roque, Teoria geral do direito civil, cit., p. 121-32. Ulderico Pires dos Santos, Dos defeitos dos atos jurídicos na doutrina e jurisprudência, São Paulo, Saraiva, 1981; Humberto Theodoro Jr., Dos defeitos do negócio jurídico no novo Código Civil: fraude, estado de perigo e lesão, RF, 364:163-79; René Rodière, Les vices du consentement dans le contrat, Paris, Pedone, 1977; Ana Luiza M. Nevares, O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no novo Código Civil, A parte geral, cit., p. 251 a 289; José Roberto de Castro Neves, Coação e fraude contra credores no Código Civil de 2002, A parte geral, cit., p. 291 a 308; P. Stolze Gagliano e R. Pamplona Filho, Novo curso, cit., v. 1, p. 355-94; Álvaro Villaça Azevedo, Código Civil comentado, cit., v. VII, p. 182-278; Mário Salles Penteado, Os vícios do consentimento e a regra "utile per inutile non vitiatur", Doutrinas essenciais — obrigações e contratos (coord. G. Tepedino e Luiz E. Fachin), São Paulo, Revista dos Tribunais, v. - II, 2011, p. 711-14. 89. Lino de Moraes Leme, Do erro de direito em matéria civil, Revista dos Tribunais, 1936, p. 65; Stolfi, Teoria dei negozio giuridico, p. 171; Clóvis, op. cit., p. 230; Vittorino Pietrobon, Errore, volontà e affiãamento nel negozio giuridico, 1990; Pietro Barcellona, Profili delia teoria delVerrore nel negozio giuridico, Milano, Giuffrè, 1962; Paulo Gustavo Gonet Branco, Em tomo dos vícios do negócio jurídico — a propósito do erro de fato e de direito, O novo Código Civil, cit., p. 129-46; Durval Ferreira, Erro negocial, Coimbra, Almedina, 1995; Ana A. M. Magalhães, O erro no negócio jurídico, São Paulo, Atlas, 2011. 493 T e o u i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l ceito noção incompleta, o agente emite sua vontade de modo diverso do que a manifestaria se dele tivesse conhecimento exato ou completo90. Segundo Fubini91 o "eno é o estado da mente que, por defeito do conhecimento do verdadeiro estado das coisas, impede uma real manifestação da vontade". Esse tema está regulado pelos arts. 138 a 144 do Código Civil, e, embora a Seção I traga a rubrica "do erro e da ignorância", só contém disposições sobre o erro. A verdade é que, embora a ignorância seja a ausência completa de conhecimento sobre algo (p. ex., ato de pagar a credor, ignorando que preposto já havia efetuado, via bancária, o referido pagamento), e o erro, a falsa noção, oriunda de fatos casuais, sobre algum objeto, o legislador os equiparou nos seus efeitos jurídicos. O erro para viciar a vontade e tomar anulável o negócio deve ser substancial (CC, art. 138), escusável e real, no sentido de que há de ter por fundamento uma razão plausível, ou ser de tal monta que qualquer pessoa inteligente e de atenção ordinária seja capaz de cometê-lo. Anula-se o negócio, quando a vontade advier de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do ato negocial. Adota-se o padrão abstrato vir medius para sua aferição. Logo, a escusabilidade de erro como requisito para anulação é secundária, passando, assim, segundo alguns autores, para o primeiro plano a cognoscibilidade. O negócio só será anulado se presumível ou possível o reconhecimento do erro pelo outro contratante. Uma das partes não pode beneficiar-se com o erro de outra. Deve ser real, palpável e reconhecível pela outra parte, importando efetivo prejuízo para o interessado92. 90. Orlando Gomes, op. cit., p. 416; Washington Luiz da Trindade, Contratos e doutrina do erro, Consulex, n. 27, p. 42-3; Hamid C. Bdine Júnior, O erro como defeito do negócio jurídico, Temas relevantes do direito civil contemporâneo (coord. G. E. Nanni), São Paulo, Atlas, 2008, p. 234-60. 91. Fubini, La dottrina delVerrore, Torino, 1902, n. 4; Antonio Ferrer Correia, Erro e interpretação na teoria do negócio jurídico, Ed. Almedina, 1985. 92. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 196 e 197; Vittorino Pietrobon, Lferrore nella dottrina dei negoziogiuridico, Padova, CEDAM, 1963; Regelsberger, Civilrechtliche Eróiterungen, p. 17 e s.; Dernburg, Pandekten, I, § 102; Hõlder, Pandéktenrecht, p. 232 e s.; Werner Flume, Das Rechtsgeschàft, 1965, § 4a, 8, p. 61, § 22, 4, p. 446-7; Jacques Ghestin, La notion d'erreur dans le droitpositif actuel, Paris, LGDJ, 1971; Giorgio Amorth, Errore e inadempimento nél contratto, Milano, Giuffrè, 1967; CPC, art. 404, II; CC italiano, arts. 1.427,1.429 e 1.431; BGB, §§ 119 e 120; CC francês, arts. 1.109 e 1.110; CC espanhol, art. 1.265. 494 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o O erro escusável é aquele que é justificável, tendo-se em conta as circunstâncias do caso. Depende a escusabilidade da pessoa que a oferece, bastando mencionar, p. ex., que um técnico dificilmente pode escusar-se de erro por ele praticado, na área de sua especialidade. Amoldo Wald93 pontifica que o conceito de escusabilidade deve ser elástico, competindo ao juiz, em cada caso concreto, analisar o nível cultural do agente, como o alcance de sua inteligência, suas qualidades profissionais, dentre outras circunstâncias (RT, 119:829; 90:438; 116:268; 138:126; 2 4 1 :138; 181:307; RF, 101:321). Por isso, no entender de alguns juristas, a escusabilidade do erro foi superada, adotando-se, como critério de aferição, a cognoscibilidade do erro pelo outro contratante. Pouco importará averiguar se o autor do erro teve, ou não, alguma culpa por ele. O importante será perceber se a pessoa, a quem se dirigiu a declaração de vontade, tinha ou não condições de detectar o erro e de avisar o declarante de sua ideia equivocada. Isto é assim em razão do princípio da boa-fé objetiva e da probidade, que deve nortear os partícipes do ato negocial. Se possível era a percepção do erro cognoscível pelo destinatário da declaração, anulável será o negócio, por ferir o princípio da confiança e o da boa-fé objetiva. O órgão judicante deverá analisar as circunstâncias do negócio, a omissão de cautela, tendo como padrão a pessoa de diligência normal, o objeto negocial e a qualidade de ambos os contratantes. Não se deverá mais, para essa corrente, averiguar se o erro é escusável, para que se opere a anulação do negócio jurídico. O critério de reconhecibilidade do erro pelo destinatário da declaração e o princípio da tutela da confiança deverão servir de diretrizes ao magistrado. Como diz A. M. Morales Moreno: “La imputación dei error no se basa en el dolo o en la mala fe, sino en la confianza (...). Esto conecta con la noción de cognoscibilidad dei error que manejan otros ordenamientos". Logo, o erro deve ser, por isso, na opinião de alguns autores, além de substancial, reconhecível. Tem-se observado que basta o erro de uma das partes para que o negócio seja anulável, sendo irrelevante, na sistemática do art. 138, ser, ou não, escusável o erro, porque o dispositivo adota o princípio da confiança (Enunciado n. 12, aprovado na Jornada de Direito Civil, promovida, em setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal). 93. A. Wald, Curso de direito civil brasileiro; parte geral, 2. ed., Sugestões Literárias, 1969, p. 233; Adriano de Cupis, La scusabilità delVerrore nei negozigiuridici, 1939; Humberto Theodoro Jr., Comentários ao novo Código Civil, cit., v. m, 1 .1, p. 41 e s.; A. M. Morales Moreno, Error: vício de vontade, Enciclopédia Jurídica Básica, Madrid, Civitas, 1995, v. II, p. 2853. 495 Mas o contratante que se achou em erro e promove a invalidade do contrato pode ser condenado a ressarcir os danos que causar à outra parte por não ter procedido com a diligência necessária ao prestar o seu consentimento. Haverá erro substancial (CC, arts. 139, I, II e III) quando: 1) Recair sobre a natureza do ato negocial (error in ipso nego tio), p. ex., se o agente pretende praticar certo negócio mas realiza outro, se faz uma doação supondo estar vendendo. Uma pessoa pensa que está vendendo uma casa e a outra a recebe a título de doação94. Não se pode falar em verdadeiro acordo de vontades quando uma parte supõe realizar um contrato nominado e o consentimento da outra parte se dirige a contrato de índole diferente. 2) Atingir o objeto principal da declaração (error in ipso corpore) em sua identidade, isto é, o objeto não é o pretendido pelo agente, p. ex., se vender o prédio "A" pensando estar alienando o "B" (RT, 167:161); se pensa estar adquirindo um quadro de Portinari, quando na realidade é de um outro pintor; se supõe estar adquirindo um lote de terreno de excelente localização, quando na verdade está comprando um situado em péssimo local (RT, 233:153). 3) Incidir sobre as qualidades essenciais do objeto (error in corpore), como, p. ex., se a pessoa pensa em adquirir um colar de coral e, na verdade, compra um de plástico; se compra uma máquina nova e recebe uma usada com defeito (RT, 327:250); se entrega um relógio de aço pensando ser de prata; se adquire cavalo de tiro supondo ser de corrida; se adquire quadro a óleo, pensando ser de pintor famoso, do qual constava o nome na tela, mas que, na verdade, era falso (RT, 735:377). Há uma inaãaequatio intellectus ad rem, um erro na formação da vontade, que não se conforma à qualidade da coisa. T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 94. As doutrinas alemã, francesa e italiana denominam esse tipo de erro “obstativo" ou impróprio, que se verifica quando recai sobre a natureza jurídica do negócio (quer alugar e escreve vender), caso em que o art. 119 do BGB toma nulo tal negócio, o mesmo se diga do erro sobre o objeto principal da declaração. A doutrina brasileira não acolheu o erro obstativo, por entender que o erro sobre a natureza do negócio ou sobre a identidade do objeto (erro obstativo ou erro obstáculo) traduz uma declaração volitiva, cujo resultado jurídico difere do efetivo querer do agente, mas que nem por isso deixa de ser uma declaração de vontade, por isso é anulável o negócio e não nulo. Se o direito brasileiro considerasse esses casos como erro obstativo, por inexistência da vontade, ter-se-ia a nulidade do negócio. É o que nos ensina Caio M. S. Pereira (op. cit., v. 1, p. 444). O erro obstativo é similar à aberratio ictus, não há vontade de realizar o negócio levado a efeito. O declarante não quis emitir a declaração, com o conteúdo expresso no documento. O erro-vício recai sobre o ato volitivo, por haver uma correspondência entre a vontade e a sua declaração, só que aquela vontade está viciada. 496 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 4) Recair sobre as qualidades essenciais da pessoa (error in persona), atingindo sua identidade física ou moral, p. ex., se uma moça de boa formação moral se casar com homem, vindo a saber depois que se tratava de um desclassificado ou homossexual (CC, arts. 1.556 e 1.557; RT, 390:371; 464:77; 450:252; 450:78; 482:90; 470:91; 434:72; 526:128; 454:74; 397:318; 429:102; 447:92; 480:65); se alguém faz um testamento contemplando sua mulher com a meação de todos os bens, mas, por ocasião do cumprimento do testamento, o Tribunal verificou que a herdeira instituída não é mulher do testador, por ser casada com outro, decreta-se anulabilidade porque o testador incorreu em erro quanto à qualidade essencial da beneficiária (RT, 434:72). O mesmo ocorre se alguém fizer testamento contemplando filho, descobrindo depois que não o é (CC, art. 1.903); ou se pensa que está se associando a uma pessoa de reconhecida idoneidade moral, mas contrata com outra que, tendo o mesmo nome, é desonesta. O erro sobre identidade ou qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade só anulará o negócio se influiu de modo relevante naquela manifestação volitiva. 5) Houver erro de direito (error juris), que tenha influenciado de modo decisivo na declaração da vontade, tendo sido o principal ou o único motivo da realização do ato negocial, sem contudo importar em recusa à aplicação da lei (CC, art. 139, III). É erro de fato aquele que recair sobre circunstância de fato, isto é, sobre qualidades essenciais da pessoa ou da coisa. O erro de direito é aquele relativo à existência de uma norma jurídica, supondo-se, exemplificativamente, que ela esteja em vigor quando, na verdade, foi revogada. O agente emite uma declaração de vontade no pressuposto falso de que procede conforme a lei. O nosso Código Civil de 1916 não se referia ao erro de direito, pois Clóvis equiparava as noções de erro de direito e ignorância da lei, opinando pela inexistência do error juris ante o art. 3a da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que assim reza: "Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece". Portanto, o erro de direito não era considerado como causa de anulação do contrato. Só o erro de fato podia influir, de modo a anulá-lo, sobre a eficácia do elemento volitivo. Em que pesasse tal opinião, a doutrina e a jurisprudência continuaram entendendo que erro de direito e ignorância da lei não se confundem, sustentando que o error juris, desde que afete a manifestação da vontade, na sua essência, vicia o consentimento. O erro de direito não consiste apenas na ignorância da norma jurídica, mas também em seu falso conhecimento, na sua 497 compreensão equivocada e na sua interpretação errônea, podendo, ainda, abranger a ideia errônea sobre as conseqüências jurídicas do ato negocial. Daí afirmar Coviello95 que: "ancora Verrore di diritto può invocarsiper impugnare una divisione...: poichè benpuò darsi che nella divisione difaccia intervenirepersona che per ignoranza delia legge intomo alie successioni si credeva fosse erede ríservatario, mentre non ê, oppure avesse diritto a una quota maggiore di quella dalla legge attribuita". O erro de direito, para viciar o negócio, não pode ser uma recusa à aplicação da norma (RTJ, 99:8 6 0 ,104:816), mas sim o motivo determinante do ato negocial, em razão do desconhecimento de sua existência ou de seu real sentido, ou, ainda, das conseqüências jurídicas que ela acarretaria. P. ex.: "A" efetiva compra e venda internacional da mercadoria "x" sem saber que sua exportação foi proibida legalmente; "A" adquire de "B" o lote "y", ignorando que lei municipal vedara loteamento naquela localidade. A falsa noção da realidade normativo-jurídica levou o declarante a efetivar negócio prejudicial aos seus interesses e contrário aos efeitos por ele pretendidos. De qualquer maneira, para anular o negócio é necessário que esse erro tenha sido o motivo único e principal a determinar a vontade, não podendo, contudo, recair sobre a norma cogente, mas tão somente sobre normas dispositivas, sujeitas ao livre acordo das partes. Tal entendimento veio a ser coroado com o disposto no novo Código Civil, no art. 139, III. O erro acidental, concernente às qualidades secundárias ou acessórias da pessoa, ou do objeto, não induz anulação do negócio por não incidir sobre a declaração da vontade (RT, 596:89; RJTJSP, 133:52) se se puder, por seu contexto e circunstâncias, identificar a pessoa ou a coisa. Realmente, dispõe o art. 142 do Código Civil que "o erro de indicação da pessoa ou coisa, a que se referir a declaração de vontade, não viciará o negócio quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada". Assim o erro sobre a qualidade da pessoa, de ser ela casada ou solteira, não tem o condão de anular um legado que lhe é feito, se puder identificar a pessoa visada pelo testador. Se num contrato de compra e venda fica constando que se pretende transferir o domínio da casa da rua "x", n. 60, quando na realidade seu número é 61, não haverá anulação do T e o r i a G e r a l d c T D i r e i t o C i v i l 95. Coviello, Manuale di diritto civile italiano; parte generale, § 121, p. 388; Luiz Guilherme de Almeida Ribeiro Jacob, Erro de direito: interpretação dialógica do novo Código Civil da Lei de Introdução ao Código Civil, O Código Civile sua interáisciplinaridade (coords. José Geraldo Brito Filomeno, Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior, Renato Afonso Gonçalves), Belo Horizonte, Del Rey, 2004, p. 565-82. 498 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o negócio, por ser fácil provar que houve vim erro na indicação da coisa, principalmente quando a casa n. 60 não pertence ao vendedor. O mesmo se diga se alguém adquire o lote n. 27 e recebe o n. 72 por erro de digitação, ou compra o cavalo árabe "Pinus", por ter sido o vencedor da exposição "Mundo Rural-2004", quando, na verdade, o campeão foi "Platanus", da mesma raça e de propriedade do vendedor. A compra e venda do lote e a do semovente não serão anuladas, visto que houve mero equívoco e há possibilidade de identificação da coisa que constitui o objeto do negócio. Constitui erro acidental, p. ex.: entrega de automóvel diferente em marca, série ou número de produção (RT, 109:145); compra de um imóvel que se diz servido de rede de esgoto (RT, 339:170), casos em que se configura o error in qualitate. O error in quantitate diz respeito a engano sobre peso, medida ou quantidade do bem, p. ex., equívoco sobre a área do imóvel comprado. O erro de cálculo (erro aritmético, p. ex., fixação de preço da venda baseada na quantia unitária, computando-se de forma inexata o preço global) autoriza tão somente a retificação da declaração volitiva (CC, art. 143), não anula, portanto, o ato. É, pois, como diz Massimo Bianca, a contagem inexata de dados do objeto negocial ou dos elementos componentes do preço ou, ainda, erro no registro de parcelas de uma conta ou no seu saldo, troca de parcelas, inversão de algarismos, engano nas operações, apresentando resultado inverídico. O erro sobre o valor da coisa adquirida é erro acidental (RT, 181:200), isto porque, embora a legislação penal (Lei n. 1.521/51, art. 4a) o tenha admitido, nosso Código Civil de 1916 desconheceu o instituto da lesão (JB, 259:243), o mesmo não ocorrendo com o atual e jurisprudência como logo mais veremos. Também o erro quanto ao fim colimado (falso motivo) não vicia, em regra, o negócio jurídico, a não ser quando nele figurar expressamente, integrando-o, como sua razão essencial ou determinante, caso em que o toma anulável. O erro relativamente ao motivo do negócio (razão subjetiva da efetivação do ato negocial), seja ele de fato ou de direito, não é considerado essencial, logo não poderá acarretar a anulação do ato negocial. Deveras, o motivo do negócio jurídico é o impulso psíquico que leva alguém a efetivá-lo (obtenção de um prazer ou satisfação pessoal; atendimento de pedido feito por um ente querido; intenção de recompensar alguém por um favor prestado etc.). Já a causa é a razão objetiva do negócio (p. ex., realização de investimento; necessidade de alienação; aquisição de moradia). O motivo não declarado como sua razão determinante ou condição de que dependa não afetará o ato negocial se houver erro. É o que preceitua o Código Civil no art. 140, que assim prescreve: "O falso motivo só vicia a declaração de vontade, quando expres­ 499 so como razão determinante", P. ex.: se alguém beneficiar a pessoa com uma doação ou legado, declarando que assim procede porque o donatário ou legatário lhe salvou a vida, se isso não corresponder à realidade, provando-se que o donatário ou legatário nem mesmo participara do salvamento, viciado estará o negócio, sendo anulável. Se ocorrer venda de um estabelecimento empresarial, tendo como pressuposto certo movimento mensal, que, posteriormente, o comprador verifica ser falso (RT, 231:189), toma-se anulável. É assim porque o motivo é uma razão de ser intrínseca da doação ou da venda. Se o declarante, expressamente, fizer entender que só constituirá a relação jurídica por determinada razão ou se se verificar certo acontecimento a que ela se refere, havendo erro ter-se-á a anulação do negócio efetivado, por ser manifesto que a parte fez depender do motivo a realização do ato. Observam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, ao tecerem comentários ao art. 140: "Nota-se que, em nosso entendimento, também nesse artigo de lei optou o legislador pela corrente subjetivista. No caso, se as partes fizeram constar no negócio falso motivo, tal elemento converte-se em verdadeira finalidade negocial típica, de forma que o seu descumprimento poderá levar à anulabilidade da avença. Imagine-se a hipótese de uma falsa sociedade filantrópica propor a compra de um imóvel, convencendo o alienante a reduzir o valor da venda, sob o argumento de que a finalidade precípua da aquisição é a instalação de um asilo. As partes cuidaram, inclusive, de consignar, no contrato, a finalidade típica da compra e venda (a instalação do asilo). Posteriormente, verifica-se que a sociedade adquirente atuou dolosamente, fazendo constar a falsa causa apenas para obter a redução do preço, desvirtuando a expressa razão determinante do negócio jurídico pactuado". Cabe aqui distinguir, mais uma vez, causa — que se determina objetivamente, visto ser, como ensina José Carlos Moreira Alves, a função econômico-social atribuída pela norma a um negócio — do motivo, apurado subjetivamente, por ser concernente aos fatos que levaram alguém a efetivar um negócio. P. ex.: numa compra e venda, a causa é a troca da coisa pelo preço e o motivo é a razão pela qual os contratantes realizaram o negócio, p. ex.: para presentear um filho que vai se casar, montar uma loja ou um escritório etc. Finalmente, prescreve o art. 141 do Código Civil que "a transmissão errônea da vontade por meios interpostos é anulável nos mesmos casos em que o é a declaração direta". De forma que se alguém recorrer a rádio, televisão, anúncio, Internet, carbograma, telex, telefone, CD-Rom, fac-símile, disquete ou mensageiro (núncio) para transmitir uma declaração de vontade, e o veículo utilizado a transmitir, por ter havido interrupção, má comT e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 500 C tjrso d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o preensão do sentido da mensagem ou deturpação sonora, com incorreções, acarretando desavença entre a vontade declarada e a interna, poder-se-á alegar erro nas mesmas condições em que a manifestação da vontade é realizada inter praesentes. Interessante é o seguinte exemplo, apontado por San Tiago Dantas, ocorrido na Alemanha: alguém, por meio de telegrama, resolve vender ações da Bolsa, por ter tido notícia de que sofreriam desvalorização. O telégrafo, equivocadamente, transmitiu a mensagem usando o termo Kaufen (compra) e não Verkaufen (venda), com isso causou enorme prejuízo, por ter produzido efeito não desejado. Trata-se de erro de transmissão, por defeito de intermediação mecânica ou pessoal, que modifica o sentido da vontade declarada, gerando a anulação negocial. Se uma declaração de vontade com certo conteúdo for transmitida com conteúdo diverso, o negócio poderá ser passível de nulidade relativa, porque a manifestação de vontade do emitente não chegou corretamente à outra parte. Se, contudo, a alteração não vier a prejudicar o real sentido da declaração expedida, o erro será insignificante e o negócio efetivado prevalecerá. Convém lembrar que além disso acrescenta o art. 144 do Código Civil que "o erro não prejudica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do manifestante". P. ex.: João pensa que comprou o lote n. 2 da quadra A, quando, na verdade, adquiriu o n. 2 da quadra B. Trata-se de erro substancial, mas antes de anular o negócio o vendedor entrega-lhe o lote n. 2 da quadra A, não havendo assim qualquer dano a João. O vendedor, a quem a declaração de vontade do comprador dirigiu- -se, ofereceu-se para executar o negócio conforme seu real querer, por isso, apesar de anulável o contrato por erro, fica sanada a anulabilidade. O negócio será válido, ocorrendo convalescimento do erro, ante o princípio da conservação do negócio, pois foi possível a sua execução de acordo com a vontade real. Se tal execução não fosse possível, de nada adiantaria a boa vontade do vendedor. Observa Sílvio de Salvo Venosa as conseqüências da anulação do ato negocial por erro. P. ex.: o comprador pensa adquirir o lote n. 2 da quadra A, mas comprou o da quadra B, por isso, dentro do prazo de 4 anos (CC, art. 178, II), move ação contra o vendedor, que terá, então, contra si uma procedência, sucumbindo numa ação por motivo de que não concorreu. Como o vendedor, após a efetivação do negócio, deu o destino que desejou ao numerário recebido, no ato da reclamação judicial não tinha mais com que arcar. Por isso, na anulação por erro a responsabilidade é do que pede a anulação 501 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il do ato negocial, visto que foi o único responsável pela má destinação do mesmo. Tal responsabilidade é denominada interesse negativo. Deveras, seria injusto que o vendedor, que não concorreu para o erro do adquirente, arcasse com a dupla sanção: anulação do negócio e absorção do prejuízo pelas importâncias a serem pagas ou restituídas. O julgado contido na RT, 554:80 atendeu ao interesse negativo, pois, numa ação anulatória de negócio por erro de dois agentes que venderam um imóvel que, na época, valia Cr$ 220.000,00, por Cr$ 60.000,00, o magistrado julgou procedente a ação, anulando o negócio, mas condenou os próprios autores que recuperaram o domínio do imóvel a devolver a quantia recebida de Cr$ 60.000,00 para que se restabelecesse o equilíbrio econômico e para que nenhuma das partes sofresse qualquer dano patrimonial. Como o Código Civil de 1916 era omisso a respeito, por essa razão tal solução, na época de sua prolatação, decorreu da boa-fé e dos princípios gerais de direito. Hoje a questão está resolvida pelo art. 144 do atual Código Civil. Todavia, pondera Sílvio de Salvo Venosa que o réu na ação anulatória deverá ingressar com reconvenção, pois na sistemática processual é estranha a condenação do autor que vence a ação. Na falta de reconvenção, ficarão abertas ao sucumbente as portas de uma ação autônoma, se bem que, entendemos, nada obsta que mesmo na ausência de reconvenção o réu seja indenizado em execução de sentença, que, geralmente, deve ser processada por artigos. Pode haver anulação e composição dos prejuízos do lesado com perdas e danos. O dever de indenizar não se relaciona com o erro, mas com o resultado do exercício do direito de anular96 e da ausência de causa que estabilize o aumento econômico do benefício. 96. Sobre o erro vide Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 425-36; Álvaro Villaça Azevedo, Erro — III, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 32, p. 481-9; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 443-51; Orlando Gomes, op. cit., p. 415-8; Jorge Flacquer Scartezzini, Do erro no direito civil, São Paulo, Resenha Universitária, 1976; Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, Freitas Bastos, 1964, v. 2, p. 300-25; Silvio Rodrigues, Dos vícios do consentimento, São Paulo, Saraiva, 1979; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 190-4; Venosa, op. cit., p. 315-8; Silvio Rodrigues, Direito civil, v. 1, p. 208-15; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 193-200; Roger Decottignies, L'erreur de droit, Rev. Trim. Jur., 1951, p. 309; Schkaff, Influence de Verreur, du dol et de la violence sur l'acte juridique, Lausanne, 1920; Guillermo Borda, Error de hecho y de derecho, 2. ed., 1950; A. Ferrer Correia, Erro e interpretação na teoria do negócio jurídico, Coimbra, 1968; Corbin, Ori contracts, 1968, § 606, p. 558; Raymond Celice, El error en los contratos, Madrid, s/d; João Casillo, O erro como vício de vontade, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982; Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, Rio de Janeiro, Borsoi, 1970, v. 4, p. 88, § 384, n. 4; Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico — existência, validade e eficácia, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 91; H. Lehmann, Àllgemeiner Teil des deutschen bürgerlichen Rechts, 1962, § 34, III, n. 1, p. 246; Von Tuhr, Àllgemeiner Teil des deutschen bürgerlichen Rechts, 1914, II, 1, § 67, 502 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 2) Dolo. O dolo, segundo Clóvis Beviláqua97, é o emprego de um artifício ou expediente astucioso para induzir alguém à prática de um ato que o prejudica e aproveita ao autor do dolo ou a terceiro. Essa manobra astuciosa (macchinatio) pode sugerir o falso ou suprimir o verídico, mediante mentiras (allegatio falsi) ou omissões. Já Carvalho Santos98 e Larenz99 não concordam com a referência ao prejuízo como elemento conceitual do dolo, sendo suficiente para sua configuração que haja um artifício que induz alguém a efetuar negócio jurídico, que de outra maneira não seria realizado, sem que, necessariamente, tenha o propósito de causar dano ao enganado, pois a lei civil aplicável ao caso não protege o patrimônio, mas a liberdade de decisão. Parece-nos contudo que a razão está com Clóvis, pois além de que, na prática, ocorre uma correspondência entre a vantagem auferida pelo autor do dolo e um prejuízo patrimonial sofrido pela outra parte, há, virtualmente, um prejuízo moral pelo simples fato de alguém ser induzido a efetivar negócio jurídico por manobras maliciosas que afetaram sua vontade. Como se vê, o erro deriva de um equívoco da própria vítima, sem que a outra parte tenha concorrido para isso, ao passo que o dolo é, intencionalmente, provocado na vítima pelo autor do dolo ou por terceiro, sendo, portanto, passível de anulação (CC, arts. 145, 171, II, 178, II; RT, 444:112). Requer animus ãecipienãi, ou seja, vontade de enganar alguém. Várias são as espécies de dolo, como: a) Dolus bonus ou malus — O dolus bonus, ou dolo tolerável, não induz anulabilidade; é um comportamento lícito e tolerado, consistente em reticências, exageros nas boas qualidades, dissimulações de defeitos, tão utilizap. 593; Standinger-Riezler, Kommentarzum BGB, 1.1, § 122, p. 470; Pablo S. Gagliano e R. Pamplona Filho, Novo curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 336; RT, 526:128, 554:80; Massimo Bianca, Diritto civile: il contralto, p. 618; Mário Benhame, Comentários ao Código Civil (coord. Camillo, Talavera, Fujita, Scavone Jr.), São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p. 238. 97. Clóvis, Comentários ao Código Civil, v. 1, p. 363; Alfonso de Cossio e Corral, El dolo en derecho civil, Madrid, 1955; Jorge A. Carranza, El dolo en el derecho civil y comercial, Buenos Aires, Astrea, 1933; Alberto Trabucchi, II dolo nella teoria dei vizi dei volere, Padova, CEDAM, 1937; Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico e declaração negocial, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 184 e 185; Corral, El dolo en el derecho civil, Madrid, 1955; RT, 161:276, 522:232, 552:219. 98. Carvalho Santos, op. cit., p. 329. 99. Larenz, Derecho civil; parte general, p. 546. 503 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il das no comércio e cuja repressão seria mais prejudicial do que benéfica, acarretando perturbações na segurança das relações mercantis100. É o artifício que não tem a finalidade de prejudicar, p. ex., quando o vendedor exagera um pouco a qualidade de seus produtos, por meio de propaganda (RT, 184:651), desde que não venha a enganar o consumidor, mediante propaganda abusiva (Lei n. 8.078/90, arts. 37 e 38), e que seu ato não viole o princípio da boa-fé objetiva (CC, art. 422); ou quando se induz alguém a tomar um remédio que não deseja ingerir e que lhe é necessário. O ãolus malus consiste no emprego de manobras astuciosas destinadas a prejudicar alguém. É desse dolo que trata nosso Código Civil, erigindo-o em defeito do ato jurídico, idôneo a provocar sua anulabilidade, dado que tal artifício consegue ludibriar pessoas sensatas e atentas. Não há normas absolutas que possibilitem diferenciar essas duas espécies de dolo, cabendo ao órgão judicante, em cada caso concreto, levar em conta a inexperiência e o nível de informação da vítima. b) Dolus causam ãans contracti ou principal e dolus incidens ou acidental — O dolo principal é aquele que dá causa ao negócio jurídico, sem o qual ele não se teria concluído (CC, art. 145), acarretando, então, a anulabilidade daquele negócio. P. ex., o Tribunal de Alçada de São Paulo (RT, 226:395) anulou negócio através do qual alguém fora dolosamente induzido a vender, por preço baixo, quinhão hereditário valioso, entendendo ser inadmissível que pessoa paupérrima pudesse despojar-se de bens que viriam enriquecer seu desfalcado patrimônio. Podemos citar, ainda, como exemplo o caso: a) de um conquistador que, sob promessa de casamento, consegue comprar imóvel valioso, pertencente a mulher inexperiente e ingênua, por preço abaixo do valor mercadológico, fugindo logo em seguida, escapando das núpcias (RT, 212:215); b) da venda feita a pessoa um pouco desequilibrada mentalmente, dando-lhe informações errôneas, incentivando-a a realizar negócio, na crença de que atenderá a seus interesses (ET, 602:58). Para que o dolo principal se configure, segundo Espínola, é preciso que: a) haja intenção de induzir o declarante a praticar o negócio jurídico, desde que, no entender de Clóvis e Serpa Lopes, ocorra prejuízo para a vítima; b) os artifícios fraudulentos sejam graves, aproveitando a quem os alega; c) sejam causa determinante da declaração da vonta100. Antônio Chaves, Dolo, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 29, p. 274. CC francês, arts. 1.116 e 1.117; CC italiano, art. 1.439. 504 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o de; e ã) procedam do outro contratante, ou sejam deste conhecidos, se procedentes de terceiro101. O dolo acidental ou dolo incidente é o que leva a vítima a realizar o negócio, porém em condições mais onerosas ou menos vantajosas (CC, art. 146), não afetando sua declaração da vontade, embora provoque desvios, não se constituindo vício de consentimento, por não influir diretamente na realização do ato, que se teria praticado independentemente do emprego de artifícios astuciosos. Não acarreta, portanto, anulação do negócio jurídico, obrigando apenas à satisfação de perdas e danos ou a tuna redução da prestação acordada. P. ex.: um contratante, usando indexador inadequado para atualização do valor das prestações a ser pagas, convence o outro a efetivar a compra do objeto, mediante estipulação injusta do preço. Tal negócio, apesar do dolo, seria realizado de qualquer maneira, mas por um preço melhor e mais justo, por isso o tribunal entendeu que esse dolo foi acidental, pois a divergência existente entre o real valor do bem alienado e o preço pago pelo adquirente enganado, por si só, não permite a configuração de dolo principal conducente à anulabilidade negocial (JTJ, 185:23); um avalista avaliza documento cambial para seu irmão, por julgar que a quantia se destinava a ampliar determinado negócio, segundo informação deste último. Porém, a verdade é que a importância se destinava a encobrir certo valor indevidamente apropriado. Mesmo assim, ele não poderá alegar dolo principal, porque, ao avalizar, sabia que estava assumindo uma responsabilidade cambiária. O Tribunal entendeu que era dolo acidental, não se apresentando como causa determinante da declaração de vontade nem eliminando a conclusão do ato (RT, 469:131). A esse respeito Silvio Rodrigues cita-nos o seguinte exemplo: O Supremo Tribunal Federal decidiu que houve dolo acidental (RT, 148:379) no comportamento da credora hipotecária de certa massa falida que, mediante promessa de novo negócio, levou o síndico (hoje administrador judicial) a promover nova avaliação do prédio hipotecado, o que reduziu pela metade o valor a ele atribuído na avaliação anterior. Como o novo cálculo era inferior ao crédito preferencial, a credora obteve adjudicação do imóvel. E o Tribunal, reconhecendo como doloso o comportamen101. Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 217 e 218. No mesmo sentido: RT, 254:547; 552:219; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 205 e 206; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 339; M. Helena Diniz, O dolus causam dans invalidante e a questão da concorrência de anulabilidades na renúncia do mandato ad judicia e na rescisão amigável de contrato de prestação de serviços advocatícios e de honorários. Atualidades jurídicas, 4:251-66. 505 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il to da credora, mas definindo como acidental esse dolo, manteve o negócio, condenando a ré à indenização de perdas e danos, representada pela diferença entre o preço pelo qual se havia adjudicado o prédio e o seu valor à época da adjudicação102. Observa, com argúcia, Humberto Theodoro Jr. que "diante do dolo acidental ter-se-á de contar com um considerável arbítrio do juiz, não só na aferição da vulnerabilidade da vítima, mas para discernir, de forma concreta, sobre onde atuou a malícia durante o processo formativo da vontade, se foi sobre sua constituição fundamental, ou apenas sobre algum ponto acessório, para optar entre a invalidação do contrato ou a condenação ao ressarcimento do dano". c) Dolo positivo ou negativo — O dolo positivo ou comissivo é o artifício astucioso que consta de ação dolosa, ou seja, é o dolo por comissão em que a outra parte é levada a contratar, por força de artifícios positivos, ou seja, afirmações falsas sobre a qualidade da coisa. P. ex.: captação de testamento; cotação falsa da Bolsa de Valores para induzir alguém a adquirir ações103. O dolo negativo ou omissivo (CC, art. 147) é a manobra astuciosa que constitui uma omissão dolosa ou reticente; dá-se quando uma das partes oculta alguma coisa que o cocontratante deveria saber e se sabedor não teria realizado o negócio (RT, 545:198). Para o dolo negativo deve haver: intenção de induzir o outro contratante a praticar o negócio jurídico; silêncio sobre uma circunstância ignorada pela outra parte; relação de causalidade entre a omissão intencional e a declaração de vontade; ser a omissão do outro contratante e não de terceiro104. P. ex.: se alguém fizer seguro de vida, omitindo moléstia grave, e vier a falecer poucos meses depois, trata- -se de manobra maliciosa por omissão, em que houve intenção de prejudicar a seguradora e de beneficiar os sucessores (CC, arts. 766 e 773); se alguém quer vender um imóvel e não encontra comprador que lhe pague o preço pretendido por estar o terreno sujeito a desapropriação pela Muni102. Capitant, op. cit., p. 263; De Page, Traité êlémentaire de droit civil belge, v. 1, n. 51; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 440; Orlando Gomes, op. cit., p. 420; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 218; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 196; W. Banos Monteiro, op. cit., p. 204; Humberto Theodoro Jr., Comentários, cit., v. III, t. 1, p. 136 e 138. "Dolo acidental — venda de trator cujo ano de fabricação não correspondia ao informado e cobrado pelo revendedor. Reparação dos danos causados aos adquirentes que se impõe" (RT, 785:243). Vide: CC italiano, art. 1.440; CC paraguaio, art. 291. 103. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 204; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 339. 104. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 204; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 340. Vide: RT, 634:130, 187:314. 506 C u r s o d e D i r e i t o C i v il B r a s i l e ir o cipalidade, oculta, então, que o imóvel é objeto de declaração de utilidade pública e consegue vendê-lo, é também hipótese de dolo por omissão. Os Tribunais têm proclamado ser dolosa a omissão do vendedor de um pomar de laranjas que oculta estarem os frutos atacados de uma praga denominada "leprose" (RT, 168:165); o silêncio do contratante que adquire quinhão hereditário de outrem, ocultando seu efetivo valor, que sabe muito superior ao preço proposto (RT, 61:276); a ocultação pelo alienante da existência de trincas no prédio vendido, quando lhe competia a obrigação de revelar tal fato (RT, 187:314)105. Anula-se negócio efetivado com dolo negativo ante o princípio da boa-fé objetiva (CC, art. 422). Como exceções à regra de ser o dolo emanado do outro contratante, tem-se: a) O dolo de terceiro (RT, 485:55), para acarretar anulabilidade do negócio jurídico, exige o conhecimento de uma das partes contratantes. Realmente, dispõe o art. 148 do Código Civil que pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou. Para tal anulabilidade não basta que um dos contratantes saiba do dolo de terceiro; é preciso que tenha tirado proveito do dolo. Portanto, deverá haver uma participação do beneficiário na consumação da declaração viciada pela cumplicidade ou ciência do vício, para anular o negócio. Não sendo ele conhecido pelo beneficiado dará lugar a uma indenização, por parte da vítima, contra o terceiro autor do engano intencional. Assim, se não se provar, nos negócios jurídicos bilaterais, que uma das partes conhecia o dolo de terceiro, e mesmo que haja presunção desse conhecimento, não poderá ser o negócio anulado, mas terceiro terá responsabilidade pelas perdas e danos causados à vítima. É preciso comprovar o conhecimento, de uma das partes da relação negocial, das maquinações de terceiro. Logo, se houver dolo principal (dolus causam dans) de terceiro, e uma das partes tiver ciência dele, não advertindo o outro contratante da manobra, tornar-se-á corresponsável pelo engano a que a outra parte foi induzida, que terá, por isso, o direito de anular o ato, desde que prove que o outro contratante sabia da dolosa participação do tercei105. Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 195; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 221 e 222; RT, 773:344, 642:144, 640:186, 634:130. Vide: CC francês, art. 1.116; CC paraguaio, art. 290. 507 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv i l ro, ludibriando a vítima, induzindo-a a contratar (dolo conjunto). Assim, se não se provar, no negócio, que uma das partes conhecia o dolo de terceiro, e mesmo que haja presunção desse conhecimento, não poderá o ato ser anulado, mas o terceiro responderá pelas perdas e danos causados à vítima. Por exemplo: Se "A" (comprador) adquire uma joia, por influência de "C" (terceiro), que o convence de sua raridade, sem que "B" (vendedor), ouvindo tal disparate, alerte o comprador ("A"), o negócio é suscetível de anulação. A ação de anulação deve ser de iniciativa de quem foi prejudicado pelo dolo (CC, arts. 171, II, e 178, II). É preciso lembrar que o art. 148 do Código Civil refere-se apenas aos negócios jurídicos bilaterais, pois nos unilaterais é invocável o dolo cometido seja por quem for, porque a validade desses negócios é afetada pelo dolo em qualquer circunstância, como na renúncia de herança. Fácil é perceber que o dolo de terceiro não tem a eficácia, por si só, de possibilitar a anulação do negócio jurídico bilateral, porque isso originaria um dano para as partes que, inocentemente, contrataram, acreditando tratar-se de um negócio isento de vícios. Cessa essa razão, no entanto, se uma das partes contratantes tinha ciência do dolo de terceiro, porque, então, não estaria de boa-fé e seria cúmplice, por omissão, do dolo praticado por terceiro que não teve qualquer intervenção no ato, direta ou indiretamente106. b) O dolo do representante legal (pai, mãe, tutor ou curador) ou convencional (mandatário ou procurador) de uma das partes que não pode ser considerado de terceiro, pois, nessa qualidade, age como se fosse o próprio representado, sujeitando-o à responsabilidade civil até a importância do proveito que tirou do negócio em caso de representação legal, pois, se convencional for, o representado deverá responder solidariamente com o representante por perdas e danos (CC, art. 149), com ação regressiva contra o representante107 pela quantia que tiver desembolsado para ressarcir o dano causado, salvo se com este estava mancomunado. Tal ocorre porque a representação voluntária ou convencional adveio de ato volitivo do representa106. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 441; Ana Lúcia Chaves, Dolo, trabalho apresentado no Curso de Mestrado da PUCSP, 1980, p. 14-6; Venosa, op. cit., p. 325; Humberto Theodoro Jr., Comentários, cit., v. III, t. 1, p. 148. O Código Civil, no art. 148, é abrangente, dando maior âmbito de decisão ao juiz, pois estabelece que pode ser também anulado o ato negocial por dolo de terceiro se a parte, a quem aproveite, dele tivesse ou devesse ter conhecimento. Em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou. Vide: CC português, art. 254.2. 107. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 454; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 207. 508 C u r s o d e D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o do, efetuando contrato de mandato com o representante e por isso este, agindo em nome daquele, efetua ato negocial, que obrigará o representado como se ele mesmo o tivesse praticado. Se pai, tutor ou curador, representante imposto por lei agir de má-fé, justo não seria que o representado arcasse com as conseqüências para as quais não concorreu, daí ter, tão somente, a responsabilidade na proporção do benefício obtido, repondo os lucros recebidos para evitar enriquecimento indevido. Logo, não deverá reparar o prejuízo daquele que foi enganado pelo seu representante legal. Silvio Rodrigues108 afirma que, se o dolo do representante foi causa determinante da celebração do ato, tem a vítima do dolo direito à ação de anulação do negócio realizado, por se tratar de dolo principal, ensejando, ainda, reparação pelo prejuízo causado. Não tendo sido o dolo do representante a causa determinante do negócio, caracterizando-se por dolo acidental, a ação será de perdas e danos e o representado será responsável apenas pelos limites do proveito que obteve, embora tenha ação regressiva por esta importância contra o seu representante. Logo, em se tratando de ação de perdas e danos, a vítima do dolo só poderá cobrar do representado o que tiver lucrado, sendo o remanescente cobrado do representante, a fim de que seja coberto o prejuízo efetivo; assim não se permite que o representado responda solidariamente pelo total do prejuízo acarretado pelo ato do seu representante. Essa proteção ao representado é criticada por vários juristas, dentre eles De Page, que defende a tese de que o representado deveria sofrer as conseqüências do dolo de seu representante, tendo-se em vista a segurança que deve existir no comércio jurídico e a aplicação da teoria da culpa in eligendo e in vigilando. Pois se o representado fez uma má escolha, deve ele suportar as conseqüências disso frente a quem, de boa-fé, entrou no negócio, podendo contra ele ser, diretamente, demandada a ação por perdas e danos. De Page somente exclui dessa posição as pessoas jurídicas em relação aos seus órgãos, porque aí não se cogita de representação n o sentido próprio da palavra. Deveras muito acertada é esta opinião no que concerne à representação convencional; o alcance social será muito mais amplo se ficar o representado responsável pela reparação total do dano, do que se se responsabilizar tão somente pelo proveito obtido. O Código Civil em seu art. 149 dispõe que "o dolo do representante legal de uma das 108. Silvio Rodrigues, Dos defeitos dos atos jurídicos, p. 233. 509 partes só obriga o representado a responder civilmente até a importância do proveito que teve; se, porém, o dolo for do representante convencional, o representado responderá solidariamente com ele por perdas e danos". Claro está que não poderá haver culpa in eligenão ou in vigilando na representação legal em que a própria lei impõe os representantes109. Assim, se pai, tutor ou curador atuar com malícia, o representado, por haver representação legal, não arca com as conseqüências decorrentes dela, exceto até o quantum que o beneficiou. Se a representação for convencional, o representante será responsável solidariamente com o representado pelas perdas e danos, porque este assume o risco pela escolha feita. c) O dolo de ambas as partes (CC, art. 150) que agem dolosamente, configurando-se torpeza bilateral; ocorre neutralização do delito porque há compensação entre dois ilícitos, a ninguém cabendo se aproveitar do próprio dolo, aplicando-se o adágio de que nemo propriam turpitudinem allegans. Caio Mário da Silva Pereira pontifica, com muita clareza, que são compensados os dolos respectivos quando ambas as partes houverem reciprocamente se enganado; a nenhuma delas é permitido alegar o próprio dolo para anular o negócio ou reclamar indenização, pois isso significaria beneficiar-se da própria torpeza, o que não pode ser tolerado pela ordem jurídica. Logo, não poderá haver anulação do negócio, em caso de dolo recíproco. Assim válido será o ato negocial, ficando o dolo de um compensado pelo dolo do outro, seja qual foi a espécie de dolo. A lei confere validade ao ato por não admitir que quem agiu dolosamente queira, baseado em atos iníquos, obter a proteção da ordem jurídica, chegando-se ao absurdo de uma parte pedir a anulação do ato, enquanto a outra reclamasse a indenização, cada uma em busca do seu proveito, porque, quando ambas as partes procedem com dolo, não há boa-fé a defender110. 3) Coação. A coação seria qualquer pressão física ou moral exercida sobre a pessoa, os bens ou a honra de um contratante para obrigá-lo ou induzi-lo a efetivar um negócio jurídico111. T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 109. Ana Lúcia Chaves, op. cit., p. 19 e 20; De Page, op. cit., p. 61. Com isso, o Código Civil distingue o dolo do representante legal do dolo do representante convencional ou voluntário (art. 149). 110. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 453, 454 e 455; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 207; Ana Lúda Chaves, op. cit., p. 21 e 22; CPC, art. 404, II; CC, art. 180. 111. Orozimbo Nonato, Da coação como defeito do ato jurídico, Rio de Janeiro, Forense, 1957; Antônio Chaves, Coação, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 15, p. 228; W. Barros 510 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o Pode ser, portanto, física e moral. A física ou vis absoluta é o constrangimento corporal que retira toda capacidade de querer, implicando ausência total de consentimento, o que acarreta nulidade do ato, não se tratando de vício da vontade. P. ex.: se alguém segurar a mão da vítima, apontando-lhe uma arma, para obter a assinatura de um documento112. A moral ou vis compulsiva atua sobre a vontade da vítima, sem aniquilar-lhe o consentimento, pois conserva ela uma relativa liberdade (RT, 80:87), podendo optar entre a realização do negócio que lhe é exigido e o dano com que é ameaçada. P. ex.: o assaltante que ameaça a vítima dizendo: "a bolsa ou a vida”; esta tem uma alternativa, ou entrega a bolsa ou sofre as conseqüências da ameaça — perda da vida. A coação moral é modalidade de vício de consentimento, pois permite que o coacto emita uma vontade, embora maculada, acarretando a anulabilidade (CC, arts. 171, II, e 1 7 8 ,1) do negócio por ele realizado113. Para que se configure a coação moral, é mister a ocorrência dos seguintes requisitos (CC, art. 151): a) A coação deve ser a causa determinante do negócio jurídico, pois deve haver um nexo causal entre o meio intimidativo e o ato realizado pela vítima. De modo que, se o temor for ocasionado por força maior, será esta e não a coação que viciará a vontade. b) A coação deve incutir à vítima um temor justificado, como morte, cárcere privado, desonra, mutilação, escândalo etc. Entretanto, o magistrado deverá, ao apreciar a ameaça, considerar as circunstâncias que possam influir sobre sua maior ou menor eficácia, porque a lei, ao pressupor que toMonteixo, op. cit., v. 1, p. 209; Capitant, Introduction à Vétiide du droit civil, 2. ed., Paris, 1911, p. 270; CC, arts. 178,1 e 1.559; CPC, art. 404, II; CP, art. 146. Vide: CC francês, arts. 1.112 a 1.114; CC italiano, arts. 1.434 a 1.436; BGB, § 123; CC português, arts. 246, 255 e 256. 112. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 455; W. Barros Monteiro, op. cit., p. 210; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 443. 113. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 210; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 455; Antônio Chaves, op. cit., p. 228; De Page, Traité élémentaire, cit., v. 1, n. 58; Silvio Rodrigues, op. cit., v. 1, p. 224; Nelson de F. Cerqueira, Apontamentos sobre coação, RT, 594:9-15; Funaioli, La teoria delia violenza nei negozi giuridici, Roma, 1927; Orozimbo Nonato, Da coação como defeito do ato jurídico, Rio de Janeiro, Forense, 1957. Vide: RT, 634:107, 664:146, 559:223, 524:65, 705:97; JTACSP, 129:92; JM, 111:179. O Projeto de Lei n. 699/2011 substituirá no art. 151 e parágrafo único a palavra paciente por vítima, por ser a correta e de aplicação mais corrente. Mas o Parecer Vicente Arruda, ao analisar o Projeto de Lei n. 6.960/2002 (atual PL n. 699/2011), o rejeitou porque o termo "paciente" já é consagrado em nosso direito civil, ao tratar da pessoa que sofre a coação; não se vislumbra por que alterá-lo para "vítima". 511 dos nós somos dotados de certa energia ou grau de resistência, não desconhece que sexo, idade, saúde, temperamento podem tomar decisiva a coação que, exercida em certas circunstâncias, pode pressionar e influir mais poderosamente (CC, art. 152; RT, 136:241, 117:298, 106:591). Realmente, a mulher é mais sugestionável que o homem; o enfermo em relação ao que goza boa saúde; o rude em relação ao instruído que viva em meio civilizado etc. A mesma ameaça que um homem repele cala o ânimo de uma jovem; o mesmo indivíduo que em circunstâncias normais de saúde ri de uma ameaça pode sentir-se atemorizado quando debilitado por uma doença. Ameaçar uma mulher grávida ou um velho é muito mais grave do que coagir um pugilista ou um policial, embora a coação tenha conteúdo idêntico. Pelo art. 152 compete ao magistrado a responsabilidade de apreciar o grau de ameaça. É necessário, portanto, que a ameaça se refira a prejuízo que influencie a vontade do coacto a ponto de alterar suas determinações, embora não possa, no momento, verificar, com justeza, se será inferior ou superior ao resultante do ato extorquido. Na verdade, não é fácil a dosimetria em perfeita correspondência entre o dano eventualmente sofrido e aquele que é sofrido pela extorsão; por essa razão Espínola recomenda que não se deve interpretar literalmente o art. 151 do Código Civil para se julgar anulável o ato somente quando o dano temido, for, pelo menos, de valor econômico igual ao proveniente do ato extorquido. c) O temor deve dizer respeito a um dano iminente, suscetível de atingir a pessoa da vítima, sua família ou seus bens (RT, 464:245). Não se requer, portanto, que o dano seja atual, isto é, já presente, nem imediato (ausência de lapso temporal entre a ameaça e o início de realização do mal). A norma apenas exige, como pondera Humberto Theodoro Jr., "que o dano se mostre razoavelmente próximo, de modo a não ensejar tempo ao coacto de socorrer- -se da autoridade pública, ou de não ser eficaz a intervenção desta". Para Espínola o mal é iminente sempre que o coacto não tiver meios para evitá-lo, quer com os recursos próprios, quer com auxílio de outrem ou da autoridade pública. Deve ser inevitável. Ensina-nos Silvio Rodrigues que a ameaça não precisa realizar-se imediatamente, basta que provoque, desde logo, no espírito da vítima, um temor de intensidade suficiente para conduzi-la a praticar o negócio jurídico. A ameaça que produz efeitos em futuro remoto não é idônea para incutir no coacto impressão que o leve a contratar. Não produz efeito de tomar anulável o negócio pela simples razão de que não priva a liberdade do sujeito para realizá-lo. Deveras, a ameaça de um mal impossíT e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 512 vel, remoto ou evitável não constitui coação capaz de viciar o negócio. É necessário, ainda, que a vítima esteja convencida de que corre perigo, se não concordar com o negócio extorquido. d) O dano deve ser considerável ou grave, podendo ser moral, se a ameaça se dirige contra a vida, liberdade, honra da vítima ou de qualquer pessoa de sua família, ou patrimonial, se a coação disser respeito aos seus bens, p. ex., a ameaça de depredar ou incendiar um prédio pertencente à vítima. Ameaças vagas, indeterminadas ou impossíveis, cujos efeitos são incertos e distantes, tomam-se insuficientes para constituir coação (RT, 440:73, 524:65; AJ, 94:408). O dano ameaçado deve ser efetivo ou potencial a um bem patrimonial ou pessoal. e) O dano pode atingir pessoa não pertencente à fam ília da vítima, hipótese em que o magistrado, com base nas circunstâncias, analisando a relação de afetividade ou a emergência da situação fática, decidirá, com equidade, se houve, ou não, vis compulsiva (CC, art. 151, parágrafo único). A esse respeito elucidativa é a seguinte observação de Humberto Theodoro Jr.: "Pode acontecer, e não se trata de hipótese rara nos tempos atuais, que o coator faça refém uma pessoa totalmente desconhecida do coacto, no meio do trânsito, no interior de um banco, dentro de um avião ou em qualquer lugar onde estejam próximos o agente da ameaça, a vítima e aquele de quem se intenta extorquir a declaração negocial (a assinatura de um cheque, p. ex.). Para evitar o assassínio iminente do refém, a pessoa acede à extorsão. Não importa que entre a vítima da extorsão e a vítima da ameaça não exista liame algum, familiar, social ou afetivo. A solidariedade humana é suficiente para justificar a sucumbência do coacto às exigências do coator"114. Excluem a coação115 (CC, art. 153): d) A ameaça do exercício normal de um direito, isto porque a violência deve ser injusta. Se fosse justa, o autor da ameaça teria exercido um direito seu. P. ex.: se um credor de dívida vencida e não paga ameaçar o deveC u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 114. Sobre os requisitos da coação: Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 443 e 444; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 211-3; Antônio Chaves, op. cit., p. 230-4; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 225-36; Espínola, Manual do Código Civil de Paulo de Lacerda; parte geral, p. 409; Agnes Cretella, A ameaça, RT, 470:299-304,1974; Humberto Theodoro Jr., Comentários, cit., v. III, t. 1, p. 177-9. 115. Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 200 e 201; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 214 e 215; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 444 e 445; Orosimbo Nonato, Da coação como defeito do ato jurídico, 1957; RT, 428:175. 513 dor de protestar o título e requerer a falência, não se configura a coação por ser ameaça justa que se prende ao exercício normal de um direito, logo o devedor não pode reclamar a anulação do protesto (RT, 296:310). Já se decidiu que "confessada a emissão de conhecimentos de fretes sem lastro, é inadmissível considerar-se como coação, vício de consentimento suscetível de anular negócio, a ameaça do exercício regular de um direito, a justificar a anulabilidade do ato, que permanece válido" (RT, 779:372). Se, porém, d credor, ao invés de ameaçar com justa execução, o faz com a propagação de um escândalo em que o devedor esteja envolvido, há coação, porque houve exercício irregular de um direito (RT, 15-3:601, 107:513). Da mesma forma aquele que se casa para extinguir ação penal, por ter mantido relações sexuais com menor de 16 anos, não poderá alegar coação, dado que o exercício daquela ação não caracteriza ameaça injusta (RT, 413:371, 390:211). Se houver excesso por parte do delegado como "na hipótese em que um menor preso e sem qualquer assistência se vê acusado de prática criminosa, consente em se casar e se casa ainda sob prisão, tal procedimento caracteriza a coação viciadora do ato jurídico, justificando a anulação do casamento" (RT, 413:369). Portanto, se o exercício do direito for anormal, deixa de ser uma excludente, constituindo-se abuso do direito e ameaça injusta. b) Simples temor reverenciai (RT, 476:258), segundo Clóvis, é o receio de desgostar pai, mãe ou pessoas a quem se deve obediência e respeito; é incapaz de viciar o negócio, desde que não seja acompanhado de ameaças ou violências irresistíveis (RT, 60:339; 274:333; 182:950). Finalmente, pelo art. 154 do Código Civil, a coação exercida por terceiro, ainda que dela não tenha ciência o contratante, vicia o negócio, causando sua anulabilidade. Porém, se a coação exercida por terceiro fosse ou tivesse de ser conhecida pela parte a quem aproveitar, esta responderá solidariamente com aquele por todas as perdas e danos (CC, art. 154). Havendo coação exercida por terceiro, urge averiguar, para apurar a responsabilidade civil, se a parte a quem aproveite dela teve ou devesse ter conhecimento, pois esta responderá solidariamente com o coator por todas as perdas e danos causados ao coacto. Logo, além da anulação do ato negocial pelo vício de consentimento, a vítima terá o direito de ser indenizada pelos prejuízos sofridos, ficando solidariamente obrigados a isso o autor da vis compulsiva e o outro contraente que dela auferiu vantagens e dela teve ou devesse ter ciência. Logo, dever-se-á averiguar se, pela circunstância do negócio, aquele que tirou proveito da coação teria, ou não, possibilidade de T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 514 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o saber que a vontade da outra parte era viciada. E, "subsistirá o negócio jurídico, se a coação decorrer de terceiro, sem que a parte a que aproveite dela tivesse ou devesse ter conhecimento; mas o autor da coação responderá por todas as perdas e danos que houver causado ao coacto" (CC, art. 155), levado a efetivar negócio prejudicial ou desvantajoso. Terá validade é eficácia o negócio em atenção à boa-fé do beneficiado, que desconhecia a coação de terceiro, obrigando o outro contratante a realizá-lo. Coação de terceiro apenas tomará anulável o ato negocial se o contratante, que dele tirou vantagem, souber da manobra que vitimou o coacto116. 4) Lesão e estado de perigo. O instituto da lesão visa proteger o contratante, que se encontra em posição de inferioridade, ante o prejuízo por ele sofrido na conclusão do contrato comutativo, devido à considerável desproporção existente, no momento da efetivação do contrato, entre as prestações das duas partes. P. ex.: se alguém prestes a ser despejado procura outro imóvel para morar e exercer sua profissão, cujo proprietário, mesmo não tendo conhecimento do fato, eleva o preço do aluguel. Diante da necessidade de abrigar sua família e levar adiante suas atividades, o inquilino acaba aceitando o novo contrato, para evitar aquela situação vexatória. Perdendo a noção do justo valor locatício, é levado a efetivar contrato que lhe é desfavorável. O mesmo se diga da pessoa que, para evitar falência, vende imóvel seu por preço inferior ao do mercado, em razão de falta de disponibilidade de recursos líquidos para saldar seus débitos; daquele que, para a continuidade de sua atividade negocial, paga preço excessivo pelo fornecimento de água, numa época de seca; de quem, por ter baixa renda, mora em imóvel alheio, pretendendo adquirir casa própria, acerta pagamento de várias e altas prestações mensais, não correspondentes ao valor do prédio, que, além de sua apresentação precária, está situado em local longínquo e de acesso difícil. Se alguma pessoa tirar proveito da necessidade de outra, estar-se-á bem próximo da coação, e, se se prevalecer de inexperiência de outrem (JTJ, 243:30), ter-se-á situação bastante similar ao dolo; por tais razões poder-se-á incluir a lesão entre os vícios de consentimento. Decorre de ato praticado em situação de desigualdade volitiva para contratar, punindo cláusula leonina, mesmo sem que se comprove dolo de aproveitamento indevido na realização do negócio. No nosso direito anterior estava apenas prevista a lesão usurãria ou usura real, pela qual alguém, ante necessidade premente ou inexperiência, com 116. W. Bairos Monteiro, op. cit., v. 1, p. 215; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 445. 515 dolo de aproveitamento, ou seja, com intenção de tirar vantagem, induz outrem a realizar negócio, praticando usura. Sendo ato ilícito requer como sanção a nulidade ou a rescindibilidade negocial, verificando-se, para tanto, qual foi a vontade do autor da lesão. Tal lesão estava contida apenas na Lei n: 1.521/51, no seu art. 4a, b, pelo qual configura-se pelo ato de obter ou estipular qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto ou 20% do valor corrente ou do justo valor da prestação feita òu prometida, portanto essa lei vem a considerá-la como crime contra a economia popular e no Código de Defesa do Consumidor, art. 39, ao tratar das práticas abusivas do fornecedor de bens ou serviços. Assim, se a lei penal não admite certo negócio, pela mesma razão não se deveria tolerá-lo na seara cível, para manter-se a coerência lógica do sistema jurídico. O Código de Defesa do Consumidor (art. 51, IV) prevê a lesão consumerista ou lesão-vício, ao proibir o fornecedor de prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços e exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. E, além disso, o novo Código Civil, concretizando vício de consentimento, a seu respeito prescreve, no art. 157, caput, que ocorrerá lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obrigar a uma prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação proposta. Tal desproporção deverá ser apreciada segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico (CC, art. 157, § Ia) pela técnica pericial e avaliada pelo juiz (JTJSP, 243:30). Se a desproporcionalidade for superveniente à formação do contrato, será irrelevante juridicamente para fins de anulabilidade, pois tal desequilíbrio contratual poderá gerar, ante a onerosidade excessiva, revisão contratual ou sua resolução (CC, arts. 317, 478, 479 e 480). Não haverá, em caso de lesão, decretação da anulação desse ato negocial, se se oferecer, inclusive em juízo, suplemento suficiente para equilibrar as prestações, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito (CC, art. 157, § 2a), suprimindo algumas parcelas que, ainda, deveriam ser pagas, ou fazendo abatimento no preço. Acatados estão os princípios da conservação, da equivalência material dos contratos e da boa-fé objetiva. E, pelo Enunciado n. 149 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil: "Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 516 que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2a, do Código Civil de 2002". Ressalta, ainda, o Enunciado n. 291 do Conselho da'Justiça Federal (aprovado na IV Jornada de Direito Civil) que: "Nas hipóteses de lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do proveito do leslonador ou do complemento do preço". Trata-se da lesão especial ou qualificada, terminologia proposta por Antônio Junqueira de Azevedo, por se limitar à exigência de excesso nas vantagens e desvantagens, causada pela premência de necessidade ou inexperiência de uma das partes, ao efetivar o contrato sem cogitar de dolo de aproveitamento da parte beneficiada, ou seja, não há que se indagar da má-fé ou ilicitude da conduta do outro contratante. Consequentemente, a sua sanção será a anulabilidade (arts. 171, II, 178, II), permitindo-se, contudo, a oferta de suplemento idôneo para eliminar a desproporção e aproveitar o negócio (art. 157, § 2a). Portanto, a lesão especial é o prejuízo que uma das partes sofre na conclusão de um negócio, oriundo da desproporção existente entre as prestações dos contraentes, sendo que a outra, ante a premente necessidade ou inexperiência daquela, obtém lucro exorbitante ou desproporcional ao proveito resultante da prestação. A premente necessidade poderia ser como já dissemos até mesmo a de obter recursos ou o fato de se encontrar numa situação inusitada e a inexperiência não se confunde com erro por não advir de desconhecimento ou falso conhecimento de uma realidade. O inexperiente nota a desproporção, mas em razão de falta de experiência de vida, acaba concordando irrefletidamente com ela, sem perceber as conseqüências prejudiciais que trará, chegando a um resultado que, conscientemente, não desejava. Até mesmo uma pessoa culta pode ser lesada se desconhecer certas circunstâncias que a levam a se envolver. “A lesão acarretará a anulação do negócio jurídico quando verificada, na formação deste, a desproporção manifesta entre as prestações assumidas pelas partes, não se presumindo a premente necessidade ou a inexperiência do lesado" (Enunciado n. 290 do CJF, aprovado na IV Jornada de Direito Civil). No direito brasileiro, para haver lesão usurária (Lei n. 1.521/51), será necessária a ocorrência de requisito: a) Objetivo, que se configurará pelo lucro, pela desproporção das prestações dos contraentes. No crime contra a economia popular esse requisito seria exceder o quinto do valor corrente C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 517 ou justo da prestação feita ou prometida; por limitar em demasia a atividade do magistrado, melhor seria que se deixasse tal caracterização à prudência do órgão judicante como o fez o Código Civil, b) Subjetivo, ou seja, de dolo de aproveitamento, ante estado de premência de necessidade, de dificuldade econômica, de incapacidade patrimonial, para honrar compromisso assumido, de inexperiência, leviandade, ou ignorância alheia, induzindo a vítima a realizar negócio que lhe será préjudicial, mesmo, que não se tenha a intenção de lesá-la. A premência de necessidade pode advir da iminência de um dano patrimonial, como urgência de evitar processo falimentar, mas nem sempre está ligada a condições econômico-financeiras, pois poderá dizer respeito à impossibilidade, em razão da situação em que a pessoa se encontra, de evitar a efetivação de um dado contrato. A leviandade, oriunda da falta de experiência, pode ser relativa ao ato de realizar negócio, de cujos efeitos pouco se conhece, sem auxílio de um advogado. Trata-se da afoiteza ou da pressa no fechamento de um negócio ou da falta de reflexão sobre as conseqüências que poderão advir do ato negocial concluído. A inexperiência pode dizer respeito à falta de vivência negocial, à ausência de conhecimento sobre os caracteres de determinado negócio ou à pouca habilidade relativa à natureza de certo empreendimento. Logo, trata-se, como já dissemos, de inexperiência contratual, não indicando falta de instrução ou de cultura intelectual. Será bastante que haja proveito da posição de inferioridade da vítima, obtendo lucro desproporcional. Com isso está caracterizado o ato do autor da lesão como ilícito, que acarretará a nulidade do contrato lesivo. O Código Civil, por referir-se à lesão especial ou lesão-vício, dispensa, por sua vez, como vimos, a verificação e a prova do dolo da parte que tirou proveito com a lesão, ordenando a anulabilidade do negócio lesionário ou a possibilidade de complementação contratual, bastando, para tanto, que haja prejuízo (desproporção das prestações — requisito objetivo), prova da ocorrência do ato em caso de premência de necessidade, leviandade ou por inexperiência (requisito subjetivo). Daí ser a lesão objetiva, pois, juridicamente, pouco importará o fato de o outro contratante ter, ou não, conhecimento das condições de necessidade ou inexperiência da vítima. Não será preciso comprovação que houve dolo de aproveitamento (intuito de obter vantagem excessiva da situação do lesado) por parte do que tirou proveito. Realmente, pelo Enunciado n. 150 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil: "A lesão de que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento". T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o Ò iv il 518 Para Caio Mário da Silva Pereira, a lesão é um vício excepcional, situando-se na zona limítrofe dos vícios de consentimento, consistindo no prejuízo que um contratante experimenta em contrato comutãtivo por não receber do outro valor idêntico à prestação fornecida e no lucro patrimonial excessivo da outra parte, oriundo de premência contratual, decorrente de urgência, de inexperiência negocial (falta de habilidade ou falta de vivência negocial), de leviandade, ou seja, de ato impensado ou desavisado. Será necessário salientar que tal vício de consentimento vem em socorro daquele contratante que está em situação de inferioridade em contratos comutativos, ou a quaisquer contratos onerosos, inclusive aleatórios, tomando-os anuláveis (CC, art. 171, II); como nos comutativos há presunção de equivalência das prestações parece-nos ser cabível apenas nestes, que inadmissível será a renúncia antecipada da alegação de lesão, para anular o contrato desproporcional, pois tal renúncia também será considerada como um vício, e que a ação judicial movida contra a lesão dentro do prazo decadenãal de 4 anos, por aplicação do Código Civil, art. 178, II, terá por escopo a restituição da coisa vendida se for caso de compra e venda, ou de restabelecer a situação no estado anterior, se for possível assim; se impossível ter-se-á a indenização com perdas e danos, evitando-se pedido de complementação ou de redução de preço, apesar de isso não afetar a natureza dessa ação. Se a coisa estiver em poder de terceiro possuidor, este poderá ingressar no processo como assistente (CPC, art. 50) e se tiver de restituir a coisa, de que é detentor, terá obviamente direito a uma indenização, atendendo-se, dessa forma, os princípios que regem a evicçâo, mas para tanto deverá denunciar a lide ao transmitente (CPC, art. 7 0 ,1). Não se admite renúncia posterior ao negócio, se ausentes os fatos lesionários, isto é, se o lesado quiser manter o negócio mesmo que esteja especificado no ato o justo preço. Como se pode ver, trata-se do conceito de estado de. necessidade aplicado na seara contratual, caracterizando-se sempre que alguém, diante de certa situação, for levado a efetivar ato negocial em condições desfavoráveis para evitar dano maior. Todavia, como há, a esse respeito, no Código Civil, duas hipóteses previstas como vícios de consentimento, bastante similares — a lesão e o estado de perigo —, urge distingui-las por serem atos prejudiciais praticados em estado de necessidade. Na lesão haverá desproporção das prestações, causada por estado de necessidade econômica, mesmo não conhecido pelo contraente, que vem a se aproveitar do negócio. O risco é p atrimonial, decorrente da iminência de sofrer algum dano material (falência, ruína negocial etc.). Na base da lesão há, em regra, um sério e grave perigo C u r s o d e D i r e i t o C i v il B r a s i l e ir o 519 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il de natureza patrimonial ou material. No estado de perigo haverá temor de iminente e grave dano moral (direto ou indireto) ou material, ou seja, patrimonial indireto à pessoa ou a algum parente seu que compele o declarante a concluir contrato, mediante prestação exorbitante. O lesado é levado a efetivar negócio excessivamente oneroso (elemento objetivo), em virtude de um risco pessoal (perigo de vida; lesão à saúde, à integridade física ou psíquica de uma pessoa — próprio contratante ou alguém a ele ligado), que diminui sua capacidade de dispor livre e conscientemente. Surge uma dependência entre a situação de perigo provocada e o constrangimento capaz de induzir a vítima a determinar a sua vontade negocial, sem ter plena liberdade e consciência, como diz Rodrigo Toscano de Brito, caracterizando o elemento subjetivo do estado de perigo. Para Teresa Ancona Lopes, o estado de perigo caracteriza-se se o declarante pensar que está em perigo, devendo tal suposição ser do conhecimento da outra parte. Requer existência de grave dano conhecido pela outra parte. Se houver algum risco ignorado pela vítima, o estado de perigo não se configurará. Pelo art. 156 do Código Civil ter-se-á estado de perigo quando alguém, premido pela necessidade de salvar-se, ou pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. E, em se tratando de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá pela ocorrência, ou não, do estado de perigo, segundo as circunstâncias, pois existem relações afetivas tão intensas quanto as oriundas de parentesco (CC, art. 156, parágrafo único), e seu bom-senso (LINDB, art. 5a). A pessoa em estado de perigo assume comportamento que não teria conscientemente. P. ex.: o pai que, tendo seu filho seqüestrado, paga vultosa soma de resgate vendendo joias a preço inferior ao do mercado; vítima de assalto que paga enorme soma a quem vier socorrê-la; o doente, em perigo de vida, que paga honorários excessivos para cirurgião atendê-lo; a venda de casa a preço irrisório ou fora do valor mercadológico para pagar cirurgia urgente ou débito de emergência hospitalar; a constituição de garantia cambial ou emissão de cheque para internação hospitalar de parente em risco de vida; a vítima de acidente automobilístico, de naufrágio ou de incêndio que promete soma de grande vulto ou assume negócio exagerado para que seja logo salvo. Em todos esses casos, os negócios efetivados poderão ser anulados (CC, arts. 156 e parágrafo único, 171, II, e 178, II) no prazo decadencial de 4 anos, contado da sua celebração, desde que a outra parte, aproveitando-se da situação, tenha conhecimento do dano, bastando que o declarante pense que está em perigo, ou que pessoa de sua família o esteja, celebrando contrato desvantajoso. É preciso reequilibrar o ato negocial conforme os padrões mercado­ 520 lógicos ante o princípio do enriquecimento sem causa. Assim, se houver perigo real e a pessoa o ignora ou entenda que não é grave, não se poderá falar em defeito de consentimento, não podendo, então, o declarante pleitear a anulação negocial. Para invalidar contrato, alegando estado de perigo, deverá haver nexo de causalidade entre o temor da vítima e a declaração da outra parte contratante, pois pessoa que, abusando da situação, se vale de terror alheio para assumir negócio excessivamente oneroso, não poderá ser tida como contraente de boa-fé. Há quem sustente como Duranton que, se o beneficiário não participou do fato, o negócio jurídico levado a efeito, em razão do estado de perigo, deverá prevalecer, mas mediante redução do quantum exorbitante para evitar enriquecimento sem causa. No estado de perigo o contratante, entre as conseqüências do grave dano que o ameaça e o pagamento de uma quantia exorbitante, será levado a optar pelo último com a intentio de minimizar ou de sanar o mal. Na lesão o contratante, devido a uma necessidade econômica, realizará negócio que só lhe apresentará desvantagens117. E pelo art. 171, II, o Código Civil declara anulável o neC u r s o d e D i r e i t o C i v il B r a s i l e ir o 117. Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil, cit., v. 1, p. 369-76, 513 a 516; Arnaldo Rizzardo, Da ineficácia dos atos jurídicos e da lesão no direito, Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 69; Teresa Ancona Lopez, O negócio jurídico concluído em estado de perigo, Estudos em homenagem ao Professor Silvio Rodrigues, São Paulo, Saraiva, 1989, p. 303 a 342; Moacyr de Oliveira, Estado de perigo, Enciclopédia Saraiva do Direito, 1979, p. 504 e s.; Fernando R. Martins, Estado de perigo no Código Civil, São Paulo: Saraiva, 2007; Luiz Alfredo Angélico Soares Cabral, História do instituto da lesão (dissertação de mestrado apresentada na PUCSP em 2005); Jorge A. Carranza, El vicio de lesión en la reforma dei Código Civil, Buenos Aires, Abeledo Perrot, 1969; Pierre Louis-Lucas, Lesion etcontrat, Paris, 1926; Luis Moisset de Espanes, La lesión en los actos jurídicos, Córdoba, 1965; Juan Carlos Molina, Abuso dei derecho, lesión e imprevisión en la reforma dei Código Civil, Buenos Aires, Astrea, 1969; Caio M. da Silva Pereira, Lesão nos contratos como defeito do ato jurídico, Rio de Janeiro, Forense, 1957; Hélio Borghi, A lesão no direito civil, 1988; Becker, Teoria geral da lesão nos contratos, 2000; Wilson de A. Brandão, Lesão e contrato no direito brasileiro, 1991; Humberto Theodoro Jr., Lesão e fraude contra credores no Projeto do novo Código Civil brasileiro, Revista jurídica, 260:133-61; Carlos Alberto Bittar F2, Da lesão no direito brasileiro atual, Rio de Janeiro, Renovar, 2002; A lesão contratual no novo Código Civil brasileiro, Atualidades jurídicas, 4:93- 104; Gagliano e Pamplona F®, Novo Curso, cit., v. 1, p. 379; Flávio Tartuce, Breves considerações sobre o instituto da lesão (art. 157 do novo Código Civil), Atualidades Jurídicas, 5:107-20; Rodrigo Toscano de Brito, Estado de perigo e lesão: entre a previsão de nulidade e a necessidade de equilíbrio das relações contratuais, Novo Código Civil — questões controvertidas, São Paulo, Método, 2005, v. 4, p. 55-74; Magali Ribeiro Collega, Da lesão no novo Código Civil brasileiro, Novo Código Civil — interfaces no ordenamento jurídico brasileiro (coord. Giselda M. F. Novaes Hironaka), Belo Horizonte, Del Rey, 2004, p. 35-50; Wladimir A. M. F. Cunha, A equivalência material dos contratos e a revisão contratual fundada na lesão no Código Civil de 2002, Introdução crítica ao 521 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il Código Civil (org. Lucas A. Barroso), Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 31-58; Sérgio Iglesias Nunes de Souza, Lesão nos contratos eletrônicos na sociedade da informação, São Paulo, Saraiva, 2009; Danilo B. Mendonça, Lesão, Doutrinas essenciais, cit., v. II, p. 481-522. Antonio Junqueira de Azevedo {Negócio jurídico e declaração negocial, cit., p. 204-9) pondera, na p. 208, que: "Teoricamente, no nosso modo de entender, os contratos aleatórios são passíveis de lesão, porque, como é pacífico, a desproporção condenada deve existir no momento da celebração do negócio (variando as legislações sobre a exigência de dever, ou não, persistir no momento da ação). Por outro lado, o risco, isto é, a desproporção, assumida como possível pelas partes, nos contratos aleatórios, é posterior à celebração. Segue-se que não há impossibilidade de lesão; a desproporção inicial não é a mesma desproporção assumida. Basta refletir sobre o contrato de seguro e imaginar que todas as seguradoras cobrem '10 X', ou valor próximo, para garantir determinados riscos, e uma delas, aproveitando da inexperiência de um segurado, venha a cobrar '100 X', para a mesma finalidade, para se verificar que haveria lesão. Em síntese, pelos termos do art. 4S da Lei n. 1.521, de 1951, também os contratos aleatórios admitem lesão". A CLT, art. 462, §§ 3a a 4a, proíbe-a; trata-se da denominada truck system, em que empresas pagam com vales para que empregados adquiram mercadorias em seus armazéns. O CDC (arts. 6a, V, 39, V, e 51, IV) já combatia a lesão consumerísta, em que houvesse desproporção das prestações, prejudicando o consumidor, prescindindo de dolo de aproveitamento por parte do fornecedor. Consulte: Nelson Nery Jr. e outros, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, São Paulo, Forense Universitária, p. 402; Stolze e Pamplona Filho, Novo curso, cit., p. 373. Por outro lado, a expressão muitas vezes usada de desproporção entre prestação e contraprestação não pode ser entendida de forma a excluir os contratos unilaterais onerosos. Embora estes contratos, literalmente, não tenham contraprestação, sua natureza supõe o sinalagma: genético (são onerosos). Seria preferível falar, nos termos do Código Civil português, de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados (art. 282s), A desproporção, na nossa lei, está tarifada e é bastante pequena, insignificante mesmo, num país de inflação alta permanente; um quinto a mais, ou a menos, que o valor justo, pode ser a diferença de preço de um mês, para outro, tomando, pois, a apuração da lesão difícil". A lesão e o estado de perigo são aspectos da usura real ante a prática que leva o negócio efetivado a causar grande prejuízo a um dos contratantes, trazendo lucros exorbitantes e injustificáveis ao outro. Não se trata, portanto, de usura financeira, caracterizada pela cobrança de juros superiores à taxa legal. Consulte: Código Civil italiano, arts. 1.447 e 1.448; CC francês, arts. 887, 1.118 e 1.306; BGB, art. 138, § 2S; RT, 283:193. No Código de Napoleão a lesão se opera quando o valor do dano for igual ou superior a 7/12 do valor do bem. No Brasil e Portugal, pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, bastava para sua configuração a desproporcionalidade entre o valor e o preço, assim seriam afetados os negócios, p. ex., pela desproporção de mais da metade ou mais de 2/3 do valor do bem. Vide Código Civil austríaco, § 934. Sobre lesão: RJ, 167:96. A lesão aplica-se a qualquer tipo de contrato (civil, consumerista, bancário etc.) e também a planos de saúde, faturização etc. "LESÃO. CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS. ENGANO. DOLO DO CESSIONÁRIO. VÍCIO DO CONSENTIMENTO. DISTINÇÃO ENTRE LESÃO E VÍCIO DA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE. PRESCRIÇÃO QUADRIENAL. Caso em que irmãos analfabetos foram induzidos à celebração do negócio jurídico através de maquinações, expedientes astuciosos, engendrados pelo inventariante-cessionário. Manobras insidiosas levaram a engano os irmãos cedentes que não tinham, de qualquer forma, compreensão da desproporção entre o preço e o valor da coisa. Ocorrência de dolo, vício de consentimento. Tratando-se de negócio jurídico anulável, o lapso da prescrição é quadrie­ 522 C u r s o d e D i r e i t o C i v il B r a s il e ir o nal (art. 178, § 9a, inc. V, 'b', do Código Civil)" (STJ, REsp 107.961/RS, rei. Min. Barros Monteiro, Quarta Turma, j. 13-2-2001, DJ, 4-2-2002, p. 364). "Apelação cível. Contratação de mútuo que vem atrelada a contrato de seguro de previdência privada. Constatação de que o segundo contrato foi imposto à mutuária então premida pela necessidade de obtenção do empréstimo. Configuração da chamada venda casada que resultou em prejuízo do consumidor. Invalidade que também se vê tipificada no instituto da lesão que veio a lume no artigo 1S7 do novo Código Civil. Correto reconhecimento na sentença da invalidade do negócio que foi imposto à autora. Questão puramente patrimonial a afastar a pretendida reparação de dano moral. Desprovimento dos recursos" (TJRJ, Apelação Cível n. 2007.001.05782, rei. Marilene Melo Alves, j. 2-5-2007). Deve o Estado-juiz permitir que se produza prova pericial destinada a apurar o valor de mercado de imóvel objeto de contrato denunciado pelo preço abusivo e asfixiante das prerrogativas contratuais do comprador, pois faltando esse elemento do contexto probatório, prejudica-se a interpretação da ocorrência inscrita como defeito do negócio jurídico (artigos 5a, XXXV e LV, da Constituição Federal e 130 e 420 do Código de Processo Civil) e, em consequência, o julgamento da ação de rescisão" (TJSP, Agravo de Instrumento n. 287.623-4/2 - Moji das Cruzes, 3a Câmara de Direito Privado, rei. Ênio Santarelli Zuliani, 6-5-2003, v.u.), "CONTRATO — COMPRA E VENDA — IMÓVEL — CLÁUSULA — LESÃO — OCORRÊNCIA — NEGOCIAÇÃO DO BEM POR VALOR EXAGERADAMENTE SUPERIOR AO DE MERCADO — ONEROSIDADE EXCESSIVA — INEXPERIÊNCIA DA PARTE — INTERVENÇÃO PERTINENTE DO JUDICIÁRIO PARA O REEQUILÍBRIO DAS OBRIGAÇÕES — REDUÇÃO DO PREÇO— RECURSO PROVIDO PARA ESSE FIM" (717,243:30). Segundo o Enunciado n. 148 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil: "Ao 'estado de perigo' (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2e do art. 157". Sobre estado de perigo: "Age com má-fé o nosocômio que condiciona a internação de paciente, em estado grave de saúde, à prévia assinatura de contrato de prestação de serviço pelo acompanhante, que fica obrigado ao pagamento das despesas, nulidade do contrato declarada, e em face do vício de consentimento. Meros dissabores, aborrecimentos, contrariedades, não geram danos morais" (TJMG, Ap. Cível 491776- 8, 15a Câm., j. 5-5-2005). "CIVIL. EMBARGOS INFRINGENTES. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. INTERNAÇÃO DE URGÊNCIA EM HOSPITAL DA REDE PARTICULAR. ESTADO DE PERIGO. INTELIGÊNCIA DO ART. 156 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PROVA. AUSÊNCIA. EMBARGOS INFRINGENTES NÃO PROVIDOS. O estado de perigo constitui vício que anula negócio jurídico, previsto no art. 156 do Código Civil de 2002. Se a parte alega estado de perigo ao assinar termo de responsabilidade para internação de paciente em unidade hospitalar da rede particular, acarreta para si o ônus de provar que as despesas cobradas são excessivas e que houve abuso por parte do contratado que aproveitou do estado de aflição para obter vantagem exagerada. Ausente a prova de que a obrigação imposta é excessiva, resta o dever de cumprir a obrigação assumida. Embargos infringentes conhecidos e não providos" (TJMG, Proc. n. 1.0024.05.646017-3/003, rei. Desa. Márcia de Paoli Balbino, DO, 14- 4-2007). "AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO HOSPITALAR. ESTADO DE PERIGO. OBRIGAÇÃO EXCESSIVAMENTE ONEROSA. A falta de prova de que a obrigação imposta ao réu é excessivamente onerosa descaracteriza o estado de perigo, motivo por que é válido o contrato de prestação de serviços hospitalares firmado entre as partes e persiste o débito que dele decorre" (TJDF, Ac. na Aç. 254.917, rei. Vera Andrighi, DJ, 23-11-2006). "AÇÃO DE COBRANÇA. DESPESAS MÉDICO-HOSPITALARES. TERMO DE RESPONSABILIDADE. ESTADO DE PERIGO. PROVA. REQUISITOS. INEXISTÊNCIA. PAGAMENTO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE. CABIMENTO. Para que haja o estado de perigo, faz-se necessário que estejam 523 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv i l gócio jurídico por vício da vontade enquanto não ratificado, depois de passado o perigo, sob cuja iminência foi feito. P. ex.: contrato celebrado por alguém ameaçado de perigo iminente, como estado crítico de moléstia grave, operação cirúrgica, naufrágio, inundação, incêndio, acarretando risco de vida, é considerado anulável. Entretanto esse artigo é criticado por permitir a anulação de negócio realizado em estado de perigo, pois, uma vez anulado o ato negocial, o agente deve recorrer à ação de enriquecimento sem causa para obter o pagamento. Eis por que há quem entenda, como Sílvio de Salvo Venosa, que o melhor seria manter o negócio, reduzindo o valor do pagamento ao justo limite, pelo serviço prestado. Contudo, o Código Civil entende que, se o agente valeu-se do pavor incutido à outra parte para efetivar o ato negocial, agiu de má-fé, abusando da situação, portanto, o negócio não pode subsistir. Será aconselhável o prudente arbítrio do órgão judicante ao aplicar o referido artigo ao caso sub judice. São vícios sociais: 1) Simulação — Como diz Clóvis118, simulação é a declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso do ostensivamente indicado. presentes: a ameaça de grave dano à própria pessoa ou a pessoa de sua família; a atualidade do dano; onerosidade excessiva da obrigação; a crença do dedarante de que realmente se encontra em perigo e o conhecimento do perigo pela outra parte. O termo de autorização e responsabilidade assinado pelo segundo réu não se encontra eivado de estado de perigo, pois não se configurou, in casu, o segundo requisito indispensável para a configuração do estado de perigo, qual seja, a assunção de obrigação excessivamente onerosa" (TJMG, Proc. n. 1.0024.05.646017-3/001, rei. Lucas Pereira, DJ, 27-7-2006). BAASP, 2.704: 5.799. Civil e consumidor — Apelações Cíveis em ação anulatória de ato jurídico c.c. indenização por danos morais e materiais — Contrato de prestação de serviços médicos e hospitalares — Apelação interposta pela U. N.: proposta de nova cobertura contratual quando o usuário se encontrava em risco de morte. Migração para plano de saúde mais oneroso. Assentimento viciado. Estado de perigo caracterizado no momento da avença. Nulidade do novo pacto que se impõe. Manutenção do decisum. Apelo conhecido e desprovido. Apelação de A. L. C.: Dano material e moral. Alteração do instrumento contratual com vício de consentimento (estado de perigo). Não cabimento da devolução do valor pago a maior na mensalidade, em razão da cobertura usufruída pelo apelante. Reparação material não configurada. Inexistência de negativa do atendimento hospitalar (cirurgia para implantação de stent). Inocorrência dos pressupostos para o dano moral. Sentença mantida. Conhecimento e desprovimento do Apelo (TJRN — 3a Câm. Cível; ACi n. 2009.013928-1-Natal-RN; Rei. Des. Saraiva Sobrinho; j. 27-5-2010; v. u.). Vide: CC italiano, art. 1.447; BGB, § 228. 118. Na linguagem comum, "simular" significa fingir o que não é, como diz Francesco Ferrara (Delia simulazione dei negozi giuridici, 5. ed., Roma, Athenaeum, p. 1), "fare apari- 524 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o Procura-se com a simulação iludir alguém por meio de uma falsa aparência que encobre a verdadeira feição do negócio jurídico. Caracteriza-se, como diz Washington de Barros Monteiro119, pelo "intencional desacordo entre a vontade interna e a declarada, no sentido de criar, aparentemente, um negócio jurídico, que, de fato, não existe, ou então oculta, sob determinada aparência, o negócio realmente querido". Na simulação a vontade se conforma com a intenção das partes que combinam entre si no sentido de manifestá-la de determinado modo, com o escopo de prejudicar terceiro que ignora o fato120. Assim a simulação apresenta os seguintes caracteres121: a) é uma falsa declaração bilateral da vontade; b) a vontade exteriorizada diverge da interna ou real, não correspondendo à intenção das partes; c) é sempre concertada com a outra parte, sendo, portanto, intencional o desacordo entre a vontade interna e a declarada; d) é feita no sentido de iludir terceiro. Não há que confundir a simulação com a dissimulação. A simulação absoluta provoca falsa crença num estado não real, quer enganar sobre a existência de uma situação não verdadeira, tomando nulo o negócio (CC, art. 167, 1- parte) e acarretando sua imprescritibilidade. Procura, portanto, aparentar o que não existe. A dissimulação (simulação relativa) oculta ao conhecimento de outrem uma situação existente, pretendendo, portanto, incutir no espírito de alguém a inexistência de uma situação real122 e no negócio jurídico subsistirá o que se dissimulou se válido for na substância e na forma (CC, art. 167, 2- parte). Por exemplo: se A vender a B um imóvel por 200 mil, declarando na escritura pública que o fizeram por 150 mil, re ciò che non è, dimostrare una cosa che realmente non esiste"; Clóvis, Comentários ao Código Civil, cit., v. 1, p. 380; e Teoria geral do direito civil, p. 239; Custódio P. Ubaldino Miranda, A simulação no direito civil, São Paulo, 1980; Autonomia e natureza jurídica do acordo simulatório na simulação nos negócios jurídicos, Revista do IASP, 23:65 a 72; Heleno T. Torres, Teoria da simulação de atos e negócios jurídicos, Doutrinas essenciais, cit., v. II, p. 547-610; Lino de M. Leme, Negócio simulado, Doutrinas essenciais, cit., v. II, p. 663-68; RT, 697:93, 703:149, 829:367; RJTJSP, 131:6 5 ,154:196; RJ, 104:165, 160:161. 119. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 217; RT, 508:65. 120. Silvio Rodrigues, Dos defeitos, cit., p. 9; Homero Prates, Atos simulados e atos em fraude da lei, 1958. 121. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 218. 122. Ferrara, A simulação nos negócios jurídicos, São Paulo, Saraiva, 1939, p. 160. 525 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il apesar de a falsidade dessa declaração lesar o Fisco, que vem a conseguir a decretação judicial da nulidade, a compra e venda entre A e B subsistirá, por ser válida na substância (ambos os contratantes podiam efetuar ato negocial, que servirá como título para a transferência da propriedade imobiliária se levado a registro) e na forma (por ter sido atendido o requisito formal de sua efetivação por escritura pública). Na escritura pública lavrada por valor inferior ao real, anula-se o valor aparente, subsistindo o real. A reserva mental (isto é, a emissão de uma intencional declaração não querida em seu conteúdo, tampouco em seu resultado, pois o declarante tem por único objetivo enganar o declaratário; p. ex., no ato de emprestar dinheiro a alguém desesperado que pretende suicidar-se, não se tem por escopo efetivar contrato de mútuo, mas sim ajudar aquela pessoa, enganando-a) também não se confunde com a simulação, embora ambas tenham um ponto em comum: declarar coisa que não se pretende, com o intuito de enganar. Na reserva mental (ou restrição mental) o agente quer algo e declara, conscientemente, coisa diferente para, eventualmente, poder alegar o erro em seu proveito, enganando o outro contratante, sendo ineficaz, por não atingir a validade do negócio jurídico. Na celebração negocial, há declaração de vontade que não é a real, o verdadeiro objetivo do declarante é ignorado pelo declaratário. Na reserva mental pode haver ou não prejuízo; o importante é a intenção de enganar. O nosso Código Civil cuida da reserva mental, incluindo-a em seu art. 110, ao prescrever: "A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento". Logo, se conhecida da outra parte, não torna nula a declaração da vontade, esta inexiste, e, consequentemente, não se formou o ato negocial, uma vez que não havia intentio de criar direito, mas apenas iludir o declaratário. Se for desconhecida pelo destinatário subsistirá o ato, protegendo-se, assim, o contratante de boa-fé (CC, art. 422), cumprindo-se a obrigação assumida, como se o declarante tivesse tido a intenção de vincular-se, visto que ninguém poderá tirar proveito da própria malícia. Na simulação o enganado é sempre terceiro, acarretando invalidação do negócio, pelo menos entre as partes123 (TJSP, ADCOAS, n. 84544, 1982). Na reserva mental alguém faz uma 123. Ferrer Correia, Erro e interpretação na teoria do negócio jurídico, São Paulo, Saraiva, 1939, cap. 1, p. 60; Genny Ramalho Pinto Sganzerla, Simulação, trabalho apresentado no Curso de Pós-Graduação da PUCSP, 1980, p. 7; Nelson Nery Junior, Vícios do ato jurídico e reserva mental, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983; Scuto, Riserva mentale, in Novissimo Digesto Italiano, Torino, UTET, 1969, v. 16, p. 111; Moacyr de Oliveira, 526 declaração negocial, reservando para si sua real vontade. Essa vontade reservada não acarretará quaisquer efeitos, ao passo que a vontade declarada prevalecerá produzindo conseqüências jurídicas. A reserva mental poderá ser inocente, se se pretender enganar apenas, e fraudulenta, se, além de enganar, houver intenção de prejudicar. Dá-se prevalência à vontade interna quando não prejudicar a boa-fé de terceiros. Na reserva mental não há, portanto, coincidência entre a declaração externa e a vontade interna do agente, em relação a um negócio. A reserva mental só macula o ato, impedindo seus efeitos, se o destinatário tinha ciência daquela divergência, lesiva patrimonial ou moralmente ao declaratário, aproveitando-se da situação. É mister trazer a lume as lições de Nelson Nery Junior, que cuida magistralmente da reserva mental. Ensina esse professor que a reserva mental apresenta dois elementos constitutivos: a declaração não querida em seu conteúdo e o propósito de enganar o declaratário ou mesmo terceiro, alheio ao ato negocial, embora esta última hipótese seja rara. Ter-se-á reserva mental inocente quando não há a intenção de prejudicar, daí ser irrelevante para o direito, não sendo equiparável nos efeitos à simulação, sendo cabível apenas a ação declaratória da existência da relação jurídica, se presentes os requisitos exigidos para propor tal ação. Será ilícita a reserva mental se o declarante tiC u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o Reserva mental, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 65, p. 266 e s.; Manuel Augusto Domingues de Andrade, Teoria da relação jurídica, Coimbra, 1974, v. 2, p. 150, nota 1; Antônio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico e declaração negocial, cit., p. 166-8; Vogel, Mentalreservation und Simulation, 1900; Walter Wette, Mentalreservation, Simulation und'agere in fraudem legis, 1900; Rui de Alarcão, Reserva mental e declarações não sérias, BMJ, 86:255; Mário Benhame, Comentários ao Código Civil (coord. Camillo, Talavera, Fujita e Scavone Jr.), São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p. 222); Stolze e Pamplona Filho (Novo curso, p. 385) apresentam o seguinte exemplo de reserva mental: autor promete que doará, numa sessão de autógrafos, seus direitos autorais a uma instituição. É preciso salientar, ainda, que reticência não é sinônimo de reserva mental. A reticência é a abstenção com o objetivo de provocar um erro do outro contraente, sobre alguma circunstância do ato negocial, sendo por isso designada por Alberto Trabucchi de dolo negativo. Não se confunde a reserva mental com o lapsus linguae vel calami, que consiste na troca de palavras por quem exprime a vontade em certo ato negocial. P. ex., se o declarante confundir usufruto com fideicomisso. Ensina-nos Mano Aliara que o lapsus linguae vel calami é uma hipótese de divergência entre a declaração e a vontade do conteúdo material da declaração. Não é intencional, ao passo que na reserva mental há intuito de enganar o declaratário (La teoria generale dei contratto, Torino, Giappichelli, 1955, p. 89). Na reserva mental há convicção do declarante de que o declaratário ignorà a mentira. A reserva mental inocente é a que se opera sem intentio de causar dano, a fraudulenta requer ânimo de lesar. 527 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il ver intuito de prejudicar. Será absoluta, se o declarante nada pretende, p. ex., se ele declara vender o imóvel, quando, na verdade, não objetiva realizar nenhum outro contrato. Será relativa se o declarante pretender algo diverso do que declarou, p. ex., se diz qiie está doando, quando na realidade pretende realizar compra e venda. Será unilateral se somente um dos contraentes manifestar vontade contrária ao seu querer e bilateral se ambos os contratantes expressarem suas vontades em desacordo com a real intenção, com a finalidade de enganaiem-se reciprocamente. A reserva mental desconhecida do declaratário apresenta-se como divergência intencional entre a vontade interna e a declarada; de total irrelevância para o direito é o que ficou no íntimo do declarante, pois o que importa é a vontade declarada, dando-se assim maior segurança à relação jurídica, protegendo-se terceiro de boa-fé. A reserva mental ilícita conhecida do declaratário é vício social do negócio, ensejando sua nulidade, e, como há uma aparência de vontade ou declaração sem vontade, deve prevalecer a vontade real sobre a declarada, equiparando-se, aos efeitos, à simulação; acarreta a nulidade do ato negocial, porque a simulação enseja que o negócio seja nulo (CC, art. 167). Terão legitimidade ativa, na ação de nulidade por reserva mental ilícita conhecida, apenas os terceiros prejudicados pelo negócio. É preciso esclarecer que o conhecimento da reserva mental que acarreta invalidação somente pode ser admissível até o momento da consumação do ato negocial, pois, se o declaratário comunicar ao reservante, antes da efetivação do negócio, que conhece a reserva, não haverá esta figura, que tem por escopo enganar o declaratário. O Código Civil, por dar à simulação o tratamento de nulidade, atingirá a reserva mental ilícita conhecida, que passará a ser causa de nulidade do ato negocial, de modo que o interessado terá que fazer uso da ação declaratória negativa. Ser-lhe-á impossível ajuizar a positiva, para que se declare existir a relação jurídica, porque, se a reserva mental ilícita conhecida do declaratário acarreta a nulidade do negócio, o órgão judicante a decretará ex officio, extinguindo o processo sem julgar o mérito. Na ação declaratória negativa, o juiz declarará a inexistência da relação jurídica, e sua decisão terá efeitos ex tunc, retroagindo à data da realização do negócio viciado. Sendo assim, não haverá que se falar em decadência ou em prescrição dessa ação no Código Civil, pois o interessado sempre poderá ajuizá-la. Quanto às demais modalidades de reserva mental, por serem irrelevantes, o tratamento será o mesmo, continuará cabendo a ação declaratória positiva. 528 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s il e ir o José Belleza dos Santos124 esclarece-nos que a simulação caracteriza-se pela falta de conformidade intencional entre a vontade real e a declarada, com o intuito de enganar terceiros, e a fraude à lei por uma violação indireta da lei, não no seu conteúdo literal, mas em seu espírito, conseguindo-se o fim proibido pela norma jurídica por um caminho indireto125. Para Ferrara126 o negócio simulado é fictício, não querido, não sendo meio de iludir a lei, mas de ocultar sua violação, e o negócio in fraudem, real e realizado com o escopo de obter um resultado proibido. P. ex.: é o caso de fraude o fato de os consortes se separarem ou se divorciarem, continuando a vida em comum, deixando o ex-marido, na partilha, todos os bens para a mulher, para que possa lançar-se em negócios que colocariam em risco seu patrimônio. Já Belleza dos Santos127 contesta essa distinção absoluta entre a simulação e a fraude, pretendida por Ferrara, ao escrever que tal distinção "perde toda a sua razão de ser desde que a fraude à lei não constitui, como realmente acontece, uma situação que tenha uma configuração própria absolutamente diferenciada dos atos contra legem. Desde que a fraus legis não é senão uma modalidade da violação da lei, menos aparente, mais disfarçada, mas sempre uma infração da norma imperativa, desaparece essa diferenciação rigorosa, essa antítese que Ferrara quer encontrar entre a fraude à lei e a simulação, que oculta uma violação da norma legal. Neste último caso há também uma infração da lei menos aparente, porque se manifesta exteriormente um respeito à lei que na realidade não se tem, o que caracteriza a fraude à lei". Assim a fraude à lei pode realizar-se por meio de atos simulados, com que se oculta uma violação da lei ou sem que haja simulação. A esse respeito Serpa Lopes128 observa que "toda vez que a simulação atua como um meio fraudatório à lei, visando a vulneração de uma norma cogente, deixa de preponderar a ideia de simulação para dar lugar à fraude à lei, pela violação da norma de ordem pública. Por outro lado, quando não ocorrer essa hipótese, ou seja, quando não houver qualquer atentado a uma norma de ordem pública, preponderam os princípios inerentes à simulação". O negócio simulado também não deve ser confundido com o negócio fiduciário, que é um negócio indireto, uma vez que neste as partes têm por 124. José Belleza dos Santos, A simulação em direito civil, Lael, 1955, p. 100 e 101. 125. Ferrara, op. cit., p. 93. 126. Ferrara, op. cit., p. 93. 127. Belleza dos Santos, op. cit., p. 101. 128. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 451 e 452. 529 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil objetivo conseguir determinado efeito prático, sendo, portanto, um negócio existente, embora os contratantes dele se sirvam para finalidade econômica diversa (p. ex., garantia de mútuo), não havendo divergência entre a vontade real e a declarada com o intuito de prejudicar terceiros. Há transmissão válida de um direito real ou de um crédito, que se destina a outros fins, obrigando-se o que o recebeu a transferi-lo a terceiro, uma vez alcançado o objetivo, em conformidade com o pactuado. P. ex.: faz-se a cessão de um crédito não para que o cessionário se utilize dele em proveito próprio, mas para que o receba entregando-o ao cedente, ou para assegurar o pagamento de outro crédito de que o cedente seja devedor ou cessionário. O negócio simulado é contrato fingido, havendo desavença entre a vontade interna e a declarada com o objetivo de enganar terceiro129, sendo, portanto, nulo (CC, arts. 166, VII, e 167, caput). O negócio indireto é meio para atingir objetivo próprio de outro negócio, e não para enganar terceiro. A simulação (de acordo com o CC, art. 167, §§ I a, I, II e III, e 2a) pode ser: I a) Absoluta, quando a declaração enganosa da vontade exprime um negócio jurídico bilateral ou unilateral, não havendo intenção de realizar negócio algum (RT, 117:101). Há um acordo simulatório em que as partes pretendem que o negócio não produza nenhum efeito, ou melhor, não tenha qualquer eficácia jurídica. Fingem uma relação jurídica que na realidade não existe130. Tal negócio é nulo e insuscetível de convalidação (CC, art. 169). O negócio jurídico nulo não poderá ser confirmado, nem se convalescerá pelo decurso do tempo (RSTJ, 136:233), com exceção do caso do art. 1.859, pelo qual o testamento nulo se convalidará se não se pleitear sua invalidação dentro do prazo decadencial de cinco anos, computado do seu registro. A declaração da nulidade absoluta tem eficácia ex tunc. E, "sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra" (Enunciado n. 294 do CJF, aprovado na IV Jornada de Direito Civil). Por exemplo o caso: a) do proprietário de uma casa alugada que, com a intenção de facilitar a ação de despejo contra seu inquilino, finge vendê- -la a terceiro que, residindo em imóvel alheio, terá maior possibilidade de vencer a referida demanda (RT, 177:250, 439:92); b) da emissão de títulos de 129. Belleza dos Santos, op. cit., p. 103 e 131; Ferrara, op. cit., p. 76; RT, 440:87. 130. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 461; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 448; Belleza dos Santos, op. cit., n. 10; Ferrara, op. cit., n. 2. 530 crédito, que não representam qualquer negócio, feita pelo marido, em favor de amigo, antes da separação ou do divórcio para prejudicar a mulher na partilha de bens (RT, 255:451, 307:376, 441:276, 317:155 e 179:844); c) da alegação de uma situação patrimonial inexistente, quando, p. ex., o proprietário de uma pedreira que explodiu, causando graves prejuízos a terceiros, declara que é devedor de enormes quantias a um amigo seu, a quem dá garantia real, com a finalidade de, mediante a preferência concedida, ilidir a execução que lhe seria movida pelas vítimas do referido acidente (KF, 40:546); d) do devedor que finge vender seus bens para evitar a penhora; é) da pessoa que, ante o incessante pedido de parentes para que venha a prestar fiança ou aval, passa, para pôr fim àquele "assédio", seus bens para um amigo, fazendo com que não haja, em seu nome, lastro patrimonial, tomando-lhe impossível a prestação de qualquer garantia real ou fidejussória131. 2a) Relativa, quando resulta no intencional desacordo entre a vontade interna e a declarada; dá-se quando uma pessoa, sob a aparência de um negócio fictício, pretende realizar outro que é o verdadeiro, diverso, no todo ou em parte, do primeiro. É uma deformação voluntária para se subtrair à disciplina normal do negócio jurídico prevista em norma jurídica, com o escopo de prejudicar terceiro (RT, 231:196). Há, pois, nessa espécie de simulação, dois contratos, um aparente (simulado) e um real (dissimulado), sendo este o que é verdadeiramente querido pelas partes e, por conseguinte, o que se oculta de terceiros132. Como o art. 167 do Código Civil, 2- parte, diz que o negócio jurídico simulado subsistirá, ante o princípio da conservação dos negócios jurídicos, no que se dissimulou, se válido for na substância e na forma, há quem entenda que não há mais a distinção entre simulação relativa e absoluta. Nula será a absoluta e valerá o negócio na relativa, apenas se válido for na subsC u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o 131. Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 245; Butera, Delia simulazione nei negozigiuridici, Torino, 1936; Hector Camara, Simulación en los actos jurídicos, Buenos Aires, 1944; Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, 1954, v. 1, n. 8; M. Helena Diniz, Simulação absoluta, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 69, p. 106 e s.; Nicola Distaso, La simulazione dei negozi giuridici, 1960; Raymond Gamier, De 1'interposition depersonnes dans les libéralités, 1902; Giovanni Furginele, Delia simulazione di efetti negoziali, 1992; Jorge Mosset Iturraspe, Negocios simulados, fraudulentos yfiáuciarios, 1975, v. 1 e 2; Luis Munoz Sabaté, La pruéba de la simulación, 1980; Michel Dagot, Lá simulation en droit privé, 1967; Humberto Theodoro Jr., Comentários, cit., v. III, t. 1, p. 481 e 482. Vide: RT, 829:367. 132. Messineo, Dottrina generàle dei contratto, p. 303. 531 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil tância e na forma. O Enunciado n. 153 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil, assim reza: "Na simulação relativa, o negócio simulado (aparente) é nulo, mas o dissimulado será válido se não ofender a lei nem causar prejuízos a terceiros". E, o Enunciado n. 293 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, esclarece que: "Na simulação relativa, o aproveitamento do negócio jurídico dissimulado não decorre tão somente do afastamento do negócio jurídico simulado, mas do necessário preenchimento de todos os requisitos substanciais e formais de validade daquele". O negócio simulado tem por escopo encobrir outro de natureza diversa, uma vez que o agente ao declarar sua vontade visa à produção de efeito jurídico, embora muito diferente do que resultaria do negócio por ele praticado. A esse respeito expressivas são as palavras de Pontes de Miranda: "Quer-se o que não aparece e não se quer o que aparece"133. A simulação relativa pode ser: a) Subjetiva ou ad personam, se a parte contratante não for o indivíduo que tirar proveito do negócio. Esse sujeito aparente é designado como testa de ferro, presta-nome ou homem de palha. O negócio não é efetuado pelas próprias partes, mas por uma pessoa interposta ficticiamente. Humberto Theodoro Jr., baseado em Francesco Galgano, pondera: "Consiste, pois, esse tipo de simulação na interposição fictícia de pessoa no negócio verdadeiro, de sorte que, no contrato, aparece pessoa, a interposta, que é diversa da contratante real, a interponente"13i. Ou melhor, quando o negócio aparenta conferir ou transmitir direitos a pessoa diversa a quem se confere ou se transmite (CC, art. 167, § l e, I). P. ex.: é o que sucede na venda realizada a um terceiro para que ele transmita a coisa a um descendente do alienante, a quem se tem a intenção de transferi-la desde o início135; po133. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, v. X, n. 8, p. 53; De Page, op. cit., v. 2, Ia parte, n. 617 e s. 134. Orlando Gomes, op. cit., p. 424; Humberto Theodoro Jr., Comentários, cit., v. III, 1 .1, p. 492. Na interposição de pessoa, o testa-de-ferro age por conta de outrem e não em nome de outrem. Realiza negócio sem revelar o nome daquele por quem atua, e os efeitos do negócio celebrado recaem sobre seu patrimônio. O negócio por interposição de pessoa é precedido por contrato que possa permitir ao interessado oculto receber por transmissão de direitos as vantagens do avençado. É a lição de Nelson Nery Junior e Rosa Ma A. Nery, Novo Código Civil e legislação extravagante anotados, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 64. 135. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 461. 532 rém tal simulação só se efetivará quando se completar com a transmissão dos bens ao real adquirente (RT, 156:733, 608:72). Burla-se, dessa forma, o disposto no art. 496 do Código Civil, que estatui: "É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido", com o intuito de evitar que, sob o calor de venda, se façam doações, prejudicando a igualdade das legítimas136. Os descendentes prejudicados (CC, art. 168) poderão requerer a nulidade do negócio se a alienação, no exemplo acima, não foi realizada diretamente pelo ascendente ao descendente, porém por intermédio de pessoa interposta. b) Objetiva, se a simulação for relativa à natureza do negócio pretendido, ao objeto ou a um dos elementos contratuais. Será objetiva se o negócio contiver declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira (CC, art. 167, § Ia, II). É o que se dá, respectivamente, com a doação de cônjuge adúltero ao seu cúmplice, efetivada mediante compra e venda, em virtude de prévio ajuste entre doador e beneficiário, em detrimento do cônjuge e herdeiros dó doador, contrariando, assim, o art. 550 do Código Civil137, e com a hipótese de que as partes na escritura de compra e venda declaram preço inferior ao convencionado, com a intenção de burlar o Fisco, pagando menos imposto (RT, 170:226). Se a doação fosse feita diretamente ao cúmplice do doador adúltero, seria anulada pelo outro cônjuge ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (CC, art. 550). Mas como foi encoberta tal liberalidade, simulando compra e venda, esta é suscetível de nulidade (CC, art. 167). Sendo a simulação, neste caso, parcial, por subsistir o negócio, fica ressalvada à Fazenda a percepção dos respectivos direitos fiscais138, e com a hipótese de que as partes colocam, no instrumento particular, a antedata ou a pós-data, constante no documento, não aquela em que o mesmo foi assinado, revela uma simulação, pois a falsa data indica intenção discordante da verdade (CC, art. C u r s o d e D i r e i t o C i v t i B r a s i l e i r o 136. Clóvis, Comentários ao Código Civil, v. 4, p. 245. Vide: RT, 387:302, 382:124, 443:221 e 320, 446:98 e 414:138; STF, Súmulas 152 e 494. O STJ (EJSTJ, 5:86) Já decidiu que "não há impedimento a que alienado bem a terceiro, venha o mesmo bem a ser adquirido por descendente do alienante, mais de sete anos após, sem prova de que o negócio fora simulado". E o STF (RT, 561:259), por sua vez, entendeu que não haverá ofensa à lei se descendente readquirir, sem fraude, bem alienado legitimamente pelo pai a terceiro. Tais decisões são anteriores ao novel Código Civil. 137. Orlando Gomes, op. cit., p. 425; RT, 556:203; RJTJSP, 106:82. 138. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 220. 533 167, § Ia, III). Atualmente, são raras as antedatas, devido à exigência da autenticação pelo reconhecimento da firma ou pela inscrição do documento no Registro de Títulos e Documentos, necessária com relação a terceiros. Quando se tratar de instrumento público, a fixação da data é competência do oficial público, cuja declaração merece fé; logo, se a data constante do documento não for verdadeira, ter-se-á não só grave falta funcional, mas também crime de responsabilidade do funcionário139. 32) Inocente, quando não existir intenção de violar a lei ou de lesar outrem, devendo ser, por isso, tolerada (RJTJSP, 131:65; RT, 381:86, 527:71, 720:35). P. ex.: a situação em que o de cujus antes de falecer, sem herdeiros necessários, simula venda aparente a terceira pessoa a quem pretende deixar um legado. O mesmo ocorre com o chamado "Fica", documento de largo uso nó Mato Grosso do Sul, em que uma das partes recebe dinheiro e declara ter recebido gado, que se obriga a devolver {RT, 235:556)140. Apresenta os seguintes elementos: intencional declaração contrastante com a vontade real das partes; ocultação do negócio real a terceiros e ausência de prejuízo a terceiros ou de violação da lei141. Os contraentes poderão usar da ação declaratória de simulação ou opô-la sob a forma de exceção, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiro {RT, 527:71). Dela tratava, expressamente, o art. 103 do Código Civil de 1916. Pelo Enunciado n. 152 do Conselho de Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil: "Toda simulação, inclusive a inocente, é invalidante". Sem embargo, parece-nos que a simulação inocente, como já dissemos, ante ausência de animus de violação legal ou de prejudicar alguém, deveria ser suscetível de tolerância. 4a) Maliciosa é a que envolve o propósito de prejudicar terceiros ou de burlar o comando legal, viciando o ato, que perderá a validade, sendo nulo. Os contratantes nada poderão alegar ou requerer em juízo quanto à simulação do negócio, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiro (era prevista no art. 104 do CC de 1916). T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C ivil 139. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 221; M. Helena Diniz, Simulação relativa, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 69, p. 113 e s.; Sílvio de Salvo Venosa (op. cit., p. 342 e 343) observa que, nas modalidades do art. 167, § Ia, I e II, do Código Civil, podem ocorrer as duas formas de simulação: relativa e absoluta, mas na hipótese contemplada no inc. III só pode haver simulação relativa. A simulação relativa dá-se: por interposição de pessoa, por ocultação da verdade na declaração e por falsidade de data. 140. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 222. Vide: CPC, art. 129; Mário Benhame, Comentários, cit., p. 253. 141. Vicente Ráo, Ato jurídico, cit., São Paulo, Saraiva, p. 213. 534 Observa Mário Benhame que o novel Código Civil, ao suprimir o disposto nos arts. 103 e 104 do revogado Codex, não aboliu os preceitos e seus efeitos, mas apenas reconheceu seu caráter processual, deixando sua disciplina para o Código de Processo Civil, art. 129, que assim prescreve: "Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o juiz proferirá sentença que obste os objetivos das partes". Estabelece o art. 168 e parágrafo único do Código Civil que as nulidades do art. 167 podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir. E devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes. Se não houver interessados em invalidar o ato negocial, os simuladores terão que sofrer o resultado de sua ação, pois não poderão arguila em litígio de um contra o outro ou contra terceiro142 (RT, 337:323, 383:99, 415:358, 526:81), visto que não se podem valer da própria malícia para tornar nulo negócio simulado, mas será possível o Ministério Público demandar sua nulidade e a mesma poderá ser decretada ex officio pelo juiz. A prova da simulação é difícil, pois se deve demonstrar que há um negócio aparente, que esconde ou não outro ato negocial, por isso o Código de Processo Civil, nos arts. 332 e 335, dá, implicitamente, ao magistrado o poder de valer-se dos indícios e presunções para pesquisar a simulação. Ensina-nos Sílvio de Salvo Venosa que são indícios reveladores de simulação: o preço vil dado em pagamento para coisa valiosa; a amizade íntima ou o parentesco entre os contraentes; a falta de possibilidade financeira do adquirente, comprovada pela requisição de cópia de sua declaração de imposto de renda; o fato de o adquirente não ter declarado na relação de bens, para imposto de renda, a coisa adquirida; a não transferência de numerário mencionado no ato negocial nas contas bancárias dos participantes; a continuação do alienante na posse da coisa alienada; o fato de o adquirente não conhecer a coisa adquirida; a relação de dependência hierárquica, empregatícia ou moral entre os simuladores; os antecedentes e a personalidade do simulador etc. Como se pôde ver o Código Civil alterou, substancialmente, o enfoque desse instituto, sem, contudo, desnaturar seus fundamentos básicos, ao reC u r s o d e D ir e i t o C i v il B r a s il e ir o 142. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 222; Sílvio de Salvo Venosa, op. cit., p. 338-52; Matiello, Código, cit., p. 136. A fraude à lei diferencia-se da simulação: RT, 721:147. 535 tirar a simulação do capítulo alusivo aos defeitos do ato negocial, incluindo-a no atinente à invalidade do negócio por entender que é causa de nulidade e não de anulabilidade, como pretendia o Código Civil de 1916. Deveras, como já apontamos, reza, no art. 167, que "é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma". Assim sendo, a simulação acarretará nulidade do negócio simulado. Mas, em caso de simulação relativa, o negócio dissimulado poderá subsistir se for válido na substância e na forma. E, além disso, não mais distingue, o Código Civil, a simulação inocente e maliciosa, porque ambas produzem o mesmo resultado, que é a nulidade do negócio simulado e a subsistência do dissimulado. Pelo Código caiu por terra o art. 104 do Código Civil de 1916, que dizia que em caso de intenção de prejudicar a terceiros, ou infringir preceito legal, nada poderão alegar, ou requerer, os contraentes em juízo quanto à simulação do negócio, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros, pois os simuladores poderão alegar simulação um contra o outro. Ressalva, ainda, o Código Civil, no art. 167, § 2-, os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado. Terceiros de boa-fé deverão ter resguardados seus direitos; ato negocial simulado não poderá atingi-los. Logo, aqueles terceiros poderão conservar efeito daquele negócio, que lhes for proveitoso, mesmo que prejudicial aos contratantes, simuladores, que, então, deverão arcar com o risco de sofrer o dano advindo de seu ato de má-fé, nocivo àqueles terceiros. Somente terceiros de boa-fé poderão, então, pleitear a nulidade do ato simulado, se isso lhes for conveniente. 2) Fraude contra credores — Constitui fraude contra credores a prática maliciosa, pelo devedor, de atos que desfalcam o seu patrimônio, com o escopo de colocá-lo a salvo de uma execução por dívidas em detrimento dos direitos creditórios alheios143. T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il 143. Serpa Lopes, op. cit., p. 457; Paulo Roberto Tavares Paes, Fraude contra credores, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 253; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 466; Sebastião Lintz, Da fraude contra credores, Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, 14:45-8; Lauro Laertes de Oliveira, Da ação pauliana, 1989; Yussef Said Cahali, Fraude contra credores, 1999; Humberto Theodoro Jr., Lesão e fraude contra credores no Projeto do novo Código Civil brasileiro, RT, 771:11; Oswaldo Luiz Palu, A fraude contra credores e as ações pauliana e revocatória, Justitia, 155:96; Mauro Grinberg, Fraude contra credores, fustitia, 81:173; Iara de Toledo Fernandes, Fraude contra credores, RPGESP, 29:213; ADCOAS, 536 Dois são seus elementos: o objetivo (eventus damni), que é todo ato prejudicial ao credor, não só por tomar o devedor insolvente ou por ter sido realizado em estado de insolvência, devendo haver nexo causal entre o ato do devedor e a sua insolvência, que o impossibilita de garantir a satisfação do crédito, como também por reduzir a garantia, tornando-a insuficiente C u r s o d e D ir e i t o C iv il B r a s i l e ir o n. 83.720, 1982; n. 90.307, 1983; RT, 748: 226, 672:178, 637:154, 644:110, 553:248, 619:126,605:173, 600:258; EJSTJ, 11:60 e 73;JSTJ, 4:228. Consulte: Lei n. 11.101/2005, arts. 129, 130, 168 a 178. M u xogram a a çã o p au lian a (publicado na Trinolex.com n. 1, p. 115) 537 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il para atender ao crédito, e o subjetivo (consilium fraudis), que é a má-fé, a intenção de prejudicar do devedor ou do devedor aliado a terceiro144, ilidindo os efeitos da cobrança. Contudo, não mais se exige a scientia fraudis para anular negócio gratuito ou remissão de dívida com fraude contra credores. Mesmo que o devedor, ou o beneficiário do contrato benéfico, transmitindo algo, ou do perdão do débito, ignore que tal ato reduzirá a garantia ou provocará a insolvência do devedor, esse negócio jurídico será suscetível de nulidade relativa. A causa da anulação é objetiva, por ser suficiente que haja a redução do devedor ao estado de insolvência. São suscetíveis de fraude os negócios jurídicos: a) A título gratuito (doação ou remissão de dívida — CC, art. 386), quando os pratique, independentemente de má-fé, o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à Insolvência, caso em que poderão ser anulados pelos credores quirografários (sem garantia) como lesivos dos seus direitos, se já o eram ao tempo desses atos (CC, art. 158, § 2a; RJTJSP, 120:18, 100:37, 50:69; RT, 525:56, 512:29, 426:191). "Para os efeitos do art. 158, § 2a, a anterioridade do crédito é determinada pela causa que lhe dá origem, independentemente de seu reconhecimento por decisão judicial" (Enunciado n. 292 do CJF, aprovado na IV Jornada de Direito Civil). A exigência da anterioridade do crédito "é afastável quando ocorre fraude predeterminada para atingir credores futuros (RJTJRGS, 90:258; RT, 445:242; RJTJSP, 28:59). Os credores com garantia real não poderão reclamar a anulação, porque encontrarão no ônus real (penhor, anticrese ou hipoteca) a segurança de seu reembolso, salvo se a garantia tomar-se insuficiente para satisfazer seu direito creditício (CC, art. 158, § I a), hipótese em que poderão valer-se da ação pauliana, quanto ao saldo quirografário. Deveras, pelo Enunciado n. 151 do Conselho de Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil: "O ajuizamento da ação pauliana pelo credor com garantia real (art. 158, § l 2) prescinde de prévio reconhecimento judicial da insuficiência da garantia". b) A título oneroso, se praticado por devedor insolvente ou quando a insolvência for notória ou se houver motivo para ser conhecida do outro contraente (CC, art. 159), podendo ser anulado pelo credor. P. ex.: quando houver venda de imóvel em data próxima ao vencimento das obrigações e inexistirem outros bens para solver o débito (RT, 426:191, 466:144, 471:131). Convém esclarecer que a insolvência ocorre quando o passivo do devedor passa a 144. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 226. 538 C u r s o d e D i r e i t o C iv il B r a s i l e ir o ser maior do que o seu ativo, ou seja, o montante das dívidas excede o valor de seus bens (CPC, art. 748). Será notória a insolvência se o devedor tiver seus títulos protestados ou ações judiciais que impliquem a vinculação de seus bens (RT, 482:88,477:144). É presumida quando o adquirente tinha razões para saber do estado financeiro precário do alienante. P. ex.: parentesco próximo, preço vil, alienação de todos os bens, relações de amizade, de negócios mútuos etc. (RT, 174:683,136:177)14S. c) Como a outorga de garantias reais (CC, art. 1.419) a um dos credores quirografários pelo devedor em estado de insolvência, prejudicando os direitos dos demais credores (CC, art. 163), acarretando sua anulabilidade (RT, 114:721). Há presunção legal juris et de jure de fraude. d) Como o pagamento antecipado do débito a um dos credores quirografários frustra a igualdade que deve haver entre tais credores, poderão estes propor ação para tornar sem efeito esse pagamento, determinando que o beneficiado reponha aquilo que recebeu em proveito do acervo (CC, art. 162). Portanto, só poderá ser anulado pagamento de dívida ainda não vencida, pois se já estiver vencida esse pagamento não é mais do que uma obrigação do devedor146. A fraude contra credores, que vicia o negócio de simples anulabilidade (CC, arts. 171, II, e 178, II), somente é atacável por ação pauliana ou revocatória (EJSTJ, 14:53; RSTJ, 109:215 e 103:227; RT, 472:213, 553:248, 599:261, 637:154, 713:186, 748:226, 771:217; JTJRS, 181:244), que requer os seguintes pressupostos (RT, 461:195): a) Ser o crédito do autor anterior ao ato fraudulento. b) Que o ato que se pretende revogar tenha causado prejuízos. c) Que haja intenção de fraudar, presumida pela consciência do estado de insolvência (RT, 456:195). Pelo art. 164, se o devedor insolvente vier a contrair novo débito, visando a beneficiar os próprios credores, por ter por escopo adquirir objetos imprescindíveis ao funcionamento do seu estabelecimento mercantil, rural ou industrial, ou à sua subsistência e de sua família, evitando a paralisação de suas atividades e, consequentemente, a piora de seu estado de insolvência e o aumento do prejuízo aos seus credores, o 145. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 229; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 259. 146. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 230. 539 T e o r ia G e r a l d o D i r e i t o C iv il negócio por ele contraído será válido ante a presunção juris tantum em favor da boa-fé. d) Pode ser intentada contra o devedor insolvente, contra a pessoa que com ele celebrou a estipulação fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé (CC, art. 161; RT, 106:214). Poderão ser acionados por terem celebrado estipulação fraudulenta com o devedor insolvente: a) herdeiros do adquirente, com a restrição do art. 1.792 do Código Civil; b) contratante ou adquirente de boa-fé, sendo o ato a título gratuito, embora não tenha o dever de restituir os frutos percebidos (CC, art. 1.214) nem o de responder pela perda ou deterioração da coisa, a que não deu causa (CC, art. 1.217), tendo, ainda, o direito de ser indenizado pelas benfeitorias úteis e necessárias que fez (CC, art. 1.219); c) adquirente de boa-fé, sendo o negócio oneroso, hipótese em que, com a revogação do ato lesivo e restituição do bem ao patrimônio do devedor, entregar-se-á ao contratante acionado a contraprestação que forneceu, em espécie ou no equivalente. Quem receber bem do devedor insolvente, por ato oneroso ou gratuito, conhecendo seu estado de insolvência, será obrigado a devolvê-lo, com os frutos percebidos e percipiendos (CC, art. 1.216), tendo, ainda, de indenizar os danos sofridos pela perda ou deterioração da coisa, exceto se demonstrar que eles sobreviriam se ela estivesse em poder do devedor (CC, art. 1.218). Todavia, resguardado estará seu direito à indenização das benfeitorias necessárias que, porventura, tiver feito no bem (CC, art. 1.220). e) Prova da insolvência do devedor (RT, 470:100, 480:67, 461:137). f) Perdem os credores a legitimação ativa para movê-la, se o adquirente dos bens do devedor insolvente que ainda não pagou o preço, que é o corrente (correspondente ao do mercado), depositá-lo em juízo, com citação de todos os interessados (CC, art. 160). Se for inferior, o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar a quantia correspondente ao valor real (CC, art. 160, parágrafo único). A lei concede uma chance para sanar o defeito original, possibilitando uma regularização da situação, efetuando-se o depósito até mesmo depois de julgada procedente a ação pauliana, como assevera Yussef Said Cahali. Com isso, não se ultima a fraude contra credores, pois não houve diminuição patrimonial. Para que não haja nulidade relativa do negócio jurídico lesivo a credor, será mister que o adquirente: a) ainda não tenha pago o preço real, justo ou corrente; b) promova o depósito judicial desse preço; e c) requeira a citação de todos os interessados, para que tomem ciência do depósito. Com isso estará assegurando a satisfação dos credores, não se justificando a rescisão contratual, pois ela não trará qual­ 540 quer vantagem aos credores defraudados, que, no processo de consignação em pagamento, poderão, se for o caso, contestar o preço alegado, hipótese em que o magistrado deverá determinar a perícia avaliatória. O principal efeito da ação pauliana é revogar o negócio lesivo aos interesses dos credores, repondo o bem no patrimônio do devedor, cancelando a garantia real concedida (CC, art. 165 e parágrafo único) em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores, possibilitando a efetivação do rateio, aproveitando a todos os credores e não apenas ao que a intentou147. C u r s o d i D i r e i t o C iv i l B r a s i l e ir o 147. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 459; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 469; Cândido Rangel Dinamarco, Fraude contra credores alegada nos embargos de terceiros, RJTJSP, 97:8-31; Nelson Nery Jr., Fraude contra credores e os embargos de terceiro, Rev. Brasileira de Dir. Processual, Forense, 1981, p. 30 e 55-70; Clito Fomaciari Jr., Sem insolvência não há fraude à execução, Tribuna do Direito, julho de 2003 — Caderno de Jurisprudência; Jorge Americano, Da ação pauliana, São Paulo, Saraiva, 1932; Gilberto Gomes Bruschi, Fraude de execução (polêmicas), in Processo de execução (coord. Bruschi), São Paulo, RCS, 2005; Nelson Hanada, Da insolvência e sua prova na ação pauliana, São Paulo, 1982, p. 101 e s. Vide CP, art. 179; CPC, arts. 591, 593, 600,1, e 672, § 3a; Lei n. 5.172/66, RJTJSP, 85:268, 95:34; RJE, 4:23; art. 185; CC, art. 178, § 92, V; Dec.-lei n. 1.003/38; RTJ, 96:683, 95:842, 80:305; RF, 252:242; RT, 645:107, 644:71, 527:266, 540:124, 541:156; EJSTJ, 5:53 e 66, 11:73, 14:66. A fraude contra credores pode ser reconhecida em embargos de terceiro, desde que da relação processual nessa via incidental tenha também participado o executado, haja vista que não se pode anular um ato jurídico bilateral sem que estejam presentes todas as partes nele envolvidas (TAMG, ADCOAS, n. 82.903, 1982). A Súmula 195 do STJ prescreve: "Em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra credores". A fraude à execução é alienação pendente lite (RJ, 155:54; JSTF, 96:77; RJTARGS, 89:197; RT, 669:186, 684:98, 689:167 e 742:318), e a contra credores consiste na redução de garantia geral ou desfalque patrimonial. Vide: CC francês, art. 1.167; CC italiano, art. 2.901; CC espanhol, art. 1.291; CC português, arts. 610 a 616; CC paraguaio, arts. 312 a 314. O i u !; H 1 'O ; fc >—1 o : Pi Q > < ; o ;; ou esDODoOw2OD <í C£ UJ OU2 UJ OHz PJW Oo»VO ■çf m vo 02t u-i O MD VOuU •S CNOs vo t i • ro Cl m z0Q . 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B a o a n rt. rtO n» n►—*sífí & ü«D 3 *0 ti: o X Z d cM tí > 0 w 0 O 2 M O 0> o o >-( d n o m O w > oM > C“* 0 o Cn 00 w g «?' p 584 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o Por conseguinte, a nulidade absoluta é uma penalidade que, ante a gravidade do atentado à ordem jurídica, consiste na privação da eficácia jurídica que teria o negócio, caso fosse conforme a lei. De maneira que um ato negocial que resulta em nulidade é como se nunca tivesse existido desde sua formação, pois a declaração de sua invalidade produz efeito ex tunc, retroagindo à data da sua celebração. Convém lembrar, como o faz Serpa Lopes, que a causa dessa sanção deve ser contemporânea ao negócio, pois são inadmissíveis motivos de nulidade baseados em circunstâncias posteriores, surgidas no curso da vida contratual166. A nulidade relativa ou anulabilidade refere-se "a negócios que se acham inquinados de vício capaz de lhes determinar a ineficácia, mas que poderá ser eliminado, restabelecendo-se a sua normalidade"167. A declaração judicial de sua ineficácia opera ex nunc, de modo que o negócio produz efeitos até esse momento (CC, arts. 177 e 183). Isto é assim porque a anulabilidade se prende a uma desconformidade que a norma considera menos grave, uma vez que o negócio anulável viola preceito concernente a interesses meramente individuais, acarretando uma reação menos extrema (CC, arts. 171, I e II; 180 a 182)168. Serão anuláveis os atos negociais: 1) Se praticados por pessoa relativamente incapaz (CC, art. 4a), sem a devida assistência de seus legítimos representantes (pais, tutores e curadop. 395-416; Luiz Roldão de Freitas Gomes, Invalidade dos atos jurídicos, nulidades, anulabilidades — conversão, Revista de Direito Civil, 53:10 e s.; Zeno Veloso, Invalidade do negócio jurídico, Belo Horizonte, Del Rey, 2002. 166. RT, 436:75; 461:74; 466:93; 433:93; 391:374; 461:89; 431:149; 48:110; 447:223; 446:265; 494:135; 492:141; 508:193; 434:222; 467:130; 472:117; 451:225; 479:204; 456:68; 478:172; 475:175, 638:93, 639:169, 659:147, 717:189; RJ, 113:188, 114:198, 133:54, 189:82, 210:116; RJM, 39:129; STF, Súmula 346; Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 504; José Antonio M. Femandez, El fraude de ley: su tratamiento jurisprudencial, 1988; Régis V. Fichtner Pereira, Da regra jurídica sobre fraude à lei, RDC, 50:41; Martinho Garcez, Das nulidades dos atos jurídicos, Rio de Janeiro, Renovar, 1997. Vide: CC português, arts. 286, 288 e 293; CC paraguaio, arts. 355, 358, 366 e 377; CC italiano, arts. 1.424,1.425 e 1.444; CC francês, arts. 1.117 e 1.338; BGB, §§ 140 e 144; CC holandês, art. 42 (3.2.8). 167. Esta é a definição de Clóvis Beviláqua (op. cit., p. 281). 168. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 547, 548 e 552; Orlando Gomes, op. cit., p. 433; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 277; Andréa Torrente, Manuale di diritto prívato, p. 212; Trabucchi, Istituzioni di diritto civile, p. 170; De Page, Traitê élémentaire, cit., v. 1, n. 98; Amézage, De las nulidades, Montevideo, 1909; Débora Gozzo, Nulidade relativa: um outro tipo de invalidade — alguns apontamentos, O direito civil no sécião XXI, cit., p. 129-44; RT, 416:203; 507:115; 455:220; 464:141; 466:194; 495:59; 519:257; 518:96, 622:202; RJ, 159:61, 187:60,189:82. 585 res). Todavia, convém lembrar que, quando a anulabilidade do ato advier de falta de autorização do representante, será validado o negócio se ele a der posteriormente (CC, art. 176). Contudo, o menor púbere, que procede com malícia, praticando atos sem assistência, não poderá pedir a anulação desses negócios (CC, art. 180), invocando idade que maliciosamente ocultou. Não será juridicamente admissível que alguém se prevaleça de sua própria malícia para tirar proveito de um ato ilícito, causando dano ao outro contratante de boa-fé, protegendo-se, assim, o interesse público. Isto é assim porque ninguém poderá tirar proveito de sua própria torpeza ante o princípio nemo auãitur propriam turpitiidinem suam allegans. P. ex.: se, fraudulentamente, se declara maior, explorando a boa-fé da outra parte responderá pelos prejuízos que causou (CC, art. 928), podendo haver também responsabilidade solidária do representante legal, ainda que não haja culpa de sua parte (CC, arts. 932, I e II, 933 e 942). 2) Se viciados por erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo (RT, 466:95; 464:97), ou fraude contra credores (CC, arts. 138 a 165). 3) Se a lei assim o declarar, tendo em vista a situação particular em que • se encontra determinada pessoa169. P. ex.: o art. 1.650 do Código Civil, que permite ao cônjuge ou herdeiros a anulação dos atos do outro, praticados sem a devida outorga uxória ou marital ou sem suprimento do juiz; os casos dos arts. 117 (celebração de contrato pelo representante consigo mesmo, sem autorização legal ou do representado, no seu interesse ou à conta de outrem) e 1 .5 5 0 ,1 a VI (realização de casamento por quem não completou a idade nupcial; por menor sem autorização de seu representante legal; por vício de vontade, por incapaz de consentir, por mandatário, estando revogado o mandato e por autoridade incompetente) do Código Civil. Portanto, segundo a moderna teoria âa nulidade do negócio jurídico, para que se declare um ato negocial inválido é preciso que ele valha, o que pressupõe a sua existência; logo o ato inexistente não tem qualquer significado na seara jurídica, é fato inidôneo para produzir conseqüências jurídicas, de forma que a lei não o regula, porque não há necessidade de se disciplinar o nada170. Para que se possa declarar um negócio jurídico nulo ou T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 169. Orlando Gomes, op. cit., p. 434. 170. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 276; Mário Guimarães, Estudos de direito civil, p. 71. Será inexistente o ato se faltar elemento essencial à sua existência (consentimento, objeto e causa). P. ex.: casamento celebrado por um ator em peça teatral. 586 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o anulável, é preciso que ele tenha entrado, embora com máculas, no plano da validade, isto é, que tenha entrado no mundo jurídico para surtir efeitos manifestados como queridos pela parte171. Poder-se-á, então, ponderar que um certo negócio jurídico será nulo se estivermos ante um ato que tenha a aparência e a realidade equivalente ao conceito de determinado tipo negocial. Deve ter só a aparência, porque, na verdade, está eivado de vícios tão graves que a ordem jurídica o ataca de modo a impossibilitá-lo de produzir quaisquer efeitos almejados172. Mesmo sendo nulo ou anulável o negócio jurídico, é imprescindível a manifestação do Judiciário a esse respeito, porque a nulidade não opera ipso iure. A nulidade absoluta ou relativa só repercute se for decretada judicialmente; caso contrário surtirá efeitos aparentemente queridos pelas partes; assim o ato negocial praticado por um incapaz terá, muitas vezes, efeitos até que o órgão judicante declare sua invalidade. h.2. Efeitos da nulidade Tanto a nulidade como a anulabilidade objetivam tornar inoperante o negócio jurídico que contém defeito nulificador. O decreto judicial da nulidade, como já tivemos oportunidade de salientar, produz efeitos ex tunc, alcançando a declaração de vontade no momento da emissão, salvo no caso de casamento putativo, em atenção à boa-fé de uma ou ambas as partes. E a sentença que pronuncia a anulabilidade de um ato negocial produz efeitos ex nunc, respeitando as conseqüências geradas anteriormente. Como se vê, o pronunciamento da nulidade absoluta ou relativa requer que as partes voltem ao estado anterior173; não sendo isso possível por não mais existir a coisa ou por ser inviável a reconstituição da situação jurídica, o prejudicado será indenizado com o equivalente (CC, art. 182)174. Tanto a nulidade como a anulabilidade objetivam tornar inoperante o negócio jurídico que contém defeito nulificador. O decreto judicial da nulidade produz efei171. Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico, existência, validade e eficácia, p. 74; Manuel Albaladejo, El negocio jurídico, p. 400 e s. Sobre nulidade vide Kelsen, Teoria pura do direito (2. ed., 1962, v. 2, p. 142-62), onde esclarece a necessidade da declaração judicial da nulidade e que dentro da ordem jurídica a nulidade é apenas o grau mais alto da anulabilidade. 172. Manuel Augusto Domingues de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, v. 2, p. 414. 173. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 555 e 556. 174. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 554. 587 tos ex tunc, alcançando a declaração de vontade no momento da emissão, salvo no caso de casamento putativo, em atenção à boa-fé de uma ou ambas as partes. E a sentença que pronuncia a anulabilidade de um ato negocial produz efeitos ex nunc, respeitando as conseqüências geradas anteriormente. Com a invalidação do ato negocial, ter-se-á, quanto ao objeto, a restituição das partes contratantes ao statu quo ante, ou seja, ao estado em que se encontravam antes da efetivação do negócio. Como se vê, o pronunciamento da nulidade absoluta ou relativa requer, ainda, que as partes, no que atina à prestação, retomem ao estado anterior, como se o ato nunca tivesse ocorrido, visto que, com a sua invalidação, desaparece do mundo jurídico, não mais podendo produzir efeitos. Por exemplo, com a nulidade de uma escritura de compra e venda, o comprador devolve o imóvel, e o vendedor, o preço. Se for impossível que os contratantes voltem ao estado em que se achavam antes da efetivação negocial, por não mais existir a coisa (prestação de dar) ou por ser inviável a reconstituição da situação jurídica (prestação de fazer ou não fazer), o lesado será indenizado com o equivalente. A norma do art. 182 comporta as seguintes exceções: a) impossibilidade de reclamação do que se pagou a incapaz, se não se provar que reverteu em proveito dele a importância paga (CC, art. 181); e b) o possuidor de boa-fé poderá fruir das vantagens que lhe são inerentes, como no caso dos frutos percebidos e das benfeitorias que fizer (CC, arts. 1.214 e 1.219). Contudo, como vimos, essa retroatividade não é absoluta, pois não haverá reposição da situação ao statu quo ante, atendendo-se ao princípio da boa-fé e respeitando certas conseqüências, quando não houver dolo ou culpa. O possuidor de boa-fé, p. ex., poderá fruir das vantagens que lhe são inerentes, como no caso dos frutos percebidos e das benfeitorias que fizer, o mesmo ocorrendo com o herdeiro aparente (CC, art. 1.817 e parágrafo único). Tal força retroativa não alcança a hipótese do art. 181 do Código Civil, que protege o incapaz, ao prescrever: "Ninguém pode reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não provar que reverteu em proveito dele a importância paga"175. Se não houve malícia por parte do incapaz, ter-se-á a invalidação de seu ato, que será, então, nulo, se sua incapacidade for absoluta, ou anulável, se relativa for, sendo que, neste úlT e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 175. Serpa Lopes, op. cit., v. 1, p. 514; Raquel Campani Schmiedel, Negócio jurídico — nulidades e medidas sanatórios, São Paulo, 1985. Vide CC, art. 2.035, parágrafo único, que traça norma de direito intertemporal relativa à validade dos atos e negócios jurídicos constituídos antes da vigência do novo Código Civil. 588 timo caso, competirá ao incapaz, e não àquele que com ele contratou, pleitear a anulabilidade do negócio efetivado. Se a incapacidade for absoluta, qualquer interessado poderá pedir a nulidade do ato negocial, e até mesmo o magistrado poderá pronunciá-la de ofício. O absoluta ou relativamente incapaz não terá o dever de restituir o que recebeu em razão do ato negocial contraído e declarado inválido, a não ser que o outro contratante prove que o pagamento feito reverteu em proveito do incapaz. A parte contrária, para obter a devolução do quantum pago ao menor, deverá demonstrar que o incapaz veio a enriquecer com o pagamento que lhe foi feito em virtude do ato negocial invalidado. A estes efeitos R. Limongi França176 acrescenta os seguintes: os efeitos da anulabilidade de um certo negócio só aproveitam a parte que a alegou, com exceção de indivisibilidade ou solidariedade (CC, arts. 314 e s. e 265 e s.); na nulidade, a inoperância do instrumento não implica a do ato, se este se puder provar por outros modos (CC, arts. 183, 108 e 109), p. ex., se o instrumento do mútuo for inválido, o contrato será válido se puder ser provado por meio de testemunhas. Se, porém, o instrumento for essencial à constituição e à prova do ato negocial, com a sua nulidade ter-se-á a do negócio. Por exemplo, se inválido for o instrumento que constituir uma hipoteca, inválida será esta, uma vez que não poderá subsistir sem o referido instrumento, nem por outra maneira ser provada; a nulidade parcial, respeitada a intenção das partes, não atinge, devido ao princípio utile per imitile non vitiatur, a parte válida do ato se esta puder subsistir autonomamente (CC, art. 184, 1- parte; RT, 528:110); a nulidade da obrigação principal implica a da acessória (p. ex., a nulidade da locação acarretará a da fiança devido ao princípio de que o accessorium sequitur suum principale), mas a da acessória não induz àquela (CC, art. 184, 2a parte; RT, 468:179); p. ex., se numa locação for anulada a fiança, o pacto locatício subsistirá. C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 176. R. Limongi França, Manual de direito civil, v. 1, p. 273; Criscuoli, La nullità parziale dei negozio giuridico, Milano, 1959. Pondera Fábio Ulhoa Coelho (Curso, cit., v. 1, p. 348): "Se o negócio jurídico for apenas parcialmente nulo ou anulável, mas puder ser desmembrado em parte válida e parte não válida, esta não compromete aquela, a menos que o contrário tenha sido a intenção das partes". P. ex., se um pródigo ceder quotas de uma sociedade empresária, sem estar devidamente representado pelo curador, e se obrigar, nesse ato negocial, a prestar serviços de assessoria ao adquirente, ter-se-á cessão de quotas anulável e uma prestação de serviços válida (CC, art. 1.782). Anular-seá apenas a cessão da participação societária. Mas se os negócios forem insuscetíveis de desmembramento, a invalidade parcial comprometê-los-á por inteiro. 589 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l h.3. Distinções entre nulidade e anulabilidade A nulidade absoluta e a relativa apresentam caracteres inconfundíveis177. 1) A nulidade absoluta é decretada no interesse de toda a coletividade, tendo alcance geral e eficácia erga omnes; a relativa é pronunciada em atenção ao interesse do prejudicado ou de um grupo de pessoas, restringindo seus efeitos aos que a alegaram (CC, arts. 168, parágrafo único, e 177). 2) A nulidade pode ser arguida por qualquer interessado, pelo Ministério Público, quando lhe caiba intervir, e pelo magistrado de ofício independentemente de alegação da parte, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e a encontrar provada (CC, art. 168, parágrafo único; RT, 466:73, 505:66), se tiver, p. ex., em mãos qualquer documento que evidencie falta de elemento essencial; a anulabilidade só pode ser alegada pelos prejudicados com o negócio ou por seus representantes legítimos, não podendo ser decretada ex officio pelo juiz. A anulabilidade de certo negócio só aproveitará à parte que a alegou, com exceção de indivisibilidade ou solidariedade (CC, arts. 257 a 285), pois se a obrigação for indivisível ou soli177. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 277-81; Raquel C. Schmiedel, Negócio jurídico — nulidades e medidas sanatórios, 1985; Clito Fornaciari Júnior, Nulidade de ato jurídico: legitimidade ad causam, inépcia da inicial e sanação de vícios, RT, 621:40; Luiz Roldão de Freitas Gomes, Invalidade dos atos jurídicos, Ciência Jurídica, 11:20; Manoel Augusto Vieira Neto, Ineficácia e convalidação do ato jurídico, Max Limonad, s/d; José Joaquim Calmon de Passos, Esboço de uma teoria das nulidades, RP, 56:7; Zeno Veloso, Negócios nulos e anuláveis — efeitos da sentença, RDC, 72:110; Francisco Pereira de Bulhões Carvalho, Sistemas de nulidades dos atos jurídicos, 1981; Serpa Lopes, op. cit., p. 508, 509, 518 e 519; Grasso, La pronuncia d'ufpcio, v. 1, p. 320; Massimo Bianca, Diritto civile, II contratto — v. III, p. 590; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 549 e 551; Orlando Gomes, op. cit., p. 436 e 437; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 318-23; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 249-55; Venosa, op. cit., p. 424-5; Barassi, Teoria delia ratifica dei contratto anmdlabile, Milano, 1898. Marcos Bemardes de. Mello (Teoria do fato jurídico, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 72 e nota 99) esclarece que "a desjuridicização do ato nulo e do ato anulável decorre de sua constituição em razão de sentença judicial ou por ato extrajudicial em que se reconheça defeito invalidante". Consulte, ainda, Rui Alarcão, que (A confirmação dos negócios anuláveis, Coimbra, 1971, v. 1, p. 118) esclarece: ratificação atua no plano da eficácia. É o ato pelo qual, na representação sem poderes ou com abuso no exercício, a pessoa em nome de quem o negócio é concluído declara aprovar tal negócio, que de outro modo seria ineficaz em relação a ela. A confirmação atua no ângulo da validade, afastando a anulabilidade do ato. Raquel Campani Schmiedel (Negócio jurídico — nulidades e medidas sanatórios, São Paulo, Saraiva, 1981) ensina-nos que as medidas sanatórios podem ser: involuntárias, se decorrentes de lei, p. ex., a prescrição ou convalidação do ato anulável pelo decurso do tempo; ou voluntárias, se oriundas da vontade das partes como confirmação, redução e conversão substancial. 590 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o dária, ante a pluralidade de credores ou devedores, a anulação negocial, pleiteada por um deles, atingirá a todos (CC, art. 177). 3) A nulidade absoluta, por ser de ordem pública, não pode ser suprida pelo juiz, ainda que a requerimento dos interessados (CC, art. 168, parágrafo único, in fine), sendo insuscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo (CC, art. 169). Se as partes tiverem interesse em manter o ato negocial nulo, deverão renová-lo, celebrando-o novamente; tal renovação do ato nulo operará efeito ex nunc. É preciso ressaltar que o Código Civil, no art. 170, ante o princípio da preservação ou da conservação negocial, pretendendo aproveitar o negócio jurídico sempre que possível, admite a conversão do ato negocial nulo em outro de natureza diferente, ao estatuir: "Se o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade". Com isso, positivada está a afirmação de Voss, de que: "O nulo é como uma criança que nasceu viva sem poder, em situação normal, viver; não é como a criança que veio à luz já morta. Por isso mesmo, ê possível pensar-se em que viva, em outra situação, artificial ou excepcional". A conversão acarreta uma nova qualificação do ato, requerendo, na sua aferição, prudência objetiva e bom-senso do magistrado, para que não seja uma "arma" conducente à burla ou fraude à lei. Refere-se à hipótese em que o negócio nulo não pode prevalecer na forma pretendida pelas partes, mas, como seus elementos são idôneos para caracterizar outro, pode ser transformado em outro de natureza diversa, desde que isso não seja proibido, taxativamente, como sucede nos casos de testamento. O novo Código Civil procurou resolver a questão da omissão legal relativa ao instituto da conversão do contrato nulo que gerou sérios problemas doutrinários e jurisprudenciais, ante os princípios da inalterabilidade contratual, da autonomia da vontade e da boa-fé das partes contratantes, pelos quais cada um dos contraentes deveria permanecer vinculado aos efeitos decorrentes do contrato estipulado que, por ser nulo, seriam atingidos com um outro contrato. Assim, pela conversão, atendendo-se ao princípio da conservação do negócio jurídico, o contrato nulo poderá produzir os efeitos de um contrato diverso. Com isso não se estará vinculando a vontade das partes, nem presumindo que elas pretendem outro negócio contratual, mas tão somente oferecer-lhes a possibilidade de atingir a finalidade perseguida. R ex.: poder-se-á ter a transformação de um contrato de compra e venda, nulo por defeito de forma, num compromisso de compra e 591 venda; da aceitação intempestiva em oferta; da novação de uma obrigação numa remissão dos efeitos da mora; da nota promissória, nula por falta de requisito formal, numa confissão de dívida; da cessão de crédito intransferível, numa procuração; da doação de bem inalienável, num usufruto etc. O negócio nulo transformar-se-á em outro de natureza diferente. Há uma conversão material ou substancial, ou seja, mantém-se, na medida do possível, o conteúdo ou formalidade intrínseca, valendo o negócio na forma extrínseca. Será preciso ressaltar que o contrato nulo só poderá produzir conseqüências jurídicas de um contrato diferente, se se fizerem presentes os seguintes requisitos: a) Ineficácia da declaração volitiva dos contratantes. b) Presença, nesta manifestação de vontade, dos elementos formais, ou substanciais, exigidos para outro contrato de tipo diverso ou da mesma espécie do pretendido, desde que contenha conteúdo diferente. O contrato primitivo deverá ter, portanto, a mesma forma do definitivo, c) Pressuposição da vontade hipotética de ambos os contratantes, dirigida à conclusão desse contrato diverso, presumindo-se, ante os fins colimados, que assim deliberariam, se tivessem tido conhecimento da ineficácia ou nulidade do contrato efetivado. Logo, para haver conversão, será necessário que os contraentes queiram o outro contrato, se souberem da nulidade do que celebraram. Para José Abreu Mello, imprescindíveis serão os seguintes requisitos: identidade de substância e de forma entre o negócio nulo e o convertido; identidade de objeto num e noutro e adequação do negócio substitutivo à vontade hipotética das partes. E só é possível quando não vedada pela lei e pela natureza da formalidade extrínseca, como se dá no caso de testamento, pois se nulo for por não atender a alguma solenidade exigida pela norma vigente à época da facção testamentária, impossível será sua conversão formal, se a lei em vigor ao tempo da abertura da sucessão não mais contemplar ou simplificar o requisito formal extrínseco, que o invalidou. Aqueles requisitos constituem uma limitação à esfera de aplicação do instituto da conversão contratual. Assim sendo, ter-se-á conversão própria apenas se se verificar que os contratantes teriam pretendido a celebração de outro contrato, se tivessem ciência da nulidade do que realizaram. P. ex., poder-se-á ter a transformação de um contrato de compra e venda, nulo por defeito de forma, num compromisso de compra e venda ou a de uma doação de coisa inalienável em constituição de usufruto. A conversão estará, então, subordinada não só a um elemento subjetivo, ou seja, à intenção das partes de dar vida a um contrato diverso, na hipótese de nulidade do contrato, que foi por elas estipuT e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 592 lado, mas também formal, por ser imprescindível que, no contrato nulo, tenha havido observância dos requisitos de substância e de forma do contrato em que poderá ser transformado, para produzir efeitos. Alertam Jones Figueiredo Alves e Mário Luiz Delgado que "a conversão pode ser postulada tanto pelas partes do negócio como por terceiro afetado pelos efeitos do negócio jurídico, descabendo a sua decretação ex officio pelo juiz". Não haverá conversão própria de contrato nulo se: a) A lei conferir a uma declaração volitiva os efeitos próprios de contrato diverso, independentemente de qualquer consideração da vontade hipotética das partes, caso em que se terá a conversão legal. P. ex.: a aceitação não conforme à proposta eqüivale a uma nova proposta (CC, art. 431). V) A norma deixar ao particular uma escolha alternativa entre várias formas de manifestação da vontade para a elaboração de um negócio, e se a adotada for nula, mas apresentar os requisitos da forma menos rigorosa, ter-se-á conversão imprópria. P.ex.: o compromisso irretratável de compra e venda não se desnaturará se, ao invés de instrumento particular, for feito por escritura pública eivada de vício. Ter-se-á conversão imprópria se as partes, podendo optar entre várias formas de celebração contratual, escolhem a mais rigorosa, que, no entanto, foi cumprida, defeituosamente. P. ex.: se num contrato, que possa ser feito por escritura pública ou por instrumento particular, os contratantes optarem pela escritura pública, que, todavia, vem a apresentar algum vício, o contrato será válido como se tivesse sido feito por instrumento particular, pois os efeitos não são diversos, mas os mesmos pretendidos pelas partes. Na verdade, haverá validade do contrato sob outra forma e não conversão propriamente dita, por não haver nenhuma transformação de contrato nulo em contrato válido de outra espécie, c) Os contratantes elaboram um contrato válido com falsa nomenclatura jurídica. Não haverá conversão alguma, uma vez que por meio de mera interpretação da vontade das partes o contrato assumirá o exato nomen juris, pois serão aplicadas as normas concernentes ao tipo contratual a que se ajustar, d) Os contraentes simularem a conclusão de certo contrato, quando pretendem, na realidade, outro, não haverá que se falar em conversão, pois bastará ressaltar o negócio efetivamente querido, e) As partes contratantes quiserem alternativamente dois contratos distintos, sendo um deles o principal, o outro vigoraria eventualmente, se houver nulidade do primeiro. Na lição de Antonio Junqueira de Azevedo, a conversão rege-se pelo princípio da conservação, que tem por parâmetro manter tudo que for possível no negócio, evitando que seja considerado nulo, convertendo-o em C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 593 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l outro de outra categoria (conversão substancial), operando-se uma nova qualificação categorial (RT, 328:587)178. A nulidade relativa pode convalescer, sendo suprida pelo magistrado a requerimento dos interessados ou confirmada, expressa ou tacitamente, pelas partes, salvo direito de terceiro (CC, art. 172). A confirmação é, portanto, segundo Serpa Lopes, o ato jurídico pelo qual uma pessoa faz desapare178. Manuel Augusto Domingues de Andrade, Teoria, cit., v. 2, p. 414. Sobre a conversão do contrato nulo: Código Civil italiano, art. 1.424; Voss, apud Pontes de Miranda, Tratado, cit., p. 103; Cian e Trabucchl, Comentário breve al codice civile, Padova, CEDAM, 1989, p. 1192-3; Orlando Gomes, Contratos, cit., p. 233-5; Los Mozos, La conversión dei negocio jurídico, Barcelona, Bosch, 1959; Mosco, La conversione dei negozio giurídico, Napoli, Jovene, 1947; M. H. Diniz, Tratado teórico e prático dos contratos, São Paulo, Saraiva, 1999, v. 1, p. 165 e 166; Alfredo Fedele, L'inefficacia dei contratto, Torino, Giappichelli, 1983; Messineo, Doctrina, cit., p. 443; Antonio Junqueira de Azevedo, Conversão dos negócios jurídicos, in RT, n. 468; Negócio jurídico, existência, validade e eficácia, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 78-9; João Alberto Schützer Del Nero, Conversão substancial do negócio jurídico, 2001; Teresa Luso Soares, A conversão do negócio jurídico, 1986; Giuseppe Gandolfi, La conversione dellatto invalido, Milano, Giuffrè, 1988, 2 v., e II principio di conversione dei contratto nullo: sviluppi piú o meno recenti in Europa, Revista Brasileira de Direito Comparado, 25:87 a 112; Giuseppe Satta, La converzione nei negozi giuridici, Milano, 1903; Humberto Theodoro Jr., Comentários, cit., v. III, t. 1, p. 544-46; José Abreu Mello, O negócio jurídico e sua teoria, São Paulo, Saraiva, 2000 (na página 295, assevera que não se poderá efetuar conversão se a nulidade for irremovível, como nos casos de ilicitude, imoralidade ou impossibilidade do objeto, e nos de negócio nulo por força de simulação); Anselmo Vaz, A conversão e a redução dos negócios jurídicos, Revista da Ordem dos Advogados, ano 5, n. 1-2, p. 1014 e s. (1945). Para Raquel C. Schmiedel (Negócio jurídico, nulidades e medidas sanatórios, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 75): "A conversão é um fenômeno de qualificação do negócio jurídico porque importa em valorá-lo ou em caracterizá-lo como tipo de negócio distinto daquele que foi efetivamente realizado pelas partes". E sobre confirmação do ato anulável: Roberto João Elias, Confirmação dos atos anuláveis, RDC, 37:47; Ana Maria C. Escandón, La ratiflcación, 2000, p. 175 e s.; Rui de Alarcão, A confirmação dos negócios anuláveis, 1971, v. 1; Humberto G. Gosálbez, La confirmación dei contrato anulable, 1977; Ludovico Barassi, Teoria delia ratifica dei contratto annullabile, 1898; Humberto Theodoro Jr., Comentários, cit., v. 3 ,1 .1, p. 544-6; Anselmo Vaz, A conversão e a redução dos negócios jurídicos, Revista da Ordem dos Advogados, ano 5, n. 1-2, p. 1014 e s., 1945; Luiz Roldão de Freitas Gomes, Invalidade dos atos jurídicos — nulidades — anulabilidades — conversão, Revista de Direito Civil, 53:10 e s.; Jones F. Alves e Mário L. Delgado, Código, cit., p. 110. Vide: BGB, § 140, pelo qual, presentes num negócio nulo os requisitos de outro, vale o último, se for de presumir-se que sua validade, à vista do conhecimento da nulidade, teria sido querida; Código Civil português, art. 293, Código Civil holandês, art. 42 (3.2.8) e Código Civil Italiano, art. 1.424. Sobre conversão de inventário em procedimento de herança jacente: STJ, 4â Turma, REsp 147.959-SP, rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Pelo Enunciado n. 13, aprovado na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, "o aspecto objetivo da conversão requer a existência do suporte fático no negócio a converter-se". 594 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o cer os vícios dos quais se encontra inquinada uma obrigação contra a qual era possível prover-se por via de nulidade ou de rescisão. Pelo Código Civil, art. 175, "a confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável, nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções, de que contra ele dispusesse o devedor". A confirmação expressa, ou a execução voluntária do negócio anulável, nos termos dos arts. 172 a 174, conduzirá ao entendimento de que houve extinção de todas as ações, ou exceções, que o devedor dispusesse contra o ato. Deveras, se o ato negocial é passível de anulação, o lesado poderá lançar mão de uma ação, mas se houve confirmação expressa ou tácita, subentende-se que houve extinção de qualquer providência que possa obter a decretação judicial da nulidade relativa. Isto porque a confirmação dará origem à desistência ou renúncia ao direito de anular negócio viciado. Com a confirmação não mais será possível anular o ato negocial viciado, pois a nulidade deixou de existir, ante a irrevogabilldade do ato confirmatório, que validou a obrigação em definitivo. Logo, o seu efeito é ex tunc, tomando válido o negócio desde a sua formação, resguardados os direitos de terceiros. Para tanto é necessário que o confirmante conceda a confirmação num momento em que haja cessado o vício que maculava o negócio e que o ato confirmativo não incorra em vício de nulidade. A confirmação expressa está regulada pelo art. 173 do Código Civil, que assim estatui: "O ato de confirmação deve conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa de mantê-lo". É preciso que se deixe patente a livre intenção de confirmar o negócio que se sabe ser anulável, devendo, para tanto, conter o contrato, que se pretende confirmar, indicando-o, de modo que não haja dúvida alguma. Não se poderá fazer uso de frases vagas ou imprecisas, pois a vontade de confirmar deverá constar de declarações explícitas e claras. Tal ato de confirmação deve observar a mesma forma prescrita para o contrato que se quer confirmar. Assim, se se for confirmar uma doação de imóvel, o ato de confirmação deverá constar de escritura pública, por ser esta da substância do ato. E a tácita pelo art. 174 do Código Civil, que prescreve: "É escusada a confirmação expressa quando o negócio já foi cumprido em parte pelo devedor, ciente do vício que o inquinava". Assim, se a obrigação já foi cumprida voluntariamente em parte pelo devedor, que conhecia o vício que a maculava, denota-se sua intenção de confirmá-la tacitamente. A confirmação tácita dar-se-á quando a obrigação negocial já tiver sido parcialmente cumprida pelo devedor conhecedor do vício que a maculava, tomando-a anulável. A vontade de confirmar está ínsita, pois, mesmo sabendo do vício, o confirmador não se importou com ele, J 595 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l e teve a intenção de confiimá-lo e de reparar a mácula. Para que se configure a confirmação tácita será mister que haja: à) voluntária execução parcial do negócio; b) conhecimento do vício que o toma anulável; e c) intenção de confirmá-lo. A prova da confirmação tácita competirá a quem a arguir. 4) A nulidade, em regra, não prescreve (RT, 505:66); as exceções se dão quando expressamente estabelecido pela lei (CC, arts. 1.548, 1.549) ou quando o negócio jurídico for de fundo patrimonial ou pessoal (RT, 459:196; 429:96; 417:161 e 466:93), caso em que o prazo prescritivo será de 10 anos, se a lei não estipular prazo menor, por força do art. 205 do Código Civil (RT, 432:81; 433:93), sendo a anulabilidade arguida em prazos prescritivos mais ou menos exíguos ou em prazos decadenciais (CC, arts. 178 e 179). O prazo de decadência é de quatro anos para pleitear anulação de negócio jurídico, contado no caso de: a) doação do dia em que ela cessar; b) erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que o negócio se realizou; c) atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade (CC, art. 178). Se a lei prescrever anulabilidade de negócio, sem estabelecer prazo para pleiteá-la (p. ex., arts. 117, 496, 533, II, 1.247 e 1.903), este será de dois anos, contado da data da conclusão do ato negocial (CC, art. 179). Tal dies a quo deste prazo de dois anos é, portanto, o da conclusão do negócio, para os partícipes dele. Observam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria A. Nery, ao comentarem o art. 179, que "em se tratando de terceiro, conta-se o prazo do dia em que o terceiro tomou conhecimento da existência do ato anulando. Caso o ato esteja registrado no registro público (...) presume-se que é conhecido desde o dia do registro, data em que se inicia o prazo decadencial para terceiros". Q uadro S in ó t ic o NULIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO NULIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO r .. É a sanção imposta pela norma jurídica que determina a privação dos efeitos juoncel 0 rídicos do negócio praticado em desobediência ao que prescreve. Nulidade absoluta (CC, art. 166, I a VII) — com sua declaração o negócio não produz qualquer efeito por ofender gravemente princípios de ordem pública, operando ex tunc. São nulos os atos que: não tiverem qualquer elemento essencial; apresentarem objeto ilícito ou impossível; não revestirem a forma prescrita em lei; preterirem alguma solenidade imprescindível para sua validade; forem praticados com infração à lei, aos bons costumes; a lei taxativamente declarar nulos ou proibir sua prática, sem cominar sanção de outra natureza; e forem simulaClassificação dos (CC, arts. 1.428, 1.548, 1.549, 1.900, I a V, 489, 548, 549 e 167). Nulidade relativa — refere-se a negócios inquinados de vício capaz de lhes determinar a ineficácia, mas que poderá ser eliminado, restabelecendo-se a sua normalidade. Logo, a declaração judicial de sua ineficácia opera ex nunc (CC, arts. 171, I e II; 180 a 182). Serão anuláveis os atos: praticados por pessoa relativamente incapaz sem a devida assistência de seus legítimos representantes, com exceção dos casos do art. 180 do CC; viciados por erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão e fraude; e quando a lei assim os declarar (CC, arts. 138 a 165). Declaração judicial da nulidade absoluta opera ex tunc e da relativa, ex nunc. Declaração da nulidade absoluta e relativa requer a reposição da situação ao estado anterior (CC, art. 182), salvo a hipótese do art. 181. Os efeitos da anulabilidade só aproveitam a parte que a alegou, com exceção da indivisibilidade e solidariedade. Efeitos Na relativa a inoperância do instrumento não implica a do ato, se este se puder provar por outros modos. Nulidade parcial não atinge a parte válida do ato se esta puder subsistir autonomamente (CC, art. 1 8 4 ,1a parte). Nulidade da obrigação principal implica a da acessória, mas a da acessória não induz àquela (CC, art. 184, 2- parte). Distinção entre nulidade absoluta e relativa A absoluta é decretada no interesse da coletividade, tendo eficácia erga omnes; a relativa, no interesse do prejudicado, abrangendo apenas as pessoas que alegaram (CC, art. 183, 2a alínea). A nulidade pode ser arguida por qualquer interessado, pelo Ministério Público e pelo magistrado de ofício (CC, art. 168, parágrafo único), e a anulabilidade só poderá ser alegada pelos prejudicados ou representantes legítimos, não podendo ser decretada ex officio pelo juiz (CC, art. 177). A absoluta não pode ser suprida pelo juiz, nem confirmada (CC, art. 168, parágrafo único); a relativa pode ser suprida pelo magistrado e confirmada (CC, arts. 172 a 175). A nulidade, em regra, não prescreve, e a anulabilidade é suscetível de ser arguida em prazos prescricionais e decadenciais mais ou menos exíguos. Ato ilícito A. C o n c e i t o e e l e m e n t o s d o a t o i l í c i t o O ato ilícito (CC, art. 186) é praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando direito subjetivo individual. Causa dano a outrem, criando o dever de reparar tal prejuízo (CC, arts. 927 e 944) seja ele moral ou patrimonial (Súmula 37 do STJ). Logo, produz efeito jurídico, só que este não é desejado pelo agente, mas imposto pela lei179. É mister esclarecer que tanto o ilícito civil como o criminal têm o mesmo fundamento ético: a infração de um dever preexistente e a imputação do resultado à consciência do agente180. Só que o delito penal consiste na 179. Orlando Gomes (op. dt., p. 443) esclarece que não se deve confundir o ato ilídto com o negócio ilídto, pois este último não é reprimido com a sanção legal do ressarcimento, mas com a ineficáda. É ilídto o negódo quando sua causa ou seu motivo determinante não forem conformes ao direito, ou quando o objeto e o comportamento das partes não forem idôneos. A causa é ilídta quando contrária aos bons costumes. P. ex.: o contrato em que uma das partes recebe dinheiro para não cometer um crime. Se o motivo determinante do negódo for ilídto, como no caso de empréstimo para jogo, o contrato será ilídto, se comum às partes. O negódo é também ilícito quando tem objeto inidôneo, com a venda de coisa proibida. Ilícito é, do mesmo modo, subjetivamente, se o sujeito está proibido de praticá-lo, como na compra, pelo tutor, de bem do pupilo. Pela Súmula 251 do STJ: "a meação só responde pelo ato ilícito quando o credor, na execução fiscal, provar que o enriquecimento dele resultante aproveitou ao casal". Vide, ainda, Santoro-Passarelli, Dottrina generale dei diritto civile, p. 186. VideRST], 104:326 e 106:243-, RT, 721:106, 720:268, 718:209, 706:99, 697:169, 667:199, 661:96, 654:171. 180. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 565; Sebastião José Roque, Teoria geral do direito civil, dt., p. 167-71; P. Stolze Gagliano e R. Pamplona Fa, Novo curso, dt., v. 1, p. 461- 72; Francisco Amaral, Os atos ilícitos, O novo Código, cit., p. 147-63; Carlos Young 599 ofensa à sociedade pela violação de norma imprescindível à sua existência, e o civil, num atentado contra o interesse privado de alguém. Todavia, há casos em que o ato ofende, concomitantemente, a sociedade e o particular, acarretando dupla responsabilidade, a penal e a civil. P. ex.: o delito de lesões corporais (CC, art. 949, e CP, art. 129)181. São elementos indispensáveis à configuração do ato ilícito: l 2) Fato lesivo voluntário, ou imputável, causado pelo agente por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência (CC, art. 186, I a parte). Para a caracterização do ato ilícito, é necessário que haja uma ação ou omissão voluntária, que viole um direito subjetivo individual, causando dano a oütrem, ainda que exclusivamente moral (CC, art. 186, 2a parte). É preciso, portanto, que o infrator tenha conhecimento da ilicitude de seu ato, agindo com dolo, se intencionalmente procura lesar outrem, ou culpa, se, consciente dos prejuízos que advêm de seu ato, assume o risco de provocar o evento danoso. Assim, a ação contrária ao direito praticada sem que o agente saiba que é ilícita não é ato ilícito, embora seja antijurídico. P. ex.: se alguém se apossa de um objeto pertencente a outrem, na crença de que é seu; se A não paga o que deve a C porque, por equívoco, considera cancelada sua dívida182. A culpa em sentido amplo, como violação de um dever jurídico, imputável a alguém, em decorrência de fato intencional ou de omissão de diligência e cautela, compreende: o dolo, que é a violação intencional do dever jurídico, e a culpa, em sentido estrito, caracterizada pela imperícia, imprudência ou negligência, sem qualquer deliberação de violar um dever183. Pode ser a culpa classificada: a) Em função da natureza do dever violado T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l Tolomei, A noção de ato ilícito e a teoria do risco na perspectiva do novo Código Civil, A parte geral, cit., p. 345-65; Regelsberger (Pandékten, Leipzig, 1893, § 129) acentuava: "die unerlaubten Handlungen sindjuristische, weil sie Rechtsfolgen haben" (os atos ilícitos são jurídicos porque produzem efeitos jurídicos). 181. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 286; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 565 e 566; RT, 482:190; 468:198; 464:262; 456:208 e 466:67. 182. Orlando Gomes, op. cit., p. 443 e 444; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 341. 183. Yussef Said Cahali, Culpa (Dir. civil), in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 22, p. 24; Cf, 62:95. 600 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o Se tal dever se fundar num contrato (CC, art. 389), tem-se a culpa contratual, p. ex., se o locatário que deve servir-se da coisa alugada para os usos convencionados não cumprir essa obrigação; e se oriundo do preceito geral de direito, que manda sejam respeitadas a pessoa e os bens alheios, a culpa é extracontratual ou aquiliana (CC, arts. 186 e 927), p. ex., o proprietário de um automóvel que, imprudentemente, o empresta a um sobrinho menor, sem carta de habilitação, que ocasiona um acidente (RT, 443:143)184, Quem pedir indenização pela culpa contratual não precisa prová-la, basta constituir o devedor em mora; se, contudo, pretender indenização pela culpa aquiliana, é necessário prová-la, sem constituir o devedor em mora, uma vez que está em mora de pleno direito o autor de um delito18s. b) Quanto à sua graduação A culpa será grave quando, dolosamente, houver negligência extrema do agente, não prevendo aquilo que é previsível ao comum dos homens. A leve (CC, art. 629) ocorrerá quando a lesão de direito seria apenas evitável com atenção ordinária, ou adoção de diligências próprias de um bonus pater famílias. Será levíssima (CC, arts. 243 a 246) se a falta for evitável por uma atenção extraordinária, ou especial habilidade e conhecimento singular. A esse respeito vide o Código Civil, art. 392186. c) Em relação aos modos de sua apreciação Considera-se in concreto a culpa quando, no caso sub judice, se atém ao exame da imprudência ou negligência do agente, e in abstrato, quando se faz uma análise comparativa da conduta do agente com a do homem normal, ou seja, do diligens pater famílias dos romanos. Em nosso direito, segundo Agostinho Alvim, a culpa é, em regra, apreciada abstratamente, pois nosso Código Civil, ao dizer nos arts. 582 e 629 que sua apreciação é in concreto, não visa propriamente apreciá-la concretamente, mas sim encarecer a responsabilidade do agente187. 184. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 287 e 288. Sobre a culpa aquiliana, vide RT, 372:323; 440:74; 438:109; 440:95. 185. Yussef S. Cahali, Culpa, cit., v. 22, p. 26; RT, 477:111; 470:241. 186. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 288; Yussef S. Cahali, Culpa, cit., v. 22, p. 25; Lomonaco, Istituzioni di diritto civile italiano, v. 5, p. 179; Silvio Rodrigues, Direito civil, dt., v. 1, p. 342 e 343." 187. Silvio Rodrigues, Direito civil, dt., v. 1, p. 343; Yussef S. Cahali, Culpa, dt., v. 22, p. 27; W. Barros Monteiro, op. dt., v. 1, p. 289; Agostinho Alvim, Da inexecução das obrigações e suas conseqüências, 3. ed., São Paulo, Ed. Jurídica Universitária, 1965, p. 201, n. 152. 601 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l ã) Quanto ao conteúdo da conduta culposa Se o agente praticar um ato positivo (imprudência) sua culpa é in committendo; se cometer uma abstenção (negligência) tem-se culpa in omittendo. A culpa in eligendo advém da má escolha daquele a quem se confia a prática de um ato ou o adimplemento da obrigação. A in vigilando (CC, art. 932, IV) decorre da falta de atenção com o procedimento de outrem, por cujo ato ilícito o responsável deve pagar, p. ex., ausência de fiscalização do dono do hotel, quer relativamente aos seus hóspedes (RT, 477:107), quer à coisa. Pelo art. 933 do Código Civil, as pessoas indicadas no art. 9 3 2 ,1 a V, mesmo que não tenham culpa, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos, mas poderão, se o causador do dano não for descendente seu ou absoluta ou relativamente incapaz, reaver dele o que pagou. Isto é assim porque, por força do art. 942, parágrafo único, do Código Civil, são solidariamente responsáveis com o autor do dano. Têm obrigação de reparar o dano independentemente de culpa por força do art. 933, e quando a atividade lícita desenvolvida implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (CC, art. 927, parágrafo único). Hipótese em que a responsabilidade civil será objetiva e não subjetiva, embora alguns autores entendam que a responsabilidade é subjetiva, em razão de presunção absoluta jures et de jure de culpa. É, por exemplo, o caso de empresa de transportes que permite a saída de ônibus sem freios, originando acidentes, devendo responder pelos danos causados (CC, arts. 734 e 927, parágrafo único). Culpa in custodiendo é a falta de cautela ou atenção em relação a um animal (CC, art. 936) ou objeto (CC, arts. 938, 937 e 931), sob os cuidados do agente188. 2°) Ocorrência de um dano. Para que haja pagamento da indenização pleiteada, além da prova da culpa ou do dolo do agente, é necessário comprovar a ocorrência de um dano patrimonial ou moral (RT, 436:97, 433:88, 368:181, 458:20, 434:101)189, fundado não na índole dos direitos subjetivos 188. Yussef S. Cáhali, Culpa, dt., v. 22, p. 28; W. Baixos Monteiro, op. dt., v. 1, p. 288 e 289; Caio M. S. Pereira, op. dt., v. 1, p. 569; RT, 494:35. 189. Bassil Dower, op. dt., v. 1, p. 264; Orlando Gomes, op. dt., p. 446. Tratam do dano moral: Código Civil português, art. 496, n. 2; Código Civil da Etiópia, art. 2.116, n. 3, que estabelece: "Vindemnité alluée in réparation du âommage moral nepeuten aucun cas être supérieure à mille dollars éthiopiens"; o nosso Código de Telecomunicações (Lei n. 4.117/62), arts. 81, 84, 87, com as alterações do Decreto-lei n. 236/67; RF, 221:200; RTJ, 39:38 e 41:844; Jurisprudência do STF, 2:716; 2:544; 3:1043. Sobre o dano moral: Wilson Melo da Silva, O dano moral e sua reparação, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1966; Aldno de Paula Salazar, Reparação do dano moral, Rio de Janeiro, 1943; Artur Oscar Oliveira Deda, Dano moral, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 22, p. 279-92; M. Helena Diniz, Curso, cit., v. 7, p. 102 e s. 602 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o afetados, mas nos efeitos da lesão jurídica. De modo que quando a vítima reclama a reparação pecuniária em virtude de dano moral que recai sobre a honra, nome profissional e família, não pede um preço para sua dor, mas apenas que se lhe outorgue um meio de atenuar, em parte, as conseqüências do prejuízo. Na reparação do dano moral, o dinheiro não desempenha a função de equivalência, como no dano material, porém, concomitantemente, a função satisfatória e a de pena190. O dano patrimonial compreende o dano emergente e o lucro cessante, ou seja, a efetiva diminuição no patrimônio da vítima e o que ela deixou de ganhar191. "Se o dano material e o moral decorrerem do mesmo fato serão cumuláveis as indenizações" (STJ, Súmula 37; no mesmo sentido: Ciência Jurídica, 63:107, 55:161; Boi. AASP, 1.925:118; 1.869:121; 1.865:109; RT, 613:184; RJE, 2:184). Não pode haver responsabilidade civil sem a existência de um dano a um bem jurídico, sendo necessária a prova real e concreta dessa lesão. P. ex.: se houver um abalroamento de veículos, a vítima deverá provar a culpa do agente e apresentar as notas fiscais idôneas do conserto, não havendo necessidade de vistoria prévia (RT, 481:88; 425:188). Admite-se que o proprietário de veículo abalroado promova desde logo os reparos e venha posteriormente cobrar os gastos feitos, provando-os por meio de orçamentos prévios (RT, 478:92). Provado que o autor não teve condições para consertar seu veículo, obrigando-se a vender o seu instrumento de trabalho, impõe, à custa do réu, causador do fato, a condenação em lucros cessantes (RT, 470:241). O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu que o pagamento da indenização decorrente do seguro obrigatório dispensa a apuração da culpa, mas exige a prova do dano (RT, 469:236; 455:237; 478:161 e 477:79)192. Improcede, portanto, pedido de perdas e danos quando não provado o prejuízo em decorrência do ato ilícito (RT, 457:189). Pelo art. 944 do Códigó Civil, a indenização mede-se pela extensão do dano. Todavia, já se decidiu que: "A indenização não surge somente nos casos de prejuízos, mas também pela violação de um direito". 190. Vide Artur O. Deda, op. cit., p. 292. "O dano moral, assim compreendido todo o dano extrapatrimonial, não se caracteriza quando há mero aborrecimento inerente a prejuízo material" (Enunciado n. 159 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III jornada de Direito Civil). 191. Orlando Gomes, op. cit., p. 446; RT, 490:94; 507:201; 509:69. 192. Bassil Dower, op. cit., p. 264 e 265; RT, 224:186; 398:181; 471:91; 469:226; 443:123; 481:82. 603 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l 3a) Nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente. A responsabilidade civil não pode existir sem a relação de causalidade entre o dano e a conduta ilícita do agente (RT, 224:155; 466:68; 477:247 e 463:244). Não há esse nexo se o evento se deu: por culpa exclusiva da vítima, caso em que se exclui qualquer responsabilidade por culpa concorrente da vítima (RT, 477:111; 481:211; 480:88; AJ, 107:604), hipótese em que a indenização é devida, por metade (RT, 226:181) ou diminuída proporcionalmente (RT, 231:513), em razão da culpa bilateral da vítima e do agente, e por força maior ou caso fortuito (CC, art. 393), cessando, então, a responsabilidade, porque esses fatos eliminam a culpabilidade ante a sua inevitabilidade (RT, 479:73; 469:84; 477:104)193. A obrigação de indenizar (CC, arts. 186 e 927) é a consequência jurídica do ato ilícito (CC, arts. 944 a 954). O Código Civil, ao prever as hipóteses de responsabilidade civil por atos ilícitos, consagrou a teoria objetiva em vários momentos, como, p. ex., nos arts. 927, parágrafo único, 929, 931, 933, 938, substituindo a culpa pela ideia de risco-proveito. Quando a responsabilidade é determinada sem culpa, o ato não pode ser considerado ilícito. Apesar dos progressos dessa teoria, a necessidade de culpa para haver responsabilidade, preconizada pela teoria subjetiva, continua a ser a regra geral194. É de ordem pública o princípio que obriga o autor do ato ilícito a se responsabilizar pelo prejuízo que causou, indenizando-o. Não obstante, admitem-se casos em que há responsabilidade por ato de terceiro, sendo que essa responsabilidade indireta se caracteriza mesmo que não haja prova da concorrência da culpa do responsável e do agente para o evento danoso. P. ex.: pouco importa a culpa do patrão, por ato de seu empregado, se o escolheu mal (culpa in eligendo) ou se não o vigiou de modo devido (culpa in vi193. Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 343-5; W. Barros Monteiro, op. d t, v. 1, p. 291 e 292; Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 580; M. Helena Diniz, Curso, cit., v. 7. 194. Orlando Gomes, op. cit., p. 446 e 447. A Súmula 562 do STF prescreve que "na indenização de danos materiais, decorrentes de ato ilícito, cabe a atualização de seu valor, utilizando-se, para esse fim, dentre outros critérios, dos índices de correção monetária". A Súmula 43 do STJ reza que "indde correção monetária sobre dívida por ato ilídto a partir da data do efetivo prejuízo". A Súmula 186 do STJ determina que "nas indenizações por ato ilícito, os juros compostos somente são devidos por aquele que praticou o crime". 604 C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o gilanão). Para que a vítima do dano causado pelo empregado possa incluir o empregador na lide, não terá que provar a culpa do agente direto do dano, nem a concorrência da culpa do patrão, que o escolheu mal ou não o vigiou. A jurisprudência, hodiemamente (RT, 238:26; Súmula 341 do STF), já entendeu que bastava a presunção da culpa do patrão, no prejuízo causado por ato de seu empregado, para que ele fosse responsabilizado pela sua indenização à vítima195. E o novo Código Civil, nos arts. 932, III, e 933, prescreve que o empregador responde, ainda que não haja culpa de sua parte, por ato lesivo praticado por seu empregado, contra o qual terá ação regressiva (CC, art. 934). Há casos excepcionais que não constituem atos ilícitos apesar de causarem lesões aos direitos de outrem. Há o dano, a relação de causalidade entre a ação do agente e o prejuízo causado a direito alheio. Mas o procedimento lesivo do agente, por motivo legítimo estabelecido em lei, não acarreta o dever de indenizar, porque a própria norma jurídica lhe retira a qualificação de ilícito196. Deveras, pelo Código Civil, art. 1 8 8 ,1 e II, não são atos ilícitos: a legítima defesa, o exercício regular de um direito e o estado de necessidade (CP, art. 23). A legítima defesa é considerada, portanto, como excludente de responsabilidade civil (CC, art. 188, I, I a parte; JTJSP, 2 7 0 :100; RT, 756:190, 808:224, 780:372) e criminal (CP, art. 25), se com o usò moderado de meios necessários alguém repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu 195. Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 348 e 349; CC, art. 206, § 32, V. 196. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 579; Matilde M. Zavala de González, Responsabilidad por el dano necesario, Buenos Aires, Astrea, 1985; Gabriel C. Z. de Inellas, Da exclusão da ilidtude, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2001; Gisela Sampaio da Cruz, As excludentes de ilicitude no Código Civil de 2002, A parte geral, cit., p. 387-415; Carlos Roberto Gonçalves, Comentários ao Código Civil, São Paulo, Saraiva, 2003, v. 11, p. 402-3; Venzon, Excessos na legítima defesa, Porto Alegre, Sérgio A. Fabris, Editor, 1989. Só a legítima defesa real tem o condão de excluir a responsabilidade do lesante, pois o lesado é um agressor injusto. Se o lesado for terceiro, por erro de pontaria (aberratio ictiis), o lesante deverá pagar a indenização, tendo direito de regresso contra o agressor injusto. A legítima defesa putativa não exclui a reparação do dano, visto haver ilicitude no ato de quem a praticou, apesar de não haver punição penal, em razão da ausência de culpa por haver erro de fato sobre a existência da situação da legítima defesa, que não está presente. Há uma pseudoagressão. 605 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l ou de outrem; legítimo será o prejuízo infligido ao agressor pelo agredido, não acarretando qualquer reparação por perdas e danos, sendo improcedente qualquer pedido de indenização formulado pelo prejudicado. Caberá ação regressiva, para haver a importância que se ressarciu ao lesado contra aquele em defesa de quem se causou o dano (CC, art. 930, parágrafo único). Consagrada está a legítima defesa no Código Civil, no art. 1.210, § l 2, que prescreve: "O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse". O exercido regular ou normal de um direito reconhecido (CC, art. 188, I, 2- parte) que lesar direitos alheios exclui qualquer responsabilidade pelo prejuízo, por não ser um procedimento prejudicial ao direito (RT, 563:230). Quem usa de um direito seu não causa dano a ninguém (qui iure suo utitur neminem laedif). P. ex.: o credor que penhora os bens do devedor, proprietário que ergue construção em seu terreno, prejudicando não intencionalmente a vista do vizinho197. Só haverá "ato ilícito" se houver abuso do direito ou seu exercício irregular ou anormal. Deveras reza o art. 187 do Código Civil: "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". No uso de um poder, direito ou coisa além do permitido ou extrapolando as limitações de um direito, lesando alguém, traz como efeito jurídico o dever de indenizar. Realmente, sob a aparência de um ato legal, ou lícito, esconde-se a "ilicitude" (ou melhor, antijuridicidade sui generis) no resultado, por atentado ao princípio da boa-fé e aos bons costumes e por desvio da finalidade socioeconômica para a qual o direito foi estabelecido. No ato abusivo há violação da finalidade econômica ou social. O abuso é excesso manifesto, ou seja, o direito é exercido de forma ostensivamente ofensiva à justiça. Para R. Limongi França, "o abuso de direito consiste em um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito". A ilicitude do ato praticado com abuso de direito possui, segundo alguns doutrinadores e dados jurisprudenciais, natureza objetiva, aferível, independentemente de culpa e dolo (RJTJRS, 28:373, 43:374, 47:345; RSTJ, 120:370, 140:396, 145:446; Súmula 409 do STF). Também entende o Enunciado n. 37 (aprovado na Jornada de Direito Civil, promovida, em setembro de 2002, pelo Centxo de Estudos Judiciários 197. W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 293. Vide CC, art. 100. 606 do Conselho da Justiça Federal) que: "a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-flnallstico". Trata-se, na verdade, de uma categoria suigeneris e autônoma de antijuridicidade. O ato abusivo é uma conduta lícita, mas desconforme ora à finalidade sodoeconômica pretendida pela norma, ao prescrever uma situação ou um direito, ora ao princípio da boa-fé objetiva, como diz Ripert. O abuso de direito para sua configuração requer uma valoração axiológica do exercício de um direito subjetivo (LINDB, art. 5a), tendo por base os valores contidos na Constituição Federal. Isto é assim por constituir uma limitação ao exercício daquele direito, e não uma forma de ato ilícito. O art. 187, ao definir o abuso de direito como ato ilícito, deve ser, como dizem Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, "interpretado como uma referência a uma ilicitude lato sensu, no sentido de contrariedade ao direito como um todo, e não como uma identificação entre a etiologia do ato ilícito e a do ato abusivo, que são claramente diversas". O Código Civil, art. 1.277, que reprime o uso anormal da propriedade, consigna um exemplo de abuso de direito (CC, arts. 186 e 187), pois permite ao proprietário ou inquilino impedir que a utilização do direito de propriedade pelo seu vizinho lhe danifique prédio, p. ex. (CPC, arts. 275, n, c, e 287). Assim, se alguém, p. ex., em sua propriedade produz ruído que excede à normalidade; usa cercas eletrificadas que possam causar morte; utiliza aparelho que interfere em TV ou rádio de vizinho; deposita lixo em terreno próximo a uma moradia, ter-se-á abuso do direito, que será reduzido às devidas proporções, por meio de ação judicial apropriada. Toda vez que houver excesso no exercício regular do direito, dá-se o abuso do direito (RT, 434:239; 445:229; 403:218; 494:225)198. Na verdade, parece-nos que caem na órbita do abuso de direito, C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o 198. Caio M. S. Pereira, op. cit., v. 1, p. 580-4; Bassil Dower, op. cit., v. 1, p. 277 e 278; W. Barros Monteiro, op. cit., v. 1, p. 296; Sílvio de S. Venosa, Direito civil, cit., v. 1, p. 492 a 499; Giulio Levl, Vàbuso dei diritto, 1993; José Calvo Sotelo, La doctrina dei abuso dei derecho, 1917; Sessarego, Abuso dei derecho, 1992; Campion, Uthéorie de l'abus des droits, 1925; Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do abuso de direito, 1999; Pedro Baptista Martins, O abuso do direito e o ato ilícito, 1997; Heloisa Carpena, Abuso de direito nos contratos de consumo, Rio de Janeiro, Renovar, 2001; Abuso do direito no Código de 2002 — relativização de direitos na ótica civil-constitucional, A parte geral, cit., p. 367; Fernando Cunha de Sá, Abuso do direito, Coimbra, Almedina, 1997; Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 7, p. 562-3; Código Civil anotado, São Paulo, Saraiva, 2005, comentários ao art. 187; Gustavo Tepedino e outros, Código, cit., v. 1, p. 342; Jorge Americano, Do abuso de direito no exercício da demanda, São Paulo, 1932; Virgílio Giorgianni, L'abuso dei diritto nella teoria delia norma giuridica, Milano, 1963; José Horácio Halfeld Rezen­ 607 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l ensejando responsabilidade civil: a) os atos emulativos ou ad emulationem (CC, art. 1.228, § 2°) que são os praticados, dolosamente pelo agente, no exercício normal de um direito, em regra, o de propriedade, isto é, com a firme intenção de causar dano a outrem e não de satisfazer uma necessidade ou interesse do seu titular. P. ex.: se um proprietário constrói em sua casa uma chaminé falsa com o único objetivo de retirar luz do seu vizinho. Embora o nosso Código Civil, no art. 1.299, permita ao proprietário levantar em seu terreno todas as obras que quiser e a construção da falsa chaminé não se enquadre nas restrições às relações de vizinhança dos arts. 1.301 e s., não há dúvida que o direito brasileiro não aprova os atos emulativos, visto que no art. 1.277 o Código Civil reprime o uso nocivo ou abusivo da propriedade ao proibir os atos do proprietário do imóvel que prejudiquem a segurança, o sossego ou a saúde do vizinho, ainda que esses atos venham atender algum interesse de quem os pratica. Esse artigo do Código Civil consigna um exemplo de abuso de Ribeiro, O abuso do direito e a justiça social. O Código Civil e sua interdisciplinaridade (coords. José Geraldo Brito Filomeno, Luiz Guilherme da C. Wagner Junior, Renato Afonso Gonçalves), Belo Horizonte, Del Rey, 2004, p. 347-69; Inácio de Carvalho Neto, Abuso do direito, Curitiba, Juruá, 2005; R. Limongi França, Instituições de direito civil, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 889; José de Oliveira Ascensão, A desconstrução do abuso do direito, Novo Código Civil — questões controvertidas, v. 4, São Paulo, Método, 2005; Milton Flávio de A. C. Lautenschãger, Abuso de direita, São Paulo, Atlas, 2007; Bruno Miragem, Abuso do direito: ilicitude objetiva no direito privado brasileiro, Doutrinas essenciais, cit., v. II, p. 433-80. ParaNestor Duarte (Código Civil comentado — coord. Peluso, Barueri, Manole, 2008, p. 139): "Em diversas outras passagens, o Código Civil coíbe o abuso de direito, a saber nos arts. 421, 422, 1,228, §§ Ia e 2a, e 1.648, bem como a legislação extravagante, a exemplo da hipótese de limitação ao direito de o inquilino purgar a mora nas ações de despejo por falta de pagamento (art. 62, parágrafo único da Lei n. 8.245/91). No campo do direito constitucional, várias são as condenações de conduta abusiva (arts. 14, §§ 9a e 10,173, § 4a, da CF). No âmbito do direito processual, o litigante que abusar das faculdades que lhe são concedidas responde por isso (arts. 14, parágrafo único, 17, 18 e 538, parágrafo único, do CPC). Não exige a lei o elemento subjetivo, ou a intenção de prejudicar, para a caracterização do abuso de direito, bastando que seja distorcido o seu exercício". Ninguém poderá ser responsabilizado civilmente pelo exercício regular do direito seu, enquanto se mantiver dentro da ordem jurídica, ainda que terceiro venha sofrer prejuízo sem ter sido parte na ação. Nenhuma reparação lhe deve o titular do direito. O interesse legítimo é sempre excludente de qualquer responsabilidade. De sorte que deve ser permitido a quem exerce um direito provar que teve interesse legítimo em proceder pela forma que procedeu. E se isso conseguir provar desaparece qualquer ideia de abuso de exercício de direito, ainda que a pessoa que o exerceu tivesse consciência de que ia prejudicar os interesses de outrem. O remédio jurídico adequado para quem não sendo parte na ação vê seus bens seqüestrados por ordem judicial são os embargos de terceiro previstos no art. 1.046 do Código de Processo Civil, e não a ação indenizatória contra o autor da ação que acarretou a constrição legal em seus bens (TJSC, ADCOAS, n. 84.906, 1982). C u r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o de direito, pois permite ao proprietário ou inquilino impedir a utilização do direito de propriedade pelo seu vizinho que lhe prejudique a segurança, o sossego ou a saúde. Assim, se alguém em sua propriedade produzir ruído que exceda a normalidade, ter-se-á abuso de direito, que será reduzido às devidas proporções, por meio de ação judicial apropriada. Além disso, observa Antunes Varela que nosso Código Civil, no art. 1.229, ao definir os limites materiais da propriedade imóvel, colocando o critério da utilidade real acima do princípio do poder ilimitado ou arbitrário, nega ao proprietário o direito de se opor a trabalhos que, pela altura ou profundidade a que são efetuados, ele não tenha interesse de impedir, contanto que, como é óbvio, tais trabalhos correspondam a um legítimo interesse de terceiro. Os atos praticados pelo proprietário, sem qualquer utilidade relevante para ele, com o escopo de danificar prédio contíguo, constituem indubitavelmente um exercício irregular do direito de propriedade. Igualmente, se o exequente, que tem o direito de penhorar bens do devedor impontual, para prejudicá-lo e forçá-lo a pagar dívida de existência duvidosa, impedir o devedor de ser nomeado depositário das máquinas penhoradas e exigir remoção destas, forçando o fechamento da indústria, deve reparar o dano (RT, 296:646), por ter sido movido por espírito de emulação agindo abusivamente. O art. 574 do Código de Processo Civil dispõe que o credor ressarcirá ao devedor os danos por este sofridos, quando a sentença, passada em julgado, declarar inexistente, no todo ou em parte, a obrigação que deu lugar à execução; b) os atos ofensivos aos bons costumes ou contrários à boa-fé, apesar de praticados no exercício normal de um direito, constituem abuso de direito (CC, art. 187). P. ex.: se o credor, após haver cedido seu crédito, tendo ciência de que o cessionário não notificou o devedor do fato, interpela este e obtém o pagamento do débito. Ora, o Código Civil, no art. 290, considera a cessão de crédito ineficaz em relação ao devedor enquanto a este não for notificada, logo, será requisito para a cessão a realização da notificação do devedor com o intuito de lhe dar conhecimento da cessão, evitando que pague ao credor primitivo. Assim sendo, o devedor não notificado, ao pagar a prestação devida ao cedente, cumpriu seu dever, exonerando-se da obrigação. O cedente, por sua vez, exerceu formalmente o seu direito de crédito perante o devedor, interpelando-o para cumprir, mas deverá restituir ao cessionário aquilo com o que injustamente se locupletou à custa dele, pois, se não o fizer por estar de má-fé, o cessionário poderá mover ação contra ele e não contra o devedor não notificado (CG, art. 884). Se o litigante ou exequente (CPC, art. 598), em processo de conhecimento ou de execução, formular pretensões, oferecer defesas ciente de que são destituídas de fundamento, praticar atos probatórios desnecessários à defesa do direito, alterar 609 T e o r i a G e r a l d o D i r e i t o C i v i l intencionalmente a verdade dos fatos, omitir fatos essenciais ao julgamento da causa, enfim, se se apresentarem todas as situações caracterizadoras da má- -fé arroladas no Código de Processo Civil, art. 17, estará agindo abusivamente e deverá responder por perdas e danos, indenizando a parte contrária dos prejuízos advindos do processo e de sua conduta dolosa. Se o réu lançar mão de recursos procrastinadores e de expedientes censuráveis, estará abusando de seu direito de defesa (RT, 138:727), causando dano que deverá reparar. Suponha-se, ainda, que o vendedor de jogo de loteria venda um bilhete a um cliente após o sorteio. O cliente não ignora a realização do sorteio, mas não sabe o seu resultado, porém o alienante já tinha conhecimento de que o bilhete estava branco, agindo, portanto, de má-fé. O vendedor, ao alienar bilhete que lhe pertencia, exerceu seu direito de propriedade; o comprador, por sua vez, sabendo que o sorteio tinha-se efetuado, correu o risco de adquirir um bilhete em branco, logo não houve erro substancial de sua parte sobre as qualidades essenciais do objeto. Entretanto, o silêncio do alienante, dissimulando um fato essencial à declaração da contraparte, indicou, sem dúvida, sua má-fé na celebração contratual, exercendo abusivamente seu direito; c) os atos praticados em desacordo com o fim social ou econômico do direito subjetivo. C om o o direito deve ser usado de forma que atenda ao interesse coletivo, logo haverá ato abusivo, revestido de iliceidade de seu titular se ele o utilizar em desacordo com sua finalidade social. Assim, se alguém exercer direito, praticando-o com uma finalidade contrária a seu objetivo econômico ou social, estará agindo abusivamente. Josserand explica-nos que o abuso pode ser constituído pelo caráter antieconômico do ato praticado. O juiz deverá pesquisar o móvel visado pelo agente, a direção em que encaminhou seu direito e o uso que dele fez. Se essa direção e esse uso forem incompatíveis com a instituição, o ato será abusivo, tomando-se, então, produto de responsabilidade. Haverá, portanto, abuso de direito se o agente, ao agir dentro dos limites legais, deixar de levar em conta a finalidade social e econômica do direito subjetivo e, ao usá- -lo desconsideradamente, prejudicar alguém. Não há violação dos limites objetivos da norma, mas tão somente um desvio aos fins soçioeconômicos a que ela visa atingir. P. ex.: se A, credor de B, encontrando-se este doente e endividado, ameaça a filha do devedor com o requerimento judicial de falência do pai, se ela não se casar com ele, está exercendo anormalmente seu direito, pois a cominaçâo do requerimento da falência não visa obter o pagamento do débito, mas sim extorquir da filha do devedor o consentimento de casar, o que o art. 153 do Código Civil considera como coação sobre o declarante. O estado de necessidade consiste na ofensa do direito alheio (deterioração ou destruição de coisa pertencente a outrem ou lesão a uma pessoa) para 610 C v r s o d e D i r e i t o C i v i l B r a s i l e i r o remover perigo iminente, quando as circunstâncias o tomarem absolutamente necessário e quando não exceder os limites do indispensável para a remoção do perigo (CC, art. 188, II, e parágrafo único; CP, art. 24, §§ I a e 2a; RJTJSP, 41:112; RT, 626:172). Não se exige, porém, que o direito sacrificado seja inferior ao direito salvaguardado, nem mesmo se requer a absoluta ausência de outro meio menos prejudicial. Em regra, o perigo resulta de acontecimento fortuito, natural ou acidental, criado pelo próprio prejudicado ou terceiro. De forma que, pelo art. 929 do Código Civil, "se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram", e, pelo art. 930, "no caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado". Só não há dever de ressarcir o dano se o prejudicado for o próprio ofensor ou o próprio autor do perigo. Não se caracteriza como estado de necessidade o motorista que, preocupado com um princípio de incêndio em seu veículo, perca a direção e invada a contramão, provocando colisão em outro (RT, 395:289); ou o caso do pai que rapta a filha de quem a detinha por força de decisão judicial (RT, 393:354). Por outro lado, constituem hipóteses de estado de necessidade: o sacrifício de um automóvel alheio para salvar vida humana, evitando atropelamento (RT, 782:211); destruição de prédio alheio para evitar que incêndio se propague em todo o quarteirão; matar um cão de outrem, atacado de hidrofobia e que ameaça morder várias pessoas (RT, 180:226); arremessar carro contra edifício alheio, danificando-o, para evitar morte por abalroamento de caminhão; jogar latas de gasolina na rua destruindo carroça, para evitar que incêndio se propague por toda a garagem (RT, 163:642)199. 199. Orlando Gomes, op. cit., p. 448; Bassil Dower, op. dt., v. 1, p. 277; W. Barros Monteiro, op. dt., v. 1, p. 293 e 294; Silvio Rodrigues, Direito civil, dt., v. 1, p. 353 e 354; André de Oliveira Pires, Estado de necessidade, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2000; Gabriel Cesar Zaccaria de Inellas, Exclusão de iliàtude, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2001; Marcelo Briguglio, El estado de necesidad en el derecho civil, Madrid, 1971; Alberto R. de Souza, Estado de necessidade: um conceito novo e aplicações mais amplas, Rio de Janeiro, Forense, 1979; RT, 509:69; RJE, 4:9. "Atropelamento e excludente do estado de perigo — Motorista que, sentindo-se ameaçado pelo estado belicoso dos grupos que se enfrentavam em rixa ao redor de seu veículo, aciona a partida e acaba atropelando um dos contendores — Perigo que exdui a ilidtude dò' ato, não podendo obter indenização dvil quem dessa forma contribui para o resultado lesivo — Exame da doutrina — Ação de indenização improcedente — Dedsão mantida" (l2 TACSP, 4a Câm., AC 526.074-0 — Tatuí, rei. Juiz Carlos Bittar, j. 23-11-1994, v. un.). Q u a d r o S i n ó t i c o § S 3 "D ’>5c "S cl tj 5 o & ro « E 13 S | o <w "D "O O O ra o i/í tU a> c “D ra o c *■3 ° o ' L U " O _D_ 3OOD o *uo ■>> 'Q ra £ O- Dra '§ > vn -s t1 O-9-.C 3 raU4—1 C* 3 S *D .Oi O ^ U .C a iraC* QJ «5 TS ^ l/> i "S O 2 "a í S 3 ra t a : 5 ifl i ) ^ O t«i j ,ra ra í o o a i 1o c-£ ' g g oj ! a a s ■°-s' -8 c '3 ■& ai As c S o c> S-s o ■§' -§ ra í-x ir:s 3 ^ u O ç 2 c cuO) t:o CL Oirau* s s. ra U ~a U gy. 3 - g ~ . S l » fQ C P - u_ 3 . x—x o t! O > ra OE § o c o £ ^ ro C XJ o c C ttl -g w i l a) ra ■a 3 OJ «u ~o 8U QJ § o z Q- 'Oo "O •si* xt-^r CT* rC(N C3NUU -ao “Oo £ O S CL c ^ g . 5 J| § Q£ io OHOu oz oD